Em
Encontro Fechado, em 2006,
Líder
Tibetano Enfrenta a Linhagem
Ningma
e Denuncia o Pseudobudismo
Equipe
Bodigaya

O XIV Dalai Lama fez
um esforço para
colocar um limite na
falta de autenticidade
Nota Editorial:
O texto a seguir é um informe sobre a reunião
reservada do XIV Dalai Lama com representantes da comunidade budista
brasileira, realizada em abril de 2006, em São Paulo.
A narrativa transmite uma lição fundamental de
compromisso com a ética. Foi publicada inicialmente ainda em 2006, na
edição número 19 da revista budista independente “Bodigaya”, de Porto Alegre, sob o título “O Hábito Não Faz o Monge”.
Na Carta ao leitor, os editores de Bodigaya escrevem:
“.....Ninguém imaginaria ver Sua Santidade, investida de
natural e legítima autoridade, protagonizar a maior repreensão ao comportamento
inadequado de líderes budistas jamais vista! Num ato firme e resoluto, com um
único precedente ‘bíblico’ (Jesus e os ‘vendilhões do templo’), S.S. o Dalai
Lama provou, aos olhos dos presentes, ser exatamente quem é, um líder
extraordinário, plenamente atento e consciente do seu papel. Seu discurso
impiedoso e ‘cirúrgico’ foi como um médico tentando cortar a carne para drenar
o pus instalado. Diante do gesto inusitado, mas compassivo, puro e genuíno,
tudo o mais em sua visita, desta feita, ficou relegado a um plano secundário.
Seu trabalho de purificação deste mundo inclui, claramente, até mesmo os ‘aspirantes
a mestres’ budistas. Não podíamos deixar de levar ao conhecimento público um
ato cuja importância é histórica, além de extremamente providencial e
transcendente.” (p. 01)
Mesmo envolvido com
artistas de Hollywood e campanhas promocionais no Ocidente que em nada ajudaram
até hoje o povo tibetano, o décimo-quarto Dalai Lama mantém honestidade
suficiente para ter um convívio difícil com os Ningma, internamente. É
lamentável, no entanto, que ele não esclareça a situação de público. Falta
ética e autenticidade no budismo em todo o mundo. Onde quer que haja uma classe
sacerdotal burocratizada, há problemas, e é melhor enfrentá-los de modo
transparente.
Na abertura do
informe sobre a reunião reservada com o Dalai Lama, a Equipe Bodigaya afirma:
“Diante
da crise espiritual mundial, S.S. o Dalai Lama demonstrou liderança, clareza de
visão, condenando comportamentos indecentes praticados por líderes budistas
brasileiros. Por serem aspectos extremamente difíceis de serem identificados e
enfrentados, precisamos todos aprender a reconhecê-los, a fim de aplicar os antídotos
necessários à sua erradicação.” (p. 38)
O
informe de “Bodigaya” narra um
enfrentamento direto entre o Dalai Lama e membros da linhagem Ningma.
Desde
o ponto de vista teosófico, é importante lembrar um fato básico. Helena
Blavatsky escreveu sobre esta linhagem, que combina o budismo anterior à
reforma ética de Tsong-Kha-pa com a feitiçaria local do Tibete antigo, e não
leva em conta preocupações éticas. No seu texto “Reincarnations in Tibet” (“Reencarnações no Tibete”), publicado em
1882, a Sra. Blavatsky esclarece:
“Os
‘Dug-pa’ ou ‘Gorros Vermelhos’ pertencem à velha seita Ningma-pa, que se
resistiu a aceitar a reforma introduzida por Tsong-Kha-pa na parte final do
século catorze e início do século quinze.”
E,
numa nota de pé de página, ela acrescenta:
“O
termo ‘Dug-pa’ no Tibete é pejorativo. Eles próprios pronunciam a palavra como
‘Dög-pa’, cuja raiz significa ‘unir’ (aqueles que estão unidos à fé antiga);
enquanto que a seita suprema do Tibete, os Gelug-pas (gorros amarelos), e o
povo, usam a palavra no sentido de ‘Dug-pa’, causadores de confusão, feiticeiros.”
