Como o Sofrimento Humano
Se Transforma em Sabedoria
Carlos Cardoso Aveline
A igreja de
São Francisco de Assis, em Ouro Preto
Sob a aparência simples de objetos de arte,
as obras de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1738? - 1814), desafiam o
tempo como lições de vida e como expressões da sabedoria humana.
É verdade que a
maior parte do que se sabe sobre Aleijadinho é lendário. Mas lendas servem para
transmitir verdades. O mito em torno dele conta uma história real da
brasilidade vista como um processo de alma. A vida de Aleijadinho é também uma
aula sobre como transcender o sofrimento inerente à vida. E as obras atribuídas
a ele existem de fato, podendo ser vistas por todos em cidades históricas de
Minas.
A herança cultural
de Antônio Francisco Lisboa é valiosa no século 21 porque é multidimensional. Seu
legado não está apenas nas igrejas e santuários de Minas. Inclui a tradição
oral e os documentos históricos da época. Pode ser visto e compreendido de diferentes
formas. Ganha novos significados à medida que o tempo passa e uma geração
sucede à outra.
Barroco Mineiro Afirmou a Brasilidade
Durante o ciclo do
ouro, Minas Gerais tornou-se um foco do sentimento nacional. Várias décadas
antes do grito do Ipiranga, a independência do Brasil foi proclamada no plano
abstrato dos ideais. Em Ouro Preto veio à luz o sonho ainda hoje incompleto de
que o país seja plenamente independente, solidário e próspero.
No século 18 não
havia ainda uma clara separação entre arte, indústria e artesanato. O conceito de beleza estava ligado ao que é
útil e funcional no cotidiano. Quase todo artista era, ao mesmo tempo, um
artesão e um operário. No plano político, é verdade que o barroco europeu foi
absolutista. Era uma arte centralizadora, que fortalecia o poder corrupto dos
papas e das monarquias e negava a influência do Renascimento. Mas na colônia
brasileira a realidade foi diferente: o barroco das Minas Gerais tem um sabor
criativo, renovador, inquietante - quase revolucionário por seu compromisso com
a terra dos brasileiros.
O Conflito Entre o Sagrado e o Profano
Escultor e
arquiteto do século das luzes, Aleijadinho vive o conflito entre o sagrado e o
profano. Ele combina esforço e inspiração, talento e tenacidade, imaginação e
teimosia - e desse modo consegue ser maior que o sofrimento.
Para os artistas,
como para os místicos, o infinito está dentro do que é finito. A missão da arte
é revelar a presença do eterno nas coisas passageiras. A sabedoria quer fazer
com que o espírito floresça no corpo, e que a luz surja no mundo; e Aleijadinho
vive intensamente esse combate. Deste modo ele ajuda a formar a essência do que
há de melhor na alma brasileira.[1]
É inegável que os
dados da sua vida são imprecisos. Sua biografia está envolta em lendas. Antônio Francisco foi filho natural de Manuel
Francisco Lisboa, mestre carpinteiro bem conhecido em Vila Rica do Ouro Preto.
Há indícios de que ele tenha nascido em 1738, embora seu principal biógrafo indique
a data de 1730. [2] Tampouco há um
retrato confiável de Aleijadinho. Por sua origem humilde, aquele artista mulato
não podia ser membro da elite e não merecia ser retratado. Além disso, sua
fisionomia deformada era motivo suficiente para que ele próprio evitasse
retratos.
O escritor Rodrigo
Bretas, autor da história não comprovada da sua vida, conta que ele aprendeu
desenho, arquitetura e escultura nas escolas práticas do seu pai e do
desenhista João Gomes Batista.
Com cerca de 40
anos de idade, Antônio teve um filho a quem deu o nome de Manuel Francisco
Lisboa, em homenagem a seu pai. Até essa
época o artista tinha boa saúde e uma vida cômoda. Gostava de bailes, danças e
comida farta. Mas Antônio Francisco vivia uma encruzilhada. Era difícil optar
entre a beleza sagrada e a beleza mundana. As ilusões ficam mais fortes quando
erguemos o olhar para o mundo divino. O dilema de Antônio, inicialmente
agradável, foi descrito no “Romanceiro do Aleijadinho”:
“Ó bela a quem
amo:
tens rosto de
santa.
Mulheres são
anjos?
Ó santa a quem
amo:
tens corpo
profano.
Mulheres. Não
anjos.
Ó corpo que eu
amo:
és santo ou
profano?
Mulheres não
anjos.
