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15 de novembro de 2016

Carl Jung, a Ética e a Psicologia

Três Trechos de Fromm, 
Sobre a Importância do Amor à Vida

Erich Fromm

Erich Fromm (1900-1980)


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Nota Editorial:  

A Ética pode ser definida como a arte de plantar bom
carma, e ela tem a maior importância, porque todos os 
seres colhem conforme o que plantam. Esta é a lei
da vida, e ela é essencial para a filosofia teosófica. 
Nos trechos a seguir, o psicanalista e escritor Erich
Fromm vai muito além de mostrar a função da Ética
como fonte essencial de Felicidade, ou de revelar a
ausência de ética que há na psicologia de Carl Jung. 
Erich Fromm mostra o perigo atual da necrofilia,
isto é,  da admiração pela decadência, pela violência e
pela morte. A negação da vida também está na adoração
do dinheiro, e no culto à tecnocracia e às máquinas. Fromm
fez  o seguinte alerta: “O lema do fascismo espanhol,
‘Viva a Morte!’ ameaça tornar-se o princípio secreto de
uma sociedade em que a dominação da natureza pela máquina
constitui o próprio significado do progresso, e em que a pessoa
viva se torna um apêndice da máquina”. (“The Anatomy of
Human Destructiveness”, Fawcett Pub., 1973, pp. 31-32.) 
Os três trechos a seguir mostram que o pensamento de
Erich Fromm tem pontos decisivos em comum com a
sabedoria universal e com a filosofia esotérica de Helena 
Blavatsky. O texto de Fromm é um vigoroso Manifesto
Pelo Amor à Vida, e neste ponto cabe lembrar que, segundo
a teosofia clássica,  há uma diferença fundamental entre
o amor, que é do eu superior, e o apego, que é do
eu inferior. A sabedoria esotérica ensina a amar a vida,
sem apegar-se desnecessariamente à existência pessoal.
Na realidade, o verdadeiro amor transcende todo apego.

(Carlos Cardoso Aveline)

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[1. A Psicologia É Inseparável da Ética]

[Texto traduzido das pp. VII a IX da obra “Man For Himself”, de Erich Fromm, publicada por Holt, Rinehart and Winston, em 1960, New York, 254 pp.]  

Para muitos leitores, pode parecer surpreendente encontrar um psicanalista abordando problemas de ética e, especialmente, afirmando que a psicologia não deve apenas deixar de lado os falsos julgamentos éticos, mas deve, além disso, dar uma base para a construção de normas de conduta válidas e objetivas. Esta posição contradiz a tendência dominante na psicologia moderna, que enfatiza a “adaptação” ao invés da “bondade”, e  que fica, por isso mesmo, associada ao relativismo ético.  

Minha experiência profissional como psicanalista tem confirmado a convicção de que os problemas éticos não podem ser omitidos do estudo da personalidade, nem teoricamente, nem terapeuticamente. Os julgamentos de valor que fazemos determinam as nossas ações; e da validade deles dependem a nossa saúde mental e a nossa felicidade. Considerar tais avaliações como meras racionalizações de desejos inconscientes e irracionais − embora elas possam ser isso em parte − reduz e distorce a nossa visão da personalidade com um todo. A própria neurose é, em última análise, um sintoma de falha moral (embora a “adaptação” não seja, de modo algum, um sintoma de progresso moral).

Em muitos casos, um sintoma neurótico é a expressão específica de um conflito moral, e o sucesso do esforço terapêutico depende da compreensão e da solução do problema moral da pessoa.  

O divórcio entre a psicologia e a ética é relativamente recente. Os grandes pensadores éticos e humanistas do passado, em cuja obra este livro se baseia, foram filósofos e psicólogos. Eles acreditavam que a compreensão da natureza humana e a compreensão de valores e normas para a vida eram processos interdependentes. Freud e a sua escola, por outro lado, embora tenham feito uma contribuição de incalculável valor para o abandono de julgamentos de valor que são irracionais, adotaram uma posição relativista em relação a valores. E isso teve um efeito negativo, não só sobre a evolução da teoria ética, mas também sobre o progresso da própria psicologia. A exceção mais notável a esta tendência na psicanálise é Carl G. Jung. Ele reconheceu que a psicologia e a psicoterapia são inseparáveis dos problemas filosóficos e morais do ser humano. Mas, embora este reconhecimento seja extremamente importante em si mesmo, a orientação filosófica de Jung levou a uma mera reação contra Freud, e não a uma psicologia filosoficamente orientada que possa ir além de Freud.  