[1]
Mesmo
os monges Gelup-pa não se notabilizam pelo saber nem pelo discernimento, e H.
P. Blavatsky escreveu que alguns Mestres de Sabedoria “permanecem desconhecidos
em seu verdadeiro caráter até mesmo para os lamas - que são na maior parte dos
casos tolos e ignorantes.”[2] A
situação é mais grave no caso dos feiticeiros que se fazem passar por monges.
As palavras
de Blavatsky citadas acima foram escritas no século 19.
No século
21, o testemunho de budistas independentes ligados à revista “Bodigaya” mostra
em primeira mão um episódio recente de um enfrentamento de 700 anos.
Local,
São Paulo. Data, 2006. De um lado, o budismo reformado dos Dalai Lamas, que
pertencem à linhagem dos Gelug-pa. De outro lado os dug-pas, ou Ningma-pa, da
linhagem “vermelha” anterior à reforma do budismo tibetano.
(CCA)
NOTAS:
[1] “Collected Writings”,
H.P. Blavatsky”, TPH, coletânea em 15 volumes; ver volume IV, pp. 9-10, artigo
“Reincarnations in Tibet”.
[2] “Helena Blavatsky”,
Sylvia Cranston, Ed. Teosófica, Brasília, 1997, 678 pp., p. 107.
Reunião Reservada Com o Dalai Lama
Equipe Bodigaya
Vamos tentar apresentar os pontos que nos
pareceram mais representativos do encontro reservado junto ao hotel onde Sua
Santidade foi hospedada, em São Paulo.
Tenha o leitor em mente que
esta foi a terceira visita oficial do Dalai Lama ao Brasil. Desde 1992, ele
acompanhou o gradual desenvolvimento de centros budistas, comunidades de
praticantes (sanghas) e a transmissão dos ensinamentos, nestes cerca de 15
anos.
Um outro ponto digno de nota,
ocorrido nos dias anteriores à reunião secreta, foco deste artigo, foi o fato
de, pela primeira vez, os budistas “leigos” terem tido acesso ao palco, junto aos
membros “ordenados”. Dispostos numa certa hierarquia, lamas, mestres zen,
mestres chan, entre outros, sentavam em primeiro plano, bem na frente da
cadeira reservada para o Dalai Lama; depois vinham os leigos (chamados, também,
de “professores do Darma”) seguidos pelos respectivos representantes oficiais
das Entidades Anfitriãs, que auxiliaram durante toda a preparação e organização
do evento, compondo o Comitê que tratou de todos os aspectos da visita. A
identificação “exterior” era nítida, por conta das diferentes vestimentas
coloridas, algumas chamativas, pois todos os centros, tibetanos, zen, chan,
etc., estavam - especialmente na palestra de abertura, no Templo Zu Lai -
devidamente paramentados. Ali, especialmente, Sua Santidade deparou-se com
muitas roupagens distintas.
Nesta ocasião, muito
sorridente, como sempre, ele dirigiu seu olhar para cada pessoa, sem deixar
escapar ninguém. Havia lamas com mantos vermelhos, recobertos com “sobremantos”
brancos, listados em bordô; as tradicionais roupas negras do zen, o manto
amarelo dos chineses, etc., num colorido muito vivo pelo sol abrasador daquela
magnífica quinta-feira.
O Dalai Lama brincou, riu e
coçou muito a cabeça enquanto manifestava a energia e a força da sua presença.