Ó peito com que
amo:
és sacro e
profano.
Mulheres ou anjos?”
[3]
Dor Pessoal Ensina Transcendência
Os tempos fáceis
terminaram em torno de 1777, uma data numerologicamente forte devido à presença
nela de três setes. Foi então que o Carma trouxe as moléstias físicas, símbolo
das provações do caminho espiritual. Um dia, Antônio Francisco começou a perder
os dedos dos pés. Depois de algum tempo, só podia andar de joelhos. Os dedos
das mãos atrofiavam-se e curvavam-se, em alguns casos caíam. Restavam os
polegares e os índices. A angústia e o
desespero do artista fizeram com que ele próprio cortasse pedaços de suas mãos,
usando para isso o formão com que trabalhava.
Há diferentes versões
sobre a natureza da sua doença. Seria a zamparina, que causava deformidades e
paralisia? Ou era uma doença semelhante ao escorbuto? Seria uma consequência de
excessos amorosos, como asseguravam alguns?
Com o agravamento
da doença, as pálpebras dos olhos inflamaram-se e a parte inferior delas ficou visível.
Rodrigo Bretas conta que Aleijadinho perdeu quase todos os dentes. A boca
entortou-se do modo como ocorre às vezes com os deficientes mentais. O queixo e
o lábio inferiores ficaram caídos. O olhar do artista adquiriu uma expressão de
ferocidade, que chegava assustar quem o encarasse subitamente. Essa
circunstância, e a boca torta, davam-lhe um aspecto medonho.[4]
A impressão
causada por sua fisionomia tornava Antônio Francisco agressivo. Com os
sentimentos feridos, ele ficava irritado até quando ouvia elogios. Enxergava
ironia oculta nas palavras amáveis de gente desconhecida. Embora fosse alegre e
bem-humorado entre os amigos, não tolerava a curiosidade do povo. Para evitar o
constrangimento, trabalhava oculto. Mesmo que estivesse entre as quatro paredes
de uma igreja, isolava-se do resto do salão por meio de lonas. Conta-se que certa vez um general -
provavelmente Luís da Cunha Menezes - decidiu observar de perto enquanto ele
trabalhava em pedra. Aleijadinho não pôde afastar diretamente o visitante
ilustre, mas fez cair tantas lascas de granito sobre o general que este teve de
retirar-se.
Os trabalhos eram
feitos em equipe. Aleijadinho possuía um escravo africano chamado Maurício, que
operava como entalhador e lhe era profundamente leal. Além dele, dois outros
escravos: Agostinho, também entalhador, e Januário, que guiava o burro em que o
artista se deslocava pela cidade. Para não ser visto pelas pessoas, Aleijadinho
ia de madrugada para o trabalho e dali só saía à noite.
À medida que o
sofrimento o forçava a amadurecer, o artista se elevava até uma percepção
superior das coisas. Sua vida pessoal era uma crucificação. A ressurreição
ocorria no mundo da arte. Sobre seu
trabalho em meio à dor, a poeta Stella Leonardos escreveu:
“Lá vai Antônio
Francisco
pecador talhando
santos.(...)
Lá vai Antônio
Francisco
um mal do inferno
no corpo.
Lá vai Antônio
Francisco
mais horrendo que
um demônio.
Lá vai Antônio
Francisco
das mãos lutando
com anjos.
Lá vai Antônio
Francisco
ferindo as mãos,
asas de anjo.
Lá vai Antônio
Francisco,
entre os anjos e
os demônios.
Lá vai Antônio
Francisco
mais coragem que
um demônio.” [5]
Entre os trabalhos
famosos de Aleijadinho estão sua atuação na igreja de Nossa Senhora do Carmo,
em Ouro Preto, na igreja de Nossa Senhora do Carmo, em Sabará, e na igreja de
São Francisco de Assis em Ouro Preto.
A capela de São
Francisco é considerada a melhor expressão da fase final do barroco
mineiro. Nela, Aleijadinho foi também
arquiteto e dirigiu a parte principal da obra, entre 1772 e 1779. Depois dessa data, outro mestre notável,
Manuel da Costa Ataíde, realizou grande parte das pinturas do interior.
Na imagem que fica
acima da porta principal, entre as duas torres da capela, Aleijadinho gravou um
alto-relevo que representa São Francisco de Assis, ajoelhado, tendo a visão de
Monte Alverne.
O episódio ocorreu
em 1224, na Toscana, Itália. Durante uma estadia no eremitério de Monte
Alverne, Francisco de Assis vê um anjo de seis asas que paira acima dele
pregado numa cruz. Duas asas elevam-se sobre a cabeça do anjo, simbolizando a
intenção pura e a ação correta. Duas outras asas servem para voar, e mais duas
cobrem seu corpo.
Diante dessa
visão, Francisco de Assis é tomado de alegria e tristeza ao mesmo tempo. Ao
erguer-se dali, o santo que ama a pobreza sente no corpo pela primeira vez as
marcas dos quatro pregos da cruz. São as chagas do Cristo e o anúncio da Paixão
de Francisco, que concluiria com sua morte dois anos depois.[6]
A visão de Monte
Alverne é uma das obras mais importantes atribuídas a Aleijadinho.
Será possível que o
artista, cujo corpo no final da sua participação nessa obra já começava a
despedaçar-se, tivesse um sentimento de identidade ou de antecipação em relação
aos sofrimentos, e às chagas, de São Francisco? Parece provável.
“Dor”, ou
“Dukkha”, é a primeira nobre verdade do budismo. Viver implica sofrimento, e ser maior que a
dor exige sabedoria.
Examinando o
significado místico do sofrimento pessoal na obra artística de Antônio
Francisco Lisboa, Stella Leonardos escreveu no poema “Prece do Aleijadinho”:
“Com dor ou sem
dor
ficarei de pé.
Mesmo que os
joelhos dobrem,
Mesmo que os pés
se ulcerem.
Com dor ou sem dor
usarei as mãos.
Mesmo que as mãos
se firam.
Mesmo perdendo os
dedos.
Com dor ou sem dor
subirei de joelhos
e mãos postas, meu
Deus,
Até meu próprio
fim.
Mas dai-me vida
com dor ou sem dor
a fim de que eu
termine
minha obra. E ela
fique de pé.” [7]
A Verdade Através das Lendas
O conceito de
biografia bem documentada é relativamente recente, e não oferece garantias. Ainda
hoje as narrativas biográficas de grandes personagens são temas controversos.
A biografia de Aleijadinho,
porém, assim como a de São Francisco, é mais do que escassamente documentada.
Ela é amplamente lendária, e este não é um fato isolado. As biografias
conhecidas de Buddha, Jesus e outros grandes instrutores da humanidade são
igualmente lendárias em seus aspectos materiais. Encerram verdades simbólicas.
A sabedoria
universal é ensinada por parábolas, como ensina Jesus (Marcos, 4: 1-17). Isso
ocorre, entre outros motivos, porque o ensinamento da sabedoria eterna se
dirige ao hemisfério direito do cérebro, sede da intuição espiritual. A
percepção do sagrado transcende a expressão verbal comum.
A própria noção de
Deus, como entidade monoteísta, é uma construção cultural e uma metáfora,
infelizmente levadas para o plano literal. As descrições de Deus monoteísta vêm
sendo construídas e reconstruídas incessantemente desde a antiguidade, e
continuam sendo adaptadas às circunstâncias históricas de curto prazo e aos
interesses dos sacerdotes profissionais. O fato de que há inúmeros deuses
monoteístas estabelece na prática uma espécie de panteísmo involuntário
por parte das numerosas seitas que lutam entre si pelo predomínio político nas grandes
religiões monoteístas.
Lendas, parábolas,
metáforas e outras imagens simbólicas servem para transmitir lições mais
profundas do que as dadas pelos eventos literais da vida, aos quais se apega a
mente rotineira e material. Tanto o mito
criado em torno do Aleijadinho como a lenda em torno de São Francisco são
poderosamente verdadeiros. Ecoam na alma humana, transcendem a visão das aparências,
e por isso permanecem vivos ao longo do tempo. [8]
Um aspecto
dominante da obra atribuída a Aleijadinho e sua equipe está nas esculturas de
doze profetas, construídas em pedra-sabão entre 1800 e 1805 no pátio frontal da
Igreja de Bom Jesus de Congonhas do Campo.
São quatro
profetas maiores - Isaías, Jeremias, Ezequiel e Daniel - e oito profetas
menores. Todos eles anunciam a vitória da fraternidade universal proposta pela
tradição cristã.
No século 20 o
movimento modernista reencontrou as raízes da brasilidade nas cidades
históricas de Minas. O poeta Oswald de Andrade escreveu:
“No anfiteatro das
montanhas
os profetas de
Aleijadinho
monumentalizam a
paisagem.
As cúpulas brancas
dos Passos
e os cocares
revirados das palmeiras
são degraus da arte
do meu país
onde ninguém subiu
jamais.
Bíblia de
pedra-sabão
banhada no ouro
das Minas.” [9]
Aleijadinho não
fez fortuna. Ele era descuidado na administração do dinheiro e foi roubado várias
vezes. Além disso, dividia seus ganhos pela metade com o escravo Maurício e
dava esmola aos pobres. No final da vida,
libertou seus escravos.
Em 1812 o artista
ficou quase totalmente cego e foi viver na casa da sua nora Joana Francisca,
que cuidou dele com devoção. O final chegou aos 76 anos de idade, dia 18 de novembro
de 1814. [10]
A Força de Aleijadinho no Século 21
O tempo tem
mistérios inesgotáveis: séculos depois de sua morte, a presença sutil de
Aleijadinho é perceptível em Ouro Preto. As velhas casas, ruas e morros desse
município que é patrimônio da humanidade preservam consigo a atmosfera do
século 18 e são um poderoso centro de respeito e amor pelas coisas do Brasil.
Em agosto de 2004,
estive durante três dias em Ouro Preto. O objetivo era codirigir um pequeno
seminário sobre a influência da tradição mística na formação histórica e
cultural do Brasil. Verifiquei ali mais uma vez que, dentro de certos limites,
não é difícil viajar no tempo.
Meditei à maneira
dos iogues nas igrejas da antiga capital mineira. Recitei nelas o Gayatri
em sânscrito. Com a mente vazia e o coração pleno, caminhando como se vivesse
em outra época, investiguei diretamente um dos mitos mais verdadeiros de Minas
e do Brasil. Tive a oportunidade de, conforme sugere o poema, -
“Pisar com carinho
as ruas
Que o Aleijadinho
pisou
E onde serestas
flutuam.
Pisar com carinho
as ruas
Que o Aleijadinho
pisou
Marcando-as com
sua força,
à força de
frustração.
Como se as ruas
não fossem
de pedra, e as
pedras não fossem
Pedaços do
coração.” [11]
NOTAS:
[1]
Veja “Idéias Filosóficas no Barroco Mineiro”, Joel Neves, Ed. Itatiaia, BH,
1986, 195 pp., p. 31.
[2] Sobre
indícios a respeito da data de nascimento, ver “O Aleijadinho de Vila Rica”, Waldemar de Almeida Barbosa, Ed.
Itatiaia, BH, 1984, 95 pp. em tamanho ofício, pp. 09, 10 e 32.
[3] “Romanceiro do Aleijadinho”, Stella
Leonardos, Ed. Itatiaia, BH, 1984, 111 pp., ver p. 26.
[4] “O
Aleijadinho de Vila Rica”, Waldemar de Almeida Barbosa, obra citada, pp. 32 e 33.
[5] “Romanceiro
do Aleijadinho”, Stella Leonardos, obra citada, p. 17.
[6] “São
Francisco de Assis, Escritos e Biografias”,
Ed. Vozes, RJ, 1991, 1372 pp., ver p. 246. Sobre as asas ligadas à cabeça,
ver p. 263.
[7] “Romanceiro
do Aleijadinho”, obra citada, ver p. 52.
[8]
Sobre o caráter não-histórico da biografia conhecida de Aleijadinho, veja-se
algumas páginas verdadeiramente demolidoras na obra “Arte Religiosa”, de
Augusto de Lima Jr., Edição do Instituto de História, Letras e Arte, Belo
Horizonte, MG, 1966, 170 pp., mais precisamente pp. 161-169.
[9] “O Aleijadinho de Vila Rica”, obra citada, p. 45.
[10] A vida de Aleijadinho, na versão mais ou menos
lendária de Rodrigo José Bretas, inspirou o bom filme “O Aleijadinho, Paixão, Glória e Suplício”, de Geraldo Santos
Pereira, disponível em DVD (Paris Filmes). O filme tem 110 minutos de duração.
[11] “Romanceiro do Aleijadinho”, obra citada, p. 37
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Uma versão inicial do texto acima foi
publicada na revista “Planeta”, de São Paulo, em novembro de 2004. A presente versão, revisada, foi entregue
para publicação online em dezembro de 2011.
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Para
acompanhar um diálogo com a sabedoria de vida de grandes pensadores dos últimos
2500 anos, leia o livro “Conversas na
Biblioteca”, de Carlos Cardoso Aveline.
O livro
foi publicado pela Edifurb, de Blumenau, Santa Catarina. Com 170 páginas
divididas em 28 capítulos, ele foi publicado em 2007.
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