É Preciso Garantir o Sossego da População

À nossa Constituição falta um artigo de capital importância, que estabelecesse a par da inviolabilidade do domicílio a inviolabilidade dos nossos ouvidos.
Se um cidadão não tem o direito de penetrar violentamente em casa de outro, por que terá o direito de penetrar no seu aparelho auditivo por intermédio do berro descompassado, da charanga tonitruante, da corneta guarda-nacionalíssima, do sino das igrejas, da sereia policial e mais estrondos de maori enlouquecido?
S. Paulo é a vítima permanente dum estupro auditivo organizado em sistema. Seus tímpanos não merecem a consideração de ninguém. São uma espécie de casa da Mãe Joana onde todo sujeito capaz de um som violento sem a menor cerimônia deposita a sua contribuição.
Já tínhamos aqui em certo bairro a Guarda Nacional com as suas cornetas. Os moradores andam com algodão nos ouvidos para prevenir a surdez precoce. Durante horas a fio um magote de corneteiros, na atitude clássica dos trombeteiros da Aida, postam-se na rua estrugindo tá-rá-tá-tás nhambiquaríssimos.
Dizem que o caso, visto não ter uma explicação planetária, tem-na interplanetária. Aqueles sons são mensagens da Terra ao planeta Marte. Na impossibilidade de promover uma guerra intestina onde dê largas à sua belicosidade, a Guarda Nacional desafia os marcianos para um prélio à la H. G. Wells. [1] Mas como Marte, avaliando o formidoloso poderio da nossa milícia pela arreganhada insistência daqueles tá-rá-tá-tás, tem medo, ou pelo menos receio, e não aceita a luva, os derrotados ficamos sendo nós, cujas trompas de Eustáquio andam inflamadas como mão de negro após três dúzias de bolos.
A esse belígero corneteamento vem agora juntar-se a histeria fônica pré-carnavalesca.
Bandos de bípedes passam e repassam pelo infeliz Triângulo, em mangas de camisa, balindo, latindo, mugindo, grunhindo, guinchando, urrando, taralhando, coaxando, crocitando, zurrando, ululando, com grandes risos alvares na cara e ademanes atávicos do pitecântropo ereto.
São seguidos por automóveis com mulheres dignas de fornecer quartos ao frigorífico de Osasco ou tachadas de sabão crioulo. Gordas, mamalhudas, desacreditadoras do terceiro inimigo da alma pela exibição de carnaduras faisandées, esses cetáceos femininos, pintadas a vermelhão na cara, passam irradiando nuvens de espiroquetas pálidos, símbolos vivos da Avaria.
Remata o rancho um bando de homens fardados, produtores de barulhos; malham uns nos bombos; outros assopram trombones, saxofones, flautas, clarinetas e mais instrumentos amarelos de provocar vibrações do ar. Tais vibrações, produzidas dentro de uma rua estreita, com uma muralha de paralelepípedos por baixo e a muralha dos prédios lateralmente, escapam na quantidade de um terço pela estreita aberta superior, e por dois terços são absorvidos pelos tímpanos dos miseráveis seres humanos que têm a desdita de se encontrarem dentro do seu raio de ação.
Caso de habeas-corpus não é. Este remédio só cura do corpo inteiro, não admite a desintegração de um “habeas auricula”. Não havendo remédio jurídico, nem policial, nem higiênico, acho, logicamente, que o povo tem o direito de recorrer à justiça sumária indicada pela legítima defesa dos seus tímpanos. É agarrá-los e atufar aquelas bocas com algodão em rama; é furar o bombo do Zé Pereira; é amarrotar um por um os tais aparelhos amarelos de produzir sons. Quanto ao mulherio não há vacilar a respeito do seu destino: é tangê-las para Osasco. Só assim seremos reintegrados nas incomparáveis delícias do Silêncio.
NOTA:
[1] H.G. Wells, autor do romance de ficção científica “A Guerra dos Mundos”. (CCA)
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O artigo “Em Nome do Silêncio” foi publicado nos websites da Loja Independente de Teosofistas em 15 de julho de 2025. Trata-se de uma reprodução do livro “Ideias de Jeca-Tatu”, de Monteiro Lobato, Ed. Brasiliense, SP, 1959, 275 pp., ver pp. 177-179. O escritor brasileiro Monteiro Lobato nasceu em 1882 e viveu até 1948.
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Leia mais:
* A Música do Silêncio (texto de CCA).
* Mestre Silêncio (um poema de Hermes Fontes).
* Elogio ao Silêncio (texto de Malba Tahan).
* O Clube dos Silenciosos (um conto de Malba Tahan).
* A Ciência das Lágrimas (de Manuel Bernardes).
* Aspectos Sagrados da Serendipidade (artigo de CCA).
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Helena Blavatsky (foto) escreveu estas palavras: “Antes de desejar, faça por merecer”.
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