O discurso desta primeira apresentação cobriu desde uma rápida introdução ao
budismo e seus elementos, até o exame superficial da vacuidade. S. S. foi
extremamente hábil em sua colocação, dizendo que os tibetanos deviam todo
respeito aos chineses, pois eles eram budistas há muito mais tempo que os
tibetanos. Depois, com sua natural sabedoria, discorreu sobre a necessidade de
se compreender que o “inimigo”, de fato, é um elemento necessário ao nosso
crescimento e aperfeiçoamento. Asseverou que:
“...Nosso
inimigo nunca está muito distante. É difícil que alguém do outro lado do globo
possa ser um inimigo real, pois está longe demais... Em geral, nosso inimigo
está bem perto, muito próximo mesmo (às vezes dentro da nossa própria casa, rua ou comunidade)... Na verdade, devido a essa proximidade,
ele é alguém que compartilha conosco de um futuro comum. O nosso futuro,
portanto, depende do futuro do nosso inimigo. Logo, precisamos aprender a
respeitá-lo, a compreendê-lo, a dialogar franca e sinceramente com ele, pois
somente assim poderemos construir um bom futuro comum. Se pudermos compreender
profundamente essa nossa condição mútua, inseparável, além de respeitar e
cuidar bem daquele que consideramos ser um inimigo, nós aprenderemos, quem
sabe, a amar o nosso inimigo. Ou seja, na verdade, deixaríamos de ser inimigos,
pois ganharíamos, na verdade, um novo amigo!” (risos e muitos
aplausos)
Em um certo momento,
observando as pessoas no palco, S. S. disse que os leigos, historicamente,
foram menosprezados, tratados com desdém, ou até com um certo preconceito
(velado) pelos ordenados, como se fossem algo inferiores. Corrigiu isso,
dizendo que sem eles, os ordenados não subsistiriam, pois são sustentados pelos
leigos. Demonstrou enorme consideração pelos leigos e afirmou,
surpreendentemente, serem os leigos, talvez, o melhor veículo para transmissão
do Darma, especialmente no Ocidente.
Na sexta-feira, S.S. palestrou
no Centro de Convenções do Anhembi, repartindo a palavra com professores da
Unifesp, especialmente do Departamento de Medicina, pois o tema proposto para a
discussão era a Saúde. Novamente, S.S. encantou os presentes com respostas tão
simples quanto sábias.
No sábado, pela manhã, houve a
palestra pública no ginásio do parque Ibirapuera. Um público animado lotou
completamente o recinto e o Dalai Lama estava particularmente inspirado. Ao
entrar, foi aplaudido longamente. Ficamos nos perguntando em que outro país do
mundo S. S. ouviria de um vasto grupo feminino os gritos: “Lindo! Lindo!
Lindo!”
Curioso, perguntou o que
diziam e, quando foi esclarecido pelo assessor, achou muita graça. Então,
acomodou-se na poltrona, olhou em volta e queixou-se, simpaticamente, da
iluminação, muito focada sobre ele, dizendo que não conseguia ver as pessoas
ali presentes. Afirmou que sempre prefere olhar o rosto das pessoas com quem
está conversando. Do jeito que estava escuro na plateia, ouvindo o rugido e
burburinho do povo, jocosamente, afirmou: “é como falar com um tipo de
fantasma gigante!” (muitos risos, aplausos). Provocou ainda mais risos, por
singelamente retirar seus óculos comuns e pôr um par de lentes escuras, a fim
de proteger-se da forte iluminação que recaía sobre si.
O tema desta apresentação foi
sobre “O Poder da Compaixão”, o preferido de S.S. Talvez esta tenha sido a mais
brilhante e tocante palestra do Dalai Lama em São Paulo, tratando-se de uma
apresentação relativamente curta, voltada para um público abrangente. Suas
colocações foram intensas, absolutamente claras, levando o público a uma
experiência espiritual inesquecível. Garantiu que o maior bem é a “paz mental”,
pois isso nos mantém saudáveis e felizes, mas, “para alcançá-la, o único
caminho é o da Compaixão”. Pessoas emocionadas, com olhos marejados, aplaudiram
de pé este ser humano absolutamente incomum. Mais do que suas palavras, elas
viram alguém que corporifica a Compaixão. Às vezes, ouvimos alguém comentar:
“como eu gostaria de ter ouvido Jesus ou Buda em pessoa, na época em que
viveram...”.