Para Jung, “o inconsciente” e o mito se tornam novas fontes de revelações, supostamente superiores ao pensamento racional, por causa da sua origem não-racional. A força das religiões monoteístas do Ocidente, e das grandes religiões da Índia e da China, vinha do fato de que elas reivindicavam a verdade e afirmavam que as suas crenças eram as verdadeiras crenças. Embora esta convicção frequentemente causasse uma intolerância fanática contra as outras religiões, na época ela inspirava, tanto em seus seguidores como em seus oponentes, um respeito pela verdade. 

Em sua admiração eclética por qualquer religião, Jung abandonou, em sua teoria, a busca da verdade. Qualquer sistema, uma vez que seja irracional, qualquer mito ou símbolo, tem para Jung igual valor. Ele é um relativista, em relação a religiões. Ele propõe o negativo, e não o oposto, do relativismo racional que combate tão ardentemente. Este seu irracionalismo, ainda que velado em termos psicológicos, filosóficos, raciais ou políticos, não é progresso, e sim uma reação. A falha do racionalismo do século 18 e do século 19 não esteve no fato de acreditar na razão, mas no caráter estreito dos seus conceitos. O que pode corrigir os erros de um racionalismo unilateral não é renunciar à Razão, mas usar ainda mais a Razão, buscando incessantemente a verdade -; e não um obscurantismo pseudorreligioso.  

A psicologia não pode ser separada da filosofia e da ética, nem da sociologia, nem da economia.

[2. O Que É Necrofilia]  

[ Trecho traduzido das pp. 367-368 da obra “The Anatomy of Human Destructiveness”, de Erich Fromm, publicada por Fawcett Publications Inc., Greenwich, Connecticut, EUA, 1973, 576 pp.] 

O termo “necrófilo” - para indicar um traço de caráter, mais do que um ato perverso no sentido tradicional - foi usado pela primeira vez pelo filósofo espanhol Miguel de Unamuno em 1936, por ocasião de um discurso do general nacionalista Millán Astray na Universidade de Salamanca, da qual Unamuno era reitor, no início da Guerra Civil espanhola. O lema favorito do general era “Viva la Muerte!” (“Viva a Morte!”), e um dos seus seguidores o gritava do fundo do salão. Quando o general terminou o seu discurso, Unamuno ergueu-se e disse:

“Acabo de ouvir um grito necrófilo e absurdo: ‘Viva a Morte!’ E eu, que passei a vida toda produzindo paradoxos que despertavam a raiva intolerante de outros, devo dizer a vocês, com a autoridade que tenho no assunto, que este estranho paradoxo é repugnante para mim. (.....)”. [1] (.....) Diante disso, Millán Astray não pôde mais conter-se. Ele gritou: “Abajo la inteligencia!” (“Abaixo a inteligência!”). “Viva la muerte!”

Houve entre os fascistas um clamor de apoio a suas palavras. Mas Unamuno continuou: “Este é o templo do intelecto. E eu sou o seu alto sacerdote. São vocês que estão profanando este recinto sagrado. Vocês vencerão, porque têm força bruta mais do que suficiente. Mas não convencerão. Para convencer, vocês teriam que ter em sua luta o que não possuem, a razão e a justiça. Considero inútil exortá-los a pensar na Espanha, e nada mais tenho a dizer.” (.....) A necrofilia, no sentido de caracterização de alguém, pode ser descrita como a atração apaixonada por tudo o que é morto, decadente, pútrido, doentio; é a paixão por transformar o que está vivo em alguma coisa sem vida; a paixão da destruição pela destruição; o interesse exclusivo em tudo o que é puramente mecânico. É a paixão por despedaçar estruturas vivas. 

