Disciplina Diária: o
Jejum e o Desapego
No Fortalecimento da
Vontade Espiritual
Carlos Cardoso Aveline
Visão parcial da página
de abertura da edição de 1725 de “Direcçam”, de M. Bernardes
A teosofia transcende as fronteiras convencionais de tempo e espaço. A pedagogia do espírito é em grande parte atemporal e suas dimensões espaciais são flexíveis, podendo chegar ao infinito em seus níveis superiores.
Um exemplo disso é dado pelo religioso oratoriano Manuel Bernardes. Nascido em Lisboa em 20 de agosto de 1644, e tendo vivido até o ano de 1710, Bernardes é no século 21 um autor cujos textos inspiram e ajudam a quem estuda os ensinamentos esotéricos do movimento teosófico, fundado em 1875.
O religioso da Congregação do Oratório nasceu quase 200 anos antes de Helena. Nascida como ele sob o signo de Leão, Blavatsky era discípula de sábios orientais e não leu as obras de Bernardes nem conhecia o idioma português. Ainda assim, encontramos nos escritos do religioso ibérico grande quantidade de informações úteis para os estudantes da Loja Independente de Teosofistas, cuja principal referência é dada pelas Cartas dos Mestres de Helena Blavatsky e pelos escritos dela. Os escritos de Bernardes são úteis para quem busca o discipulado junto aos Mahatmas orientais. Vale a pena examinar alguns fatos básicos da caminhada esotérica.
O Que Significa Fazer um Retiro
Digamos que você queira passar uns dias retirado e dedicando-os completamente à busca da sabedoria mística.
O que é exatamente “afastar-se da vida externa” para mergulhar por alguns dias no mundo do espírito?
Em um Aviso aos participantes de um retiro de nove dias, o místico de Lisboa recomenda:
“[Cabe] abstrair-se durante o tempo dos Exercícios de tudo o que é negócios, cartas, visitas, conversações, notícias, preocupações, estudos, curiosidades, e qualquer outro emprego [de energia] que costuma impedir a devoção e dissipar o recolhimento do espírito. Porque a oração não é outra coisa (como disse Santo Astério Bispo) do que um esquecimento das coisas terrenas, para subir, o espírito, às coisas celestiais: Oratio est oblivio terrenorum, ascensus in Coelum.” [1]
O caminho da alma implica um desligar-se parcial do mundo externo. Bernardes afirma que o momento da prática espiritual deve ser um “tempo vazio” a ser preenchido com o espírito da Oração - que um teosofista chamaria de espírito da Contemplação.
Tais conselhos são bastante parecidos aos que encontramos nas Cartas dos Mahatmas e nas Cartas dos Mestres de Sabedoria.
Um instrutor oriental escreveu:
“Como pode você discernir o real do irreal, o verdadeiro do falso? Só através do autodesenvolvimento. Como conseguir isso? Primeiro, precavendo-se contra as causas do autoengano. E isso você pode fazer dedicando-se, em determinada hora ou horas fixas, a cada dia, totalmente só, à autocontemplação, a escrever, a ler, a purificar suas motivações, a estudar e corrigir seus erros, ao planejamento do seu trabalho na vida externa. Estas horas deveriam ser reservadas como algo sagrado para este propósito, e ninguém, nem mesmo o seu amigo ou seus amigos mais íntimos, deveriam estar com você naquele momento. Pouco a pouco sua visão ficará clara, você descobrirá que as névoas se dissipam, que suas faculdades interiores se fortalecem, sua atração por nós ganha força e a certeza toma o lugar das dúvidas.” [2]
São numerosos os paralelos e pontos em comum entre as obras de Manuel Bernardes e a teosofia clássica. Uma vez que se compreenda filosoficamente a linguagem mística do Portugal e Brasil do século 18, os livros de Bernardes são uma reserva técnica valiosa para o estudo prático do discipulado em língua portuguesa.
Entre os numerosos temas em que Bernardes ajuda o movimento teosófico está a prática regular da abstenção de alimentos.
