Resgatando a Força do
Direito Natural
Sérgio Fernando Moro

Sérgio Moro e a
Constituição brasileira de 1988
Nota Editorial de 2018
O texto “O Constitucionalismo”
é reproduzido da obra “Legislação
Suspeita? - Afastamento da Presunção de Constitucionalidade da Lei”, de
Sérgio Fernando Moro, Juruá Editores, Curitiba, 3ª tiragem, 2016, 95 páginas, ver
pp. 34-39.
Entre
os pontos de interesse teosófico no texto há pelo menos três que merecem ser
destacados.
O
primeiro deles é que o constitucionalismo resgata o direito natural. A lei
natural e o direito natural são premissas básicas em filosofia esotérica. O segundo ponto é que,
assim como a teosofia clássica, o constitucionalismo abordado por Moro evita o
relativismo ético e o oportunismo de curto prazo da corrente de pensamento
conhecida como utilitarismo.
Quanto
ao terceiro aspecto, o texto enfatiza o fato de que a Constituição brasileira
de 1988 aponta para a construção de uma sociedade fraterna e pluralista. O movimento teosófico trabalha para a
fraternidade universal.
(Carlos
Cardoso Aveline)
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O Constitucionalismo
Sérgio
Fernando Moro
Do preâmbulo da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”,
de 26 de agosto de 1789, extrai-se o seguinte trecho:
“Os representantes
do povo francês, reunidos em Assembleia Nacional, tendo em vista que a
ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas
causas dos males públicos e da corrupção dos Governos, resolveram declarar
solenemente os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de
que esta declaração, sempre presente em todos os membros do corpo social, lhes
lembre permanentemente seus direitos e seus deveres”; …
E seu artigo segundo dispõe:
“A finalidade de
toda associação política é a conservação dos direitos naturais e
imprescritíveis do homem. Estes direitos são a liberdade, a propriedade, a
segurança e a resistência à opressão.”
A Declaração partia do pressuposto de que o homem possuía
direitos inerentes à sua condição de pessoa humana que preexistiam a qualquer
associação política.
A
Constituição norte-americana, depois da inserção, em 1791, de declaração de
direitos, partia do mesmo pressuposto [1].
Tal
ideia ainda se encontra presente no constitucionalismo moderno, conforme pode
ser verificado no preâmbulo da “Declaração
Universal dos Direitos do Homem”, aprovada em 1948 pela Assembleia Geral
das Nações Unidas:
“Considerando que o reconhecimento da
dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos
iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no
mundo;”
“Considerando que o desprezo e o desrespeito
pelos direitos do homem resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a
consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de
liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da
necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum;”
“Considerando ser essencial que os direitos
do homem sejam protegidos pelo império da lei, para que o homem não seja
compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão; (…)”
A
Constituição brasileira de 1988 não discrepa de tal pressuposto, constando, em
seu preâmbulo, como propósito dos constituintes, o de assegurar valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos.
A
ideia central do constitucionalismo é, portanto, de assegurar e promover os
direitos fundamentais do homem, os entendidos como tais pela comunidade.
O
constitucionalismo representa o reencontro do Direito positivado com o Direito
Natural.[2] Não obstante, não se
pode perder de vista que a positivação dos direitos do homem não exclui a
premissa básica do constitucionalismo, de que o homem tem direitos
independentemente do Estado e até contra este. [3]
Em
regime democrático, isso significa que o homem tem direitos independentemente
da vontade da maioria política ou até mesmo contra esta. Se os direitos
fundamentais forem assim compreendidos, então argumentos utilitaristas [4] não são adequados para eliminá-los
ou restringi-los, salvo em hipóteses extremas. [5]
Ora,
se o constitucionalismo representa a garantia de que a maioria não estabelecerá
tirania sobre as minorias, então parece razoável que a proteção dos direitos
fundamentais não fique a cargo de órgão controlado por essa maioria. Do
contrário, esta seria juiz de suas próprias limitações.
O
Parlamento, composto por representantes eleitos pelo povo, cujas decisões são
reportáveis, com alguma mistificação, à vontade da maioria política, não é, por
conseguinte, o órgão adequado para o exercício de tal controle.
Falece
legitimidade idêntica ao Executivo, principalmente, em regimes políticos nos
quais seu chefe seja escolhido em eleições majoritárias.
Por
exclusão, chega-se ao Judiciário, conferindo-se a este competência para
controlar os atos dos demais poderes, a fim de se resguardar os direitos
fundamentais, que são também os direitos das minorias.
Poder-se-ia
argumentar que a concessão de tal competência importa em submeter a sociedade,
seja o grupo majoritário, sejam os minoritários, à vontade de pequeno grupo de
homens, o que gera risco de arbítrio.
Certo
risco de abuso está sempre presente quando se concede poder a alguém. O risco
pode, porém, ser minimizado através da adoção de certos mecanismos. No caso do poder jurisdicional, podem ser
citados: a) a independência e a imparcialidade dos julgadores; b) a proibição
de exercício de jurisdição sem provocação das partes; e c) a obrigatoriedade de
fundamentação de qualquer decisão.
Nenhum
outro poder depende tanto como o Judiciário da aceitação de suas decisões pela
comunidade e pelos outros poderes. Como disse Hamilton, não tem ele nem a bolsa
nem a espada, sendo impotente para fazer valer à força suas próprias
convicções.
Essas
limitações obrigam os juízes a se esmerarem na fundamentação de suas decisões,
buscando persuadir seus destinatários, o que só conseguem mediante a utilização
de argumentos convincentes.
Ademais,
exige-se dos Tribunais ao menos coerência entre suas decisões, o que evita
resultados provenientes de simples juízos de conveniência política.[6] Por essa razão, os juízes, mesmo no
sistema romano-germânico, devem observar os precedentes ou, pelo menos,
justificar a razão de não adotá-los em casos novos.
A
legitimação do poder jurisdicional tem outras fontes que não a democrática, ou,
em outras palavras, a observância da vontade da maioria política. Os Tribunais,
para legitimar suas decisões, não devem empreender busca do que seria
presumivelmente a vontade da maioria. Afinal, se os direitos fundamentais devem
ser levados a sério (aqui sirvo-me da expressão consagrada por Dworkin) devem
ser implementados mesmo que contrários a essa vontade presumida.
NOTAS
DO AUTOR:
[1] Da Declaração de Independência
norte-americana, de autoria de Thomas Jefferson, destaca-se o seguinte trecho:
“Consideramos estas verdades como
evidentes de per si, que todos os homens foram criados iguais, foram dotados
pelo Criador de certos direitos inalienáveis; que, entre estes, estão a vida, a
liberdade e a busca da felicidade; que, a fim de assegurar esses direitos,
instituem-se entre os homens os governos, que derivam seus justos poderes do
consentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se
torne destrutiva de tais fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la
e instituir novo governo, baseando-o em tais princípios e organizando-lhe os
poderes pela forma que lhe pareça mais conveniente para lhe realizar a
segurança e a felicidade.”
[2] “A Constituição pretende ser, no Direito moderno, uma forma legalista de
superar o legalismo, um retorno ao jusnaturalismo com os instrumentos do
positivismo jurídico. Um retorno, porém, que é também consciência da superação
dos velhos esquemas jusnaturalistas: de um direito natural entendido como
absoluto e eterno (e, portanto, imóvel) valor, a um jusnaturalismo histórico,
direito natural vigente; um fenômeno, como cada um vê, perfeitamente paralelo
ao da passagem da metodologia apriorístico-dedutiva de um abstrato
universalismo, à superação das últimas fases nacionais do positivismo, através
dos instrumentos realístico-indutivos do método comparativo.”
“A norma constitucional, sendo também norma
positiva, traz, em si, uma reaproximação do direito à justiça. Porque norma
naturalmente mais genérica, vaga, elástica, ela contém aqueles conceitos de
valor que pedem uma atuação criativa, antes, acentuadamente criativa, e, porque
tal, susceptível de adequar-se às mutações, inevitáveis, do próprio ‘valor’. Na
verdade, na concepção moderna, a norma constitucional outra coisa não é senão a
tentativa - talvez impossível, talvez ‘faustiana’, mas profundamente humana -
de transformar em direito escrito os supremos valores, a tentativa de recolher,
de ‘definir’, em suma, em uma norma positiva, o que, por sua natureza, não se
pode recolher, não se pode definir - o Absoluto. A justiça constitucional é a
garantia desta ‘definição’; mas também, ao mesmo tempo, o instrumento para torná-la
aceitável, adaptando-a às concretas exigências de um destino de perene
mutabilidade”. (CAPPELLETTI, Mauro. “O
Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Comparado”, pp.
129-130)
[3] A crença em um Direito suprapositivo é
objeto da seguinte manifestação de fé de Otto BACHOF: “Desde luego, la existencia y el carácter preceptivo de un orden de
valores anterior al Derecho no se puede probar con una evidencia racional. En última
instancia, su afirmación es una creencia, una confesión; una creencia y una
confesión que, según creo, abarcan lo que nosotros entendemos bajo el nombre -
permítanme ustedes esta expresión sumaria - de Cultura Occidental” (“Jueces y
Constitución”, pp. 46-47).
[4] Segundo John RAWLS, a ideia central do
utilitarismo é a de que a sociedade está ordenada de forma correta e, portanto,
justa, quando suas instituições mais importantes estão planejadas de modo a
conseguir o maior saldo líquido de satisfação obtido a partir da soma das
participações individuais e todos os seus membros (“Uma Teoria da Justiça”, p. 25). Para o utilitarismo, a justeza
moral de uma ação é determinada pela sua aptidão de alcançar a máxima
satisfação líquida para o corpo social.
[5] É esse o sentido de direitos presente em
RAWLS e DWORKIN: “Cada membro da
sociedade é visto como possuidor de uma inviolabilidade fundada na justiça, ou,
como dizem alguns, no direito natural, que nem mesmo o bem-estar de todos os
outros pode anular. A justiça nega que a perda da liberdade para alguns se
justifique por um bem maior partilhado por outros. O raciocínio que equilibra
os ganhos e as perdas de diferentes pessoas como se elas fossem uma pessoa só
fica excluído. Portanto, numa sociedade justa, as liberdades básicas são tomadas
como pressupostos e os direitos assegurados pela justiça não estão sujeitos à
negociação política ou ao cálculo dos interesses sociais”. (RAWLS, John. Op. cit., p. 30)
“Los derechos
individuales son triunfos políticos en manos de los individuos. Los individuos
tienen derechos cuando, por alguna razón, una meta colectiva no es
justificación suficiente para negarles lo que, en cuanto individuos, desean
tener o hacer, o cuando no justifica suficientemente que se les imponga alguna
pérdida o perjuicio”. (DWORKIN, Ronald, “Los Derechos en Serio”, Barcelona, Ed. Ariel, 1995, p. 37)
[6] “Los jueces, como todos los funcionarios políticos, están sometidos a la
doctrina de la responsabilidad política, que en su forma más general, enuncia
que los funcionarios políticos no deben tomar otras decisiones políticas que
las que puedan justificar dentro del marco de una teoría política que
justifique también las otras decisiones que se proponen tomar”. (DWORKIN,
Ronald. Op. cit., p. 154)
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O artigo acima foi publicado nos websites associados dia
4 de abril de 2018. Em 2020, foi retirado do ar dia 20 de fevereiro e
recolocado dia 27 de abril.
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Leia mais: “Democracia Exige Respeito à Lei”.
Sobre
Teosofia e Direito Natural, veja o texto “Tomando Posse da Nossa Própria Natureza”,
do filósofo russo Ivan A. Il’in. Leia, também escrito por Il’in, “O Respeito Espiritual por Si Mesmo”.
Em inglês, examine “Theosophy as Natural Law”, de Carlos Cardoso Aveline.
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