[3. Além de Jung e Hitler: a Ética do Amor à Vida]

[ Trechos traduzidos das pp. 43-50 da obra “The Heart of Man – its genius for good and evil”, de Erich Fromm, publicada por Harper & Row, Publishers, New York-Evanston-San Francisco-London,1964, 212 pp. ] 

Há grande número de indivíduos que não têm a oportunidade e a possibilidade de matar, mas cuja necrofilia se expressa de outras maneiras, que, vistas superficialmente, parecem menos prejudiciais. Um exemplo disso é a mãe que sempre está interessada nas doenças do seu filho, em seus fracassos, e em prognósticos sombrios para o futuro. Ao mesmo tempo, ela não ficará muito impressionada por alguma mudança favorável. Ela não ficará contagiada pela alegria da criança. Não notará nada de novo crescendo nele. Podemos descobrir que em seus sonhos ela lida com doença, morte, cadáveres, sangue. Ela não prejudica a criança de qualquer maneira óbvia. No entanto, pode estrangular lentamente a sua alegria de viver, a sua fé no crescimento, e, finalmente, ela o infetará com a sua própria orientação necrófila.  

Muitas vezes, a orientação necrófila está em conflito com tendências opostas, de modo que é alcançada uma estranha forma de equilíbrio. Um exemplo notável deste tipo de caráter necrófilo foi Carl G. Jung. Em sua autobiografia, publicada postumamente [2], ele dá ampla evidência disso. Os seus sonhos estão predominantemente cheios de cadáveres, sangue, mortes. Como uma manifestação típica do seu caráter necrófilo na vida real, mencionarei o seguinte. 

Enquanto a casa de Jung em Bollingen estava sendo construída, foi encontrado o cadáver de um soldado francês. O soldado havia se afogado 150 anos antes, quando Napoleão invadiu a Suíça. Jung tirou uma foto do cadáver e a pendurou na parede da sua casa. Ele o enterrou e disparou três tiros sobre sua tumba, como uma saudação militar. Vista superficialmente, esta ação pode parecer um pouco excêntrica, porém sem grande importância. No entanto, ela é uma das muitas ações “insignificantes” que expressam uma orientação subjacente com mais clareza que as ações importantes e intencionais.  

O próprio Freud notou, muitos anos antes, a orientação de Jung em relação à morte. Quando Freud e Jung estavam embarcando para os Estados Unidos, Jung falou longamente sobre os cadáveres bem preservados que haviam sido encontrados nos pântanos perto de Hamburgo. Freud não gostou deste tipo de conversa, e disse a Jung que ele falava daquele modo porque inconscientemente estava cheio de desejos de que Freud morresse. Jung reagiu contra isso com indignação. No entanto, alguns anos mais tarde, mais ou menos na época do seu afastamento de Sigmund Freud, ele teve o seguinte sonho. Ele sentia que ele próprio (junto com um nativo de raça negra) tinha que matar “Siegfried”. Ele saiu com um rifle, e quando Siegfried apareceu no alto de uma montanha, ele o matou. Então ele se sentiu horrorizado e assustado, temendo que seu crime pudesse ser descoberto. Mas, afortunadamente, caiu uma forte chuva que lavou todos os vestígios do crime. Jung acordou pensando que deveria matar-se, a menos que pudesse compreender o sonho. Depois de pensar um pouco, ele chegou à seguinte “compreensão”: matar Siegfried significava matar o herói dentro de si mesmo, e assim expressar sua própria humildade. A pequena mudança de “Sigmund” para “Siegfried” foi suficiente para fazer com que um homem cuja maior habilidade era interpretar sonhos escondesse de si mesmo o verdadeiro significado deste sonho. Se nos perguntamos sobre como foi possível uma repressão tão intensa, a resposta é que o sonho era uma manifestação da sua orientação necrófila, e na medida em que toda esta orientação era intensamente reprimida, Jung não podia permitir-se estar consciente do significado do seu sonho.  

Este contexto é reforçado pelo fato de que Jung era fascinado pelo passado, e raramente se interessava pelo presente ou pelo futuro; pelo fato de que as pedras eram o seu material favorito, e que, quando criança, ele teve a fantasia de que Deus lançava um grande pedaço de matéria fecal sobre uma igreja, e assim a destruía. As simpatias de Jung por Hitler e as suas teorias raciais são outra expressão da sua afinidade com pessoas que amam a morte.  