Bem, todas as pessoas
presentes naquele estádio, naquele dia, certamente, sentiram como se estivessem
realizando um tal desejo. O Dalai Lama aqueceu e preencheu o coração dos
ouvintes de um modo muito profundo. Foi um discurso repleto de um amor,
humildade, sabedoria e otimismo, digno dos maiores seres humanos que já viveram
sobre este planeta em todos os tempos.
Depois desta necessária
introdução, para situar o leitor dentro do contexto mais geral do evento,
voltemos aos acontecimentos ocorridos no Hotel, na “fatídica reunião secreta”
com a sangha budista brasileira. Chegado o precioso e derradeiro momento do
encontro - depois de alguma confusão provocada pelo número de pessoas ter se
tornado, de uma hora para a outra, bem maior do que o de convidados -, o
contingente humano foi dividido em seis grupos menores, com cerca de 30
indivíduos cada, praticamente de acordo com a procedência e linhagem de cada
um. Todos os seis grupos foram posicionados contra a parede do corredor do
segundo andar do Hotel, cada grupo com uma cadeira vazia, para que, depois de
falar, S.S. pudesse sentar-se rapidamente para tirar uma foto de lembrança. O
corredor é extremamente largo, talvez com cerca de seis metros de largura por
uns cinquenta metros de profundidade. Sem cadeiras, todos aguardavam de pé.
Nós, da equipe Bodigaya, ficamos no último grupo, dos leigos, bem ao fundo do
corredor, portanto, tínhamos uma visão privilegiada de tudo o que pudesse
acontecer naquela comprida e ampla passagem. Podia-se sentir a tensão e
ansiedade eletrizando o ambiente enquanto todos aguardavam o seu maior líder e
representante mundial. Finalmente, depois de averiguadas as condições e a
segurança por “batedores”, que se espalharam e se postaram estrategicamente
pelo local, Sua Santidade finalmente “apontou” na entrada principal do
corredor...
Neste exato instante, um dos
grupos, seguidor da linhagem Ningma, situado aproximadamente no meio do
corredor, começou a entoar o mantra de longa vida ao Dalai Lama. Eles cantavam
em voz alta e forte, enquanto S.S., sempre muito sorridente, foi entrando,
passos firmes e decididos, corredor adentro, até ficar localizado mais ou menos
ao centro, na verdade, um pouco mais para o fundo ... onde estancou, muito
próximo de nossa equipe, e recostou-se no balcão comprido que havia ali, perto
da parede oposta do corredor. Sorrindo, ouvindo o cântico entusiasmado que
lamas e seus acompanhantes emitiam efusivamente, o Dalai Lama ergueu as duas
mãos espalmadas à frente, fazendo movimento oscilante para que aquelas pessoas,
situadas quase exatamente à sua frente, parassem...
Contudo, apesar do gesto feito
pelo Dalai, o grupo, solene e respeitosamente recurvado, com pessoas
paramentadas com mantos e sobremantos, munidas de malas (espécie de rosário)
nas mãos em prece, palma com palma, não cessou com a cantoria; apenas
abaixou o volume da fervorosa recitação. Novamente, S. S. ergueu as mãos,
sacudindo-as para que parassem com aquilo. E, então, o volume do canto abaixou
ainda mais, todavia, não cessou completamente...