A Renúncia Como Base da Caminhada
O jejum ocupa lugar de destaque entre as austeridades ou penitências recomendadas no mundo cristão. Está presente no judaísmo e no islamismo, e constitui uma prática regular entre as religiões orientais.
O testemunho de todos é semelhante. Fisicamente, o jejum feito com bom senso fortalece a saúde e cura diversas doenças. O jejum ocupa lugar de destaque na medicina da antiguidade. Seu efeito curativo é bem conhecido até hoje. No entanto, é boicotado pelas medicinas que giram em torno da farmácia e servem o interesse das indústrias de remédios.
No plano do pensamento e do sentimento, a abstenção parcial ou total de alimentos promove a humildade, purifica os sentimentos, aumenta a lucidez, expande a atividade cerebral e reconstitui a harmonia interior da alma.
No plano do espírito, ele recupera ou amplia o contato com o eu superior, com a alma imortal, com o mundo divino, o Mestre. O jejum é também um instrumento central na tradição religiosa do mundo lusófono. Está enraizado na história luso-brasileira. E é recomendado pela literatura teosófica clássica.
Nas Cartas dos Mahatmas, um raja iogue dos Himalaias afirma que a prática do jejum é um dos fatores básicos na caminhada espiritual.
O instrutor enumera diversos fatores inseparáveis do jejum: a prática do silêncio e da meditação; a prática da castidade em pensamento, em palavra e ação; o domínio das paixões e dos impulsos animais; a busca de uma completa ausência de egoísmo nas intenções - e também o uso de certos tipos de incenso. O Mestre acrescenta que estes instrumentos do aprendizado espiritual são amplamente conhecidos desde a antiguidade, e que o seu uso deve ser regulado e dirigido pelo estudante, individualmente, ouvindo a sua própria consciência e consultando suas fontes de inspiração.[3]
Otimizando o Uso do Prana
O livro “Direçam para Ter os Nove Dias de Exercicios Espirituaes”, de Manuel Bernardes, foi publicado cerca de trezentos anos atrás, em Lisboa no ano de 1725, vários anos depois da morte do autor.
Empregando a linguagem do final do século 17 e começo do século 18, Bernardes aborda ali o uso de quase todos os fatores que foram citados no século 19 pelo Mestre de Sabedoria.
Para Bernardes, as práticas espirituais dão vida e alimento ao corpo e à alma. Depois de deixar claro este ponto, Bernardes examina a possibilidade de o praticante, mesmo depois de ser nutrido espiritualmente com o Manjar Divino, ingerir também alimentos físicos, durante o seu Retiro.
Cabe aqui um comentário.
A ideia de “nutrição espiritual” está ligada ao fato de que, conforme a Ioga ensina, a prática moderada de jejum amplia a capacidade natural que o corpo possui de absorver Prana através da respiração e de outros meios. O prana, a energia vital presente na natureza, é absorvido através da respiração, através dos alimentos, e também por osmose, quando o estado de espírito é elevado.
Perceber a existência do prana está ao alcance de todos. Ao nascer do Sol, em um ambiente natural, podemos sentir diretamente a intensa energia vital presente no ar. O mesmo acontece durante a maior parte da manhã, especialmente num dia ensolarado.
Transcendendo um pouco mais o plano físico, há também uma espécie superior de prana que ocorre na meditação e na atmosfera da consciência mística. Este prana sutil, a vitalidade da vitalidade, é vivenciado como resultado da prática espiritual. Ter acesso a ele reduz a necessidade de alimentos físicos.
Há, portanto, dois níveis de prana ou vitalidade que, se forem reforçados em nossa vida, podem tornar mais fácil a prática do jejum.
O primeiro é o prana da vitalidade física, absorvido via respiração (especialmente em exercícios de respiração ao ar livre e com atmosfera pura). O segundo é o prana espiritual, obtido em oração e meditação, mas que absorvemos também ao obter prana físico ao ar livre ou em exercícios de respiração.
Há uma certa simetria entre o físico e o espiritual. A prática regular do jejum físico moderado estimula e abre caminho para a alma buscar com mais eficiência o alimento sutil da energia vital presente na atmosfera elevada da oração. Em outras palavras, o jejum físico estimula uma sublimação do prana, tornando a vitalidade mais espiritual.
O Jejum é a Alma da Oração
Tendo examinado a nutrição espiritual, que reduz a necessidade de alimentos materiais, Manuel Bernardes escreve sobre o jejum de alimento físico:
“Depois de dar graças, o Exercitante pode tomar alguma refeição corporal, se a sua compleição é muito fraca e ao Diretor parece razoável esta permissão. Porém é necessário que seja muito limitada e melhor será que a evite totalmente, não havendo claros inconvenientes. Porque de outro modo o espírito da Oração é atrasado sensivelmente, sobre a qual disse o anjo a Tobias que era boa em companhia do jejum, e S. Pedro Crisólogo [4] chamou ao jejum alma da Oração.”
Manuel prossegue:
“Porque os antigos monges sabiam esta verdade; por isso, para terem muita e boa Oração, tinham muita e boa abstinência, e a punham como primeiro passo da vida espiritual, para consumir os vícios: E S. Nilo Abade (que foi um Oráculo celebérrimo nos seus tempos) disse que se espantaria se alguém fartando-se de pão, e água, pudesse alcançar o império sobre suas paixões; e o que dizer da abundância de outros manjares mais saborosos, e menos necessários? Muitas pessoas entendiam não poder evitar estes subsídios, as quais, fazendo-se depois violência, descobriram que podiam; porque Deus coloca a sua ajuda sobre os que se esforçam, e o costume se transforma em natureza.” [5]
A força de vontade permite abrir caminho, ali onde parece não haver caminho.
Conforme vimos mais acima, o Mestre de Sabedoria afirma que cabe a cada um, consultando as suas fontes de orientação, achar o caminho mais eficaz nesta e em outras questões. A palavra “jejum” é flexível, e pode incluir desde uma restrição parcial nas refeições, até uma ausência total de nutrição.
A prática concreta deve ser adaptável à realidade específica, mas o princípio geral está solidamente estabelecido.
O jejum, definido como o exercício da abstenção parcial ou total de alimentos, constitui um fator básico no caminho da sabedoria. Promove a saúde, aumenta a vitalidade e melhora a qualidade da vida nos vários níveis de consciência. Deve ser reconhecido como parte importante dos ensinamentos espirituais e como um elemento-chave da vida teosófica.
NOTAS:
[1] Página 8 da obra “Direcçam Para Ter os Nove Dias de Exercicios Espirituaes”, do padre Manoel Bernardes, da Congregação do Oratório de Lisboa, edição de 1725.
[2] “Cartas dos Mestres de Sabedoria”, editadas por C. Jinarajadasa, Editora Teosófica, Brasília, DF. Ver página 146.
[3] Veja “Cartas dos Mahatmas”, Ed. Teosófica, Brasília, volume I, Carta 20, metade superior da p. 135.
[4] Venerado por católicos e ortodoxos, Pedro Crisólogo nasceu no ano de 380 da era cristã e viveu até o ano de 450.
[5] “Direçam para Ter os Nove Dias de Exercicios Espirituaes”, Manuel Bernardes, Lisboa Ocidental, 1725, Impresso na Oficina da Música, 280 páginas, ver pp. 39-40.
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O artigo “Lições Espirituais de Manuel Bernardes” foi publicado nos websites da Loja Independente de Teosofistas no dia 08 de setembro de 2025. Uma versão anterior e bastante menor dele faz parte da edição de março de 2023 de “O Teosofista”, pp. 3-4, sob o título “O Treinamento Esotérico Segundo Manuel Bernardes”.
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Leia mais:
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Helena Blavatsky (foto) escreveu estas palavras: “Antes de desejar, faça por merecer”.
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