No entanto, Jung era uma pessoa muito criativa, e a criatividade é o próprio oposto da necrofilia. Ele resolveu o conflito dentro de si mesmo compensando suas forças destrutivas com a sua capacidade de curar, e transformando o seu interesse pelo passado, pela morte e pela destruição, em tema de brilhantes especulações.  

Nesta descrição da orientação necrófila, posso ter dado a impressão de que todas as características mencionadas estão necessariamente presentes na pessoa necrófila. É verdade que características divergentes, como o desejo de matar, a adoração da força, a atração pela morte e pela sujeira, o sadismo, o desejo de transformar o orgânico no inorgânico através da “ordem”, são, todas, parte da mesma orientação básica.  

No entanto, no que diz respeito a indivíduos, há diferenças consideráveis na intensidade destas respectivas tendências. Qualquer uma das características aqui mencionadas deve ser mais forte em uma pessoa que em outra. Além disso, o grau em que uma pessoa é necrófila − em comparação com os seus aspectos biófilos - e o grau em que uma pessoa tem consciência das suas tendências necrófilas ou as racionaliza, varia consideravelmente de pessoa a pessoa. No entanto, o conceito do tipo necrófilo não é de modo algum uma abstração, e tampouco um resumo de várias tendências dispersas de comportamento. (.....) 

O oposto da orientação necrófila é a orientação biófila. A sua essência é o amor à vida, em contraste com o amor pela morte.  

Como a necrofilia, a biofilia não é constituída por um único traço, mas representa uma orientação total, todo um modo de vida. Ela se manifesta nos processos corporais da pessoa, em suas emoções, em seus pensamentos e em seus gestos. A orientação biófila se expressa em todo o ser humano. A forma mais elementar desta orientação se expressa na tendência que todos os organismos vivos têm de viver. Ao contrário da ideia de Freud em relação a um “instinto de morte”, eu concordo com a conclusão − a que chegaram muitos biólogos e filósofos − de que viver e preservar a sua existência é uma qualidade inerente a toda substância viva. Nas palavras de Spinoza: 

“Toda coisa, na medida em que existe em si, esforça-se por perseverar no seu ser.” [3] E ele disse que este esforço era a própria essência da coisa em questão. [4]  

Observamos esta tendência de viver em todas as substâncias vivas que nos rodeiam; na grama que irrompe entre as pedras para obter luz e viver; no animal que luta até o final para escapar da morte; e no homem, que faz quase qualquer coisa para preservar sua vida.

A tendência a preservar a vida e a lutar contra a morte é a forma mais elementar da orientação biófila, e é comum a toda substância viva. Enquanto é uma tendência de preservar a vida e de lutar contra a morte, a biofilia representa só um aspecto do impulso em direção à vida. O outro aspecto é mais positivo: a substância viva tem a tendência de se integrar e de se unir. Ela tende a se fundir com entidades diferentes e opostas, e a crescer de uma maneira estrutural. A unificação e o crescimento integrado são características de todos os processos vitais; não só no que se refere às células, mas também no que diz respeito ao sentimento, e ao pensamento. A expressão mais elementar desta tendência é a fusão entre células e organismos, desde a fusão não-sexual de células até a união sexual entre os animais e entre os seres humanos. Nestes últimos, a união sexual é baseada na atração entre os polos masculino e feminino. A polaridade macho-fêmea constitui o centro da necessidade de fusão, da qual depende a vida da espécie humana. Parece que por esta mesma razão a natureza deu aos seres humanos o mais intenso prazer na fusão dos dois polos. Biologicamente, o resultado desta fusão é, normalmente, a criação de um novo ser. (.....) O desenvolvimento completo da biofilia é encontrada na orientação produtiva. [5]  

