Escutar o Que Não Foi Dito,
Ouvir a Natureza e as Vozes Celestiais
Jorge Machado

Esta fotografia antiga sugere ausência e
silêncio
Lembro que certa
fez visitei um balneário em Abaeté [1] que se dizia ecológico. De fato,
havia aquelas lixeiras coloridas para coleta seletiva, placas educativas na
praia, limpeza em todos os lugares, a natureza preservada. Posso dizer que me
senti em casa, feliz por estar ali para apreciar as árvores, ouvir um igarapé
indo em direção a um rio mais largo, o farfalhar dos açaizeiros, o canto dos
pássaros...
Tudo
ia muito bem até começarem a montar enormes caixas de som. Vi sobressaltado
ligarem os fios naquelas monstruosidades e logo sentei, já tenso, na rede onde
estivera deitado em paz, não acreditando no que presenciava. Daí a pouco aquele
ambiente foi inundado por uma barulheira infernal e somente pude me retirar
resignado do barracão, indo para bem longe, do outro lado do igarapé, onde
fiquei a meditar sobre o que estava acontecendo. Fiz, naquele momento, uma
constatação iluminadora: para algumas pessoas, poluição sonora não é poluição.
Já
sabia que, assim como a natureza tem horror ao vácuo (coisa dos filósofos
gregos de antigamente) o caboclo tem horror ao silêncio. Não só o caboclo,
aliás, porque o silêncio é perigoso, pode fazer ouvir a voz interior e a
humanidade, nos tempos de hoje, prefere não ouvir as verdades que vêm lá do
fundo, lá de onde as palavras faltam, de onde chegam as descobertas, a
autoanálise, a reflexão, a meditação mais densa sobre o estar no mundo. Nesse
momento, presunçosos e canalhas, por exemplo, podem se sentir ridículos. Então
dá-se a entrega à música (música?), à tagarelice, ao falar sem parar nas “redes
sociais”, porque quando se fala pelos cotovelos oblitera-se o cérebro.
Faço
essa reflexão ao contemplar a imagem acima. O canto, ou esquina, do BASA [2], em Abaeté, nos anos 1930, cerca de
35. Ao olhar para ela, a única palavra que me vem à mente é… silêncio.
Não
havia alto-falantes, a eletricidade era precária e só lá no fundo, perto do
trapiche da cidade, na beira do rio. Também não havia ninguém parolando ao
acaso pelas ruas. Devia ser perto do meio-dia e, como já visto em outras das
nossas imagens, muitos talvez estivessem almoçando, fazendo a sesta, lendo um
livro… Nada de descargas esportivas, de acelerações absurdas, de carros-som, de
aparelhagens treme-terra...
A
composição da imagem foi agradável, o fotógrafo contornou o primeiro plano com
algumas árvores e o horizonte um pouco baixo, além de permitir ver melhor as árvores,
conduz o olhar do leitor para um ponto de fuga relevante, o trapiche. Talvez
lá, perto do rio, houvesse algum movimento, mas na esquina fotografada a imagem
sugere ausência e silêncio. Não uma ausência plena, no entanto. Há sinais de
atividade humana ali.
Na
primeira casa à direita, colchões e redes expostos ao sol sugerem uma limpeza,
a faina doméstica diária, o arrastar das vassouras, o bater dos espanadores.
Talvez houvesse crianças que ainda urinassem na cama, talvez um adulto
incontinente que passasse a noite entre escarros e imprecações. Talvez apenas
um costume, em climas úmidos, de remover o bolor das camas, que haviam sido
polidas com óleo de peroba e o cheiro recendera pelos arredores logo cedo, na
manhã fria.
À
esquerda, na esquina, morava uma professora muito conhecida na cidade. Pode ser
que nessa hora, depois do almoço, se ela tivesse um piano em casa, começasse a
estudar executando alguma sonata, algum noturno, alguma valsa. Esse som, suave
e distante, como deveriam tocar os pianos na Abaeté dos anos 1930, talvez
pudesse compor um fundo para o farfalhar das árvores e até os passarinhos - que
também paravam para descansar nessa hora, como se dizia antigamente - ficassem
a escutar em silêncio.
Silêncio.
Não o silêncio tumular, perturbado apenas por um ruir de ossos, uma deletéria
bolha gasosa rompendo tecidos inchados, o deslocar de um maxilar podre, a
euforia dos vermes a roer a carcaça putrefata, seja de homens ou de ratos;
ambos proteína animal já condenada à corrupção desde a nascença. O silêncio das
alturas, esse sim, o das imensidões continentais, do recolhimento para a vida
interior, a verdadeira vida. O voluntário calar.
O
silêncio para ouvir o não dito, a natureza, a filosofia, as vozes celestiais, o
outro lado.
O
silêncio de paz.
NOTAS:
[1] Abaeté - a
cidade de Abaetetuba, localizada a cerca de 100 km de Belém do Pará.
[2] BASA - Banco da Amazônia S/A.
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O artigo acima
foi publicado nos websites associados dia 26 de outubro de 2019.
Jorge Machado
nasceu na cidade de Abaetetuba, em 1963, e é professor na Universidade Federal do
Pará.
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Veja o poema “Mestre Silêncio”, de Hermes Fontes.
Leia o texto de Malba Tahan intitulado “Elogio ao Silêncio”, e o artigo
“A Música do Silêncio”, de CCA.
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