Prezado leitor, o que
aconteceu daqui por diante só poderia ser melhor absorvido e compreendido se
você estivesse realmente lá, mas vamos tentar resumir, em alguns pontos, o que
lá se sucedeu, senão vejamos:
1. Sua Santidade o Dalai Lama verdadeiramente
soltou um grito, dizendo (num inglês absolutamente claro, mas aqui, obviamente,
já traduzido por nós): “Calem-se!!!” E riu alto, magnânimo, em meio a um
silêncio ensurdecedor que se seguiu, pois o grupo jamais esperaria uma atitude
como aquela, vinda de quem vinha... Foi um “cala a boca!” contundente, e o
silêncio instalou-se quase por um susto, um verdadeiro “choque” repentino da
audiência. O grupo engoliu o mantra em seco, ficando com um sorriso
“amarelo-histriônico” estampado no rosto. Com aquela introdução, de fato, muito
constrangedora, mas verdadeira, o “tom da conversa” havia sido inequivocamente
apresentado. Todos estavam ali, contra-a-parede, perfilados assim como num
“pelotão de fuzilamento”... E quem estava ali, fazendo uso das palavras como
uma arma eficaz e certeira, era exatamente ele, o Dalai Lama.
2. Iniciando por este imponente “Calem-se!!!”, Sua
Santidade fez uma breve digressão. Disse que, no templo Zu Lai, viu um desfile
de muitas vestimentas: “Havia roupas tibetanas, roupas chinesas, roupas
japonesas, tailandesas, entre outras. Havia até roupas normais, de
ocidentais... Porém, algumas roupas que havia lá, pareceram-me ser, na verdade,
de outro planeta!” (muitos risos, risos amarelos, vermelhos, azuis,
pretos...). “Penso que havia ali roupas até de ETs!” E riu muito alto,
no que não conseguimos nos conter, apesar do constrangimento que sentíamos pelo
que aquelas duras palavras significavam... Sua Santidade olhava nos olhos de
cada um dos lamas e, quando se referiu a “roupas de ETs”, encarou uma pessoa
específica. Imaginamos, imediatamente, que o Dalai Lama conheça praticamente todas
as roupas monásticas existentes em cada templo do mundo inteiro e, talvez,
tivesse percebido, nos trajes muito chamativos daquele indivíduo, algo ainda
sem correspondência no universo de vestimentas de grupos reconhecidos fora do
Brasil... A força de sua presença e coragem foi impressionante. Ninguém
conseguia esboçar qualquer intervenção ou comentário. Na verdade, aquelas
palavras eram mais um susto estupendo. O que viria a seguir? Muito mais do que
se poderia imaginar...
3. O Dalai Lama mudou um pouco o tom irônico para
um pronunciamento esmagador, uma lição absolutamente memorável: “Vocês são
ocidentais e mudaram suas roupas. (referindo-se aos mantos, saias e
sobremantos dos brasileiros ali presentes). Mudaram até a mobília da casa de
vocês. Vocês acham que o Darma está nas roupas ou na mobília, nos adornos de
suas casas? (Estão enganados)... O Darma não está nas roupas, mas no coração e
na mente” ... E riu alto novamente... A “atmosfera” do ambiente ficou
absurda. Os lamas, bem na frente de Sua Santidade estavam paralisados, sem
face, exibindo um “sorriso amarelo-aterrorizado”, indescritível. Davam a
impressão de quererem ser teletransportados dali, mas não podiam simplesmente
desaparecer, fugir, correr ou recuar, pois estavam presos no cordão de fuzilamento,
sob os olhos atentos de um Dalai Lama ao mesmo tempo implacável e totalmente
amoroso. Isso o que mais nos impressionava. Assistíamos à capacidade extrema de
apontar e cravar a espada com precisão e veemência absoluta, mas sem intenção
de causar dano. Não havia ódio no gesto hábil, quase leve, ainda que parecesse
pesar toneladas pela dor que causava. O golpe excruciante tentava apenas
eviscerar e fazer vazar o pus abjeto, encarcerado num abcesso maduro que
apodreceria tudo o que ainda pudesse restar são... A impressão que tivemos foi
de um Dalai Lama gigantesco, com mil metros de altura, e os líderes todos ali,
bem na sua frente, como pigmeus, tentando entrar para dentro dos próprios
sapatos a fim de se esconderem apavorados. Mas, como isso também não era
possível, jaziam ali indefesos, a mercê de uma autoridade e poder superiores.
Imagine o leitor que Sua Santidade, em pessoa, teve de lembrá-los disso!
Dizer-lhes isso com cada letra e palavra. Está escrito no Dhammapada: “O hábito
não faz o monge.” (Nem o canto de mantras!) Mas, quem, então, segue
verdadeiramente o Darma? Só com esta atitude e clara intervenção, para quantos
questionamentos nos remeteu Sua Santidade! Não ficou por aí, sigamos adiante:
4. Sua Santidade fez um breve comentário sobre ter-se
alguma consideração pela cultura tibetana, mas que, “se há alguém que deve
tentar preservar a cultura tibetana, são os tibetanos!” Se alguém deve
preservar a cultura chinesa, são os chineses... e assim por diante... Querendo,
talvez, no fundo, perguntar: e vocês, o que fazem com estas roupas de uma
cultura exótica? Quem irá preservar a cultura de vocês? Deu a entender que
mudar externamente, não transformava nada de fato e que eles jamais seriam
tibetanos por usar roupas tibetanas.
5. Então, Sua Santidade deu o exemplo fortíssimo,
discorrendo sobre o quão é difícil transformarmos a nós mesmos: afirmou que o
Buda havia levado “três eons” (eras intermináveis) para iluminar-se.
Reconhecido aos quatro anos de idade, levado ao contexto monástico, ele foi conduzido
por muitos mestres, ao longo de muitas práticas, mas que ele mesmo praticava
com maior consciência de sua condição desde os 16 anos, quando acredita ter
entendido um pouco do significado de alguns ensinamentos e havia se tornado
muito clara e nítida a sua condição de chefe de estado. “Estou agora com 70
anos...”, meditando cerca de nove horas diárias, desde essa idade, “e só
consegui me transformar um tanto assim...” (mostrou os dedos polegar e
indicador grudados um no outro). Ou seja, mesmo Sua Santidade, com todo o seu
esforço, empenho, vida dedicada, como um monge que preza seus votos e práticas,
havia conseguido avançar muito pouco. Esta afirmação, por si só, demonstra a
envergadura da plena consciência e humildade dessa pessoa incomum.
6. Então, Sua Santidade desfere mais um golpe
certeiro: “Vocês fazem um retiro de três anos... e alguns fazem um workshop
budista de um final de semana, e já se consideram transformados,
espiritualmente elevados e até iluminados! Isso é loucura!” E ria alto, disparando seu
olhar sobre todos. Desta feita, foi como prensar os ossos dos muitos orgulhos e
vaidades presentes. Mas não parou tão logo, parecia saber que havia ossos ainda
mais resistentes para serem moídos:
7. Sem retroceder um milímetro, indo em frente,
Sua Santidade calou ainda mais fundo: “Vocês fazem rituais, retiros rituais
de um mês, cantando mantras para Manjurshri, por exemplo, e pensam que já
transformaram todas as suas negatividades. Então, depois disso, alguns já se
autodenominam gurus!” E ria-se muito mesmo, como se quisesse assoprar a
ferida recém-aberta... Assim que a dor parecia ter reduzido um pouco, que o
grupo havia tomado um pouco de ar, Sua Santidade batia forte de novo:
8.“Vocês fariam muito melhor se, ao invés de ficar
em repetindo rituais (vazios), ou permanecer por
um mês cantando mantras, utilizassem esse mês estudando o Darma!” E ria
assustadoramente. Na prática, suas palavras significavam diretamente: vocês não sabem nada e se arvoram de lamas,
mestres, gurus iluminados e etc. Isso é uma grave loucura! Ninguém mais do
que Sua Santidade tem consciência do quanto uma pseudo ou falsa liderança, ou
pior, uma liderança despreparada, confusa, pode gerar em termos de
negatividades. Mas não foi em tom de ameaça ou chantagem: foi lúcido, brilhante
como o sol nascente fazendo desaparecer as trevas da madrugada com sua presença
esclarecida. Estudar o Darma é trabalho interminável, de toda a vida, pois ele
é vasto e profundo. Então, Sua Santidade escolheu atacar outro tema
fundamental:
9. “Outro dia, nos EUA, uma pessoa se aproximou
de mim e perguntou: ‘S. S. como eu posso me aproximar do budismo tibetano se,
há algum tempo, fui com minha esposa a um centro onde um certo lama ensinava e
ele foi tão sedutor que minha mulher abandonou minha família para ir viver com
o lama?’ ” E S. S.
perguntou: “Vocês acham que isso é ser lama? Ser lama é para obter favores
sexuais, para alcançar reconhecimento, fama? Para muitos, é apenas uma questão
de ganhar dinheiro! Há empresários inescrupulosos se utilizando do Darma para,
simplesmente, fazer dinheiro!” E ria alto e mais alto...
10. Abrandando um pouco o tom, já que havia exposto
a chaga a céu aberto, diante de uma audiência que parecia anestesiada de tantas
observações contundentes, S.S. falou sobre o quanto é custoso mudar,
transformar-se internamente. Mas, deixou claro: “Mudar externamente não
significa nada. É perda de tempo.” Falou que “fingir” ser o que não se é
não leva a lugar algum, pois nada é alcançado assim... A não ser os benefícios
secundários de ser alvo de atenções, consideração, respeito e outros benefícios
econômicos que não vêm ao caso mencionar, mas são evidentes.
Sua Santidade falou também
sobre a arrogância, a soberba, a superioridade, dizendo que estes eram
obstáculos sérios, impeditivos do prosseguimento no caminho. Então defendeu
que, para o Ocidente, a perspectiva leiga e não-religiosa talvez fosse a melhor
e mais adequada para a transmissão do budismo. Repetindo suas palavras já ditas
no Templo Zu Lai, ao observar a presença de leigos sentados nas almofadas no
palco, que os leigos sempre foram discriminados e que isto era totalmente
injusto e sem sentido.
11. Depois de outros comentários, Sua Santidade
definitivamente abrandou suas palavras, falando seriamente da atual condição do
seu país, o Tibete, ainda nas mãos dos chineses. Concluiu ser melhor que Tibete
fique mesmo com os chineses, pois estão modernizando o país, coisa que os
tibetanos não poderiam proporcionar ao povo. Observou, porém, que isso deveria
ser feito com garantias de direitos aos cidadãos, com respeito às diferentes
etnias, direitos iguais preservados, constituição, democracia e etc.
12. Finalmente, agradeceu a todos que trabalharam e
colaboraram com tudo. Muitos aplausos, suspiros e Sua Santidade foi sentar-se,
rapidamente, na cadeira de cada grupo, para as respectivas fotos.
Talvez não signifique
absolutamente nada, mas, quando saímos por uma porta dos fundos, aberta por um
funcionário enquanto os demais grupos tiravam fotos com o Dalai Lama, seguimos
por ali, sem saber onde sairíamos e, para nossa surpresa, encontramo-nos
novamente com S.S. já deixando o hotel. Ele sorriu para nós, despedimo-nos com
acenos de mão e muita felicidade.
Em sua muito provável última
visita ao Brasil, Sua Santidade nos fez ficar de espírito leve, solto, como se
tudo estivesse em paz e em seu devido lugar.
Foi uma lição forte e
inesquecível. Todos nós passaremos a respeitar profundamente os lamas e mestres
que seguirem os conselhos expressos por Sua Santidade neste encontro tão
histórico e memorável quanto enriquecedor.
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Em
setembro de 2016, depois de uma análise da situação do movimento esotérico
internacional, um grupo de estudantes decidiu formar a Loja Independente de Teosofistas. Duas das prioridades da LIT são
tirar lições práticas do passado e construir um futuro saudável.
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