O indivíduo que ama completamente a vida é atraído pelo processo da vida e do crescimento em todas as esferas. Ele prefere construir, ao invés de reter. Ele é capaz de surpreender-se, e prefere ver algo novo, ao invés da segurança de confirmar o que é velho. Ele ama a aventura de viver, mais do que ama a certeza. Seu enfoque da vida é funcional, ao invés de mecânico. Ele vê o todo, e não apenas as partes. Percebe as estruturas, mais do que a soma aritmética. Ele quer moldar e influenciar através do amor, da razão, e do seu exemplo, e não pela força, pela separação, ou pela maneira burocrática de administrar pessoas como se fossem coisas. Ele aprecia a vida em todas as suas manifestações, ao invés de ter, apenas, ansiedade. A ética biófila  tem os seus próprios princípios sobre bem e mal. Bom é tudo o que serve à vida. Mau é o que serve à morte. Bom é o sentimento de reverência pela vida [6], e por tudo o que aumenta a vida, o crescimento, o desenvolvimento. Mau é tudo o que enrijece a vida, que a torna estreita, ou que a corta em pedaços. A alegria é virtuosa. A tristeza é um pecado.  

(.....)  

A consciência biófila é motivada por sua atração pela vida e pela felicidade. O esforço moral consiste em fortalecer o amor à vida em si mesmo. Por esta razão, o biófilo não se demora com remorsos e culpa, que são, afinal, apenas repugnância por si mesmo e tristeza. Ele se volta rapidamente para a vida, e tenta fazer o bem.   

A “Ética” de Spinoza [7] é um exemplo notável de moralidade biófila. “O prazer”, diz ele, “em si mesmo, não é mau, mas bom; ao contrário, a dor, em si mesma, é má.” [8] 

E, seguindo na mesma linha de pensamento:

“A última coisa em que pensa um homem livre é na morte; e a sua sabedoria é uma meditação, não sobre a morte, mas sobre a vida” [9].  

O amor à vida está na base das várias versões da filosofia humanística. Em suas formas conceituais bastante diversas, estas filosofias têm afinidade com a filosofia de Spinoza. Elas expressam o princípio de que o ser humano saudável ama a vida; de que a tristeza é um pecado e o contentamento uma virtude; de que a meta do ser humano é estar em unidade com  tudo o que vive, e separar-se de tudo o que é morto e mecânico.  

NOTAS:  

[1] Unamuno permaneceu em prisão domiciliar até morrer, alguns meses mais tarde. (Nota de Erich Fromm)

[2] “Memories, Dreams, Reflections”, ed. por Anmiéla Jaffé, Pantheon Books, New York, 1963. Cf. minha discussão deste livro na “Scientific American” de setembro de 1963. (Nota de Erich Fromm)  

[3] “Ética”, III, proposição VI. (Nota de Erich Fromm)

[4] “Ética”, III, proposição VII. (Nota de Erich Fromm)

[5] Veja a discussão da orientação produtiva na obra “Man for Himself”, Erich Fromm (New York: Holt, Rinehart and Winston, 1947). (Nota de Erich Fromm)

[6] Esta é uma das principais teses de Albert Schweitzer, um dos grandes representantes do amor à vida - tanto por seus escritos como por sua pessoa. (Nota de Erich Fromm)

[7] Cabe registrar que Spinoza é um filósofo considerado muito próximo da filosofia teosófica original. (CCA)  

[8] “Ética”, IV, proposição XLI. (Nota de Erich Fromm)

[9] “Ética”, IV, proposição LXVII. (Nota de Erich Fromm)
  
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O artigo acima foi publicado nos websites da Loja Independente de Teosofistas em novembro de 2016.

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Leia mais:





* O Medo Latente (artigo de Jean des Vignes Rouges). 

Veja escritos de Jean des Vignes Rouges

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Helena Blavatsky (foto) escreveu estas palavras: “Antes de desejar, faça por merecer”.

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27 de agosto de 2015

Freud, Jung e a Religião

Erich  Fromm Resgata  a  Ética  Universal e
Mostra Que a Obra de Jung Não Tem Alicerces

Erich Fromm

Carl Jung, que colaborou com o nazismo (esquerda), Sigmund Freud e Erich Fromm


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Nota Editorial:

O texto a seguir ajuda a compreender a
relação entre a psicologia esotérica oriental e
a psicologia atual do Ocidente.  “Freud, Jung
e a Religião” é uma transcrição do capítulo dois da
obra “Psicanálise e Religião”, de Erich Fromm (Livro
Íbero Americano Ltda., RJ, 1966, 139  pp.). O ponto de
vista de Erich Fromm (1900-1980) coincide, em vários
pontos decisivos, com o da filosofia  esotérica original.

