Para Vencer a Indiferença
Diante das Misérias Humanas
Malba Tahan

“Allah te castigue, velho nojento! Longe de mim, podridão!”
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Nota Editorial de 2018:
“Malba Tahan” é o nome literário do
professor
Júlio César de Mello e Souza (1895-1974). Suas
obras abrem caminho para a ética universal
e a sabedoria
inter-religiosa no mundo lusófono. Entre
os livros mais
famosos de Tahan está “O Homem que
Calculava”, também
publicado sob o título “O Homem que
Sabia Contar”.
(Carlos Cardoso Aveline)
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Cumpre-me dizer, antes de tudo, que muito raramente me comovo ou me admiro
diante dos espetáculos torvos da vida.
Certa vez, porém, ao passar junto à mesquita de Omar, presenciei uma cena
que me deixou impressão indelével.
Velho xeique [1], aproximando-se
de um mendigo que esmolava à entrada do famoso templo de Bagdá, atirou-lhe aos
pés um punhado de moedas louras e cantantes.
Ao tempo que as arrebanhava com olhos esbugalhados e mãos rapaces [ávidas], o mísero pedinte, ao invés de
entregar-se às usuais e surradas demonstrações de reconhecimento, entrou a
descompor o generoso ancião em sujo linguajar, chamando, para sobre as suas cãs
[cabelos brancos], não as bênçãos de
Allah (com Ele a oração e a glória!), mas todas as maldições do inferno, todas
as pragas que assolam a espécie humana:
- Allah te castigue, velho nojento! Longe de mim, podridão! Possa o fogo do
Maligno livrar-nos de tuas mãos pestilentas, consumindo-te inteiro!
Desta vez não pude seguir indiferente. Todas as minhas energias se revoltaram,
escaldantes de ódio, contra aquele monstruoso mendigo, que assim pagava, com
impropérios e pragas, o generoso óbolo do bom passante.
Prestes
a desancá-lo com o meu bastão, gritei-lhe com mal contido ódio:
-
Cala-te, ó cão, filho de cão! Pelas barbas do Profeta! Não sei porque não te
esmago já os ossos, ó torpe criatura! Pois então tens a coragem de ofender
àquele generoso ancião que te deu o pão de muitos dias?
-
Não me condenes nem me castigues, ó senhor! - respondeu-me o pedinte com
brandas inflexões na voz macia e humilde. - Se assim procedo, é porque assim o
exigiu de mim aquele meu benfeitor!
Fiquei
atônito ao ouvir tão inesperada e cabal defesa de um proceder que parecia não
ter nenhuma. Seria, assim, possível que houvesse na Arábia, na Pérsia ou no
Egito, um homem que se entregasse a trocar espontaneamente os mais cálidos
benefícios pelas mais negras maldições?
Dando
livre curso às mais desencontradas cogitações, cheguei a concluir que o velho
esmoler estava sendo vítima de alguma implacável demência ou talvez andasse a
cumprir algum estranho voto feito, alucinadamente, em terrível dependura.
Como
quer que fosse, não pude dominar a curiosidade, que crescera em mim, de
deslindar a meada.
- Allah te castigue, velho nojento! Longe de
mim, podridão! Possa o fogo do Maligno livrar-nos de tuas mãos pestilentas,
consumindo-te inteiro!
Pressentindo
nisso um caso digno de registro, resolvi correr no enlaço do velho xeique que,
indiferente, seguia pela rua afora, no seu caminhar vagaroso e compassado.
-
Ó xeique dos xeiques - disse-lhe ao alcançá-lo, saudando-o com respeito. -
Allah vos cubra de benefícios e prolongue, por muitos anos, a vossa preciosa
existência! Acabo de assistir, surpreendido e revoltado, à conduta indigna
daquele vil mendigo da mesquita. Era meu intuito castigar o ingrato de maneira
terrível! Disse-me ele, porém, que fostes vós mesmo quem exigiu dele aqueles
insultos e maldições. É verdade - ó venerável xeique! - é verdade que tendes
por justo pagarem-se benefícios e esmolas com a mais negra das ingratidões?
-
É verdade, sim, meu filho - respondeu-me ele, pousando em meu ombro a mão
trêmula que tantos benefícios espalhava. - É verdade! Não lhe mentiu o mendigo.
Fui eu mesmo que lhe impus não só a ele, senão a todos a quem valho, aquele
modo de proceder. E a minha exigência não passa de um egoísmo gerado da minha
filantropia. Sou de natureza esmoler e caridoso. Não têm conta as bocas
famintas a que dei pão, os lábios sedentos a que cheguei um púcaro de água, os
enregelados que se agasalharam nas dobras do meu manto. De todos, porém,
passada a fome, estancada a sede, vencido o frio, só recebia as mais cruas provas
de ingratidão. Passada a hora da necessidade, passava a lembrança do benefício!
-
A princípio, meu filho - continuou o velho - doíam-me as injustiças daquele que
eu beneficiava, vinham-me ímpetos de transformar os meus sentimentos de piedade
nesse indiferentismo com que a maioria dos homens aprecia as misérias de seus
semelhantes. Repudiando, porém, essa fraqueza, esse desânimo, que me assaltava
quando me feria uma ingratidão profunda, deliberei habituar-me a receber tais
pagas. Allah (com Ele a oração e a glória!) seja louvado pela sábia inspiração
que me deu! Comecei a exigir, de todos quantos recebem qualquer auxílio meu,
que me deem desde logo o que me iriam dar mais tarde: uma ingratidão como paga.
E,
parando um momento, na curva da rua, o original e piedoso velho deixou cair uma
moeda de ouro aos pés de um cego, que dormitava apoiado no umbral de uma
taverna.
O cego,
que reconhecera pela voz o xeique doador, exclamou iracundo:
-
O demônio que te persiga, velho imbecil!
O
velho sorriu.
Não
era de esperar outra coisa. [2]
* * *
Os
homens bons e generosos não devem nunca permitir que a ingratidão estiole, ou
sequer embace, os sentimentos que o coração lhes dita.
“Esquecei
as ingratidões” - dizia Al-Halaj – “e perdoai os ingratos. Allah é justo e
clemente. Os bons serão sempre julgados segundo a grandeza infinita da
misericórdia de Deus.” [3]
NOTAS:
[1] Xeique: palavra árabe que
significa chefe, líder, ancião. É também um título honroso. (CCA)
[2] “Não era de esperar outra coisa”.
O conto “Ingratidão Exigida” narra um episódio de “intenção paradoxal” e revela
a aguda percepção que Malba Tahan tinha da alma humana. O psicólogo Viktor
Frankl, fundador da Logoterapia, escreveu que um grande produtor de ansiedade é
“o medo do medo”, o que por sua vez dá lugar aos complexos mecanismos de “fuga
do medo”. Para Frankl, “este é o ponto de partida de todas as neuroses de
ansiedade” (“The Unheard Cry for Meaning”, Viktor E. Frankl, Touchston
Book/Simon and Shuster, 1978, 191 pp., ver p. 116). A técnica da intenção
paradoxal consiste em olhar de frente para o pior cenário, evitando o
medo do medo. Estando preparado para o pior, fica mais fácil buscar o melhor. O
medo da decepção é o despreparo. O medo atrai a situação temida. A técnica da intenção
paradoxal, por sua vez, esvazia a ansiedade. Ela gera um desapego maduro diante
da vida de curto prazo, uma liberdade interior diante das circunstâncias. A mesma
ideia da intenção paradoxal está presente de vários modos na tradição zen e no
cristianismo. É aplicada por Francisco de Assis no capítulo nove da obra “I
Fioretti” (“São Francisco de Assis,
Escritos e Biografias, Crônicas e Outros Testemunhos do Primeiro Século
Franciscano”, Ed. Vozes, Petrópolis, RJ, 1991, 1372 pp., ver pp.
1098-1099). (CCA)
[3] Ingratidão - O símbolo
perfeito da ingratidão (pagar o bem com o mal) aparece numa das lendas mais
famosas do livro das “Mil e uma noites”. Vamos encontrá-lo na história
intitulada “O pescador e o gênio”.
Um
pobre pescador ao retirar sua rede encontrou dentro dela um grande vaso de
cobre amarelo, cheio e intacto. Tomado de viva curiosidade, o pescador abriu o
vaso e viu, com espanto, dele desprender-se uma fumaça azulada que subiu para o
céu formando a figura gigantesca de um gênio.
Uma
vez em liberdade, disse o pavoroso ifrite [gênio
malévolo] ao infeliz pescador: - Pelo bem que fizeste, ó pescador,
libertando-me desse vaso, vais morrer!
Respondeu
o pescador: Que torpe ingratidão, ó ifrite! - Queira Allah fazer com que o
castigo do céu caia sobre ti!
Tornou
o gênio com uma voz tremenda que rolava como um trovão pelo espaço: - Medita um
instante, mísero muçulmano, e escolhe a espécie de morte que preferes!
-
Que fiz eu para merecer a morte? - interpelou aflito o pescador.
-
Ainda perguntas, ó insensato! - esbravejou o gênio. - Fica sabendo que eu
estava preso, nesse vaso, há mais de três séculos, chumbado com o selo de
Salomão, sofrendo torturas incríveis. Não percebes que a minha existência era
um verdadeiro inferno? E como fui salvo? Fui salvo por ti, unicamente por ti! E
é justamente por esse motivo que eu te quero matar.
-
Não me parece justa, ó ifrite! essa forma de proceder - protestou o pescador.
Disse
então o gênio:
-
Devo dizer-te que sou um gênio rebelde. Revoltei-me contra Salomão, filho de
David. Para castigar a minha rebeldia mandou Salomão encerrar-me no fundo desse
vaso fechando-o com um selo de chumbo onde se achava gravado o nome de Allah, o
Altíssimo! Apesar da minha força e do meu poder eu não era capaz de vencer o
encantamento do selo de Salomão. O vaso foi atirado no seio das ondas e rolou
comigo para o fundo do mar. Fiquei cem anos no suplício desse cativeiro e dizia
de mim para mim: “Darei riquezas eternas a quem me libertar!” Passaram-se,
porém, cem anos e ninguém me libertou. Quando entrei no segundo período de cem
anos, disse - “Revelarei todos os tesouros da terra àquele que me libertar!”
Mas o segundo século decorreu e ninguém me libertou. Ao iniciar o terceiro
século formulei novo juramento: “Concederei três coisas a quem me libertar!”
Foi tudo inútil; ninguém veio em meu auxílio. Tomado de imenso furor, declarei:
“Agora, matarei, sem piedade, àquele que me libertar!” Foi quando tu, pescador,
vieste em meu socorro e, graças ao teu auxílio, consegui aquilo que mais ambicionava:
a liberdade! Concedo-te, agora, que escolhas a espécie de morte que preferes.
(Malba Tahan)
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O conto acima é reproduzido do livro “Maktub!”,
de Malba Tahan, 11ª Edição, 1964, Ed. Conquista, Rio de Janeiro, 220 pp., ver
pp. 205-210. A ortografia foi atualizada. A imagem que ilustra o conto em
nossos websites associados é a mesma do livro. A publicação online ocorreu dia 8
de setembro de 2018.
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