(Carlos Cardoso Aveline)

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Freud discutiu o problema das relações entre a religião e a psicanálise em um dos seus livros mais brilhantes e profundos - “O Futuro de Uma Ilusão”. Carl Jung, o primeiro psicanalista a compreender que tanto os mitos como as ideias religiosas exprimem verdades profundas, abordou o assunto em uma série de conferências, publicadas sob o título “Psicologia e Religião”. [1]

Procurarei apresentar, de modo sumário, a posição dos referidos autores, com uma tríplice finalidade:

1) Indicar a situação atual do problema, e definir assim o meu próprio ponto de partida.

2) Lançar os alicerces para os próximos capítulos, esclarecendo alguns conceitos fundamentais usados por Freud e Jung.

3) Corrigir a opinião, bastante generalizada, de que Freud é “contra” e Jung “favorável” à religião, o que significa uma excessiva simplificação de um problema tão complexo.

Qual é a posição de Freud em relação ao assunto? Para ele, a religião tem a sua origem no sentimento de incapacidade do homem, quando se vê confrontado com as potências exteriores, provindas da natureza, e com o seu próprio dinamismo instintivo. A religião aparece numa fase precoce do desenvolvimento filogenético, quando o homem ainda não pode usar a sua razão para dominar as primeiras forças, e reprimir ou controlar as segundas.

Assim, incapaz de opor-se a tais energias por um movimento racional, ele recorre a afetos opostos, a outras forças emocionais, cuja função é dominar o mais perfeitamente possível o que escapa ao controle da sua razão.

Nesse processo, o ser humano desenvolve o que Freud chama uma “ilusão”, moldando-a de acordo com a sua própria experiência individual nos primórdios da vida. Confrontado com forças perigosas, primitivas e incompreensíveis, intrínsecas e extrínsecas, ele volta a etapas infantis, e recorda o tempo em que se sentia seguro com a presença de um pai de sabedoria e poder superiores ao seu, cujo amor e proteção podia conquistar pela obediência e respeito.

Assim, a religião, para Freud, nada mais é que a repetição de uma experiência infantil. O ser humano lida com os elementos ameaçadores do mesmo modo que, quando criança, aprendeu a reduzir a sua própria insegurança pela confiança, admiração e respeito medroso por seu próprio pai. Dentro desse raciocínio, Freud compara a religião com as neuroses obsessivas do período infantil, afirmando que as mesmas condições que desencadeiam a obsessão presidem à estrutura religiosa.

A análise freudiana das raízes psicológicas do fenômeno religioso procura esclarecer por que o ser humano chegou a formular a ideia de Deus. Conclui esse autor que a irrealidade do conceito teísta transparece quando se compreende que ele nada mais representa do que a objetivação ilusória de um desejo humano. [2]

Freud não se limita a provar que a religião é uma ilusão. Diz que toda religião constitui um perigo, porque tende a santificar instituições viciosas, com as quais se tem aliado através dos tempos. Além disso - porque ensina às pessoas a acreditarem em uma ilusão e condena o pensamento crítico - provoca certa estagnação intelectual. [3]

Estas acusações contra a igreja foram, aliás formuladas pelos pensadores da Renascença. Mas dentro da orientação freudiana, a limitação intelectual por influência religiosa aparece de modo muito mais enfático do que nas obras do século XVIII. Freud demonstrou que a inibição da crítica em relação a um determinado aspecto conduz a um enfraquecimento em outras esferas do pensamento, diminuindo desse modo a força da razão. A terceira objeção de Freud baseia-se no fato de que a religião coloca a moralidade humana sobre alicerces instáveis. Se a validade das regras éticas repousa na sua origem divina, a própria ética terá de sofrer as mesmas vicissitudes do sentimento religioso. Desde que Freud acredita que a crença em Deus está progressivamente decaindo, ele chega à conclusão de que a conexão entre religião e moral terá como consequência inevitável a destruição dos valores éticos.

Receia ele que a religião venha a comprometer valores que lhe são caros, isto é, a razão, a diminuição do sofrimento humano e a moralidade. Quanto aos ideais em que acredita, Freud definiu-os claramente: amor fraternal entre os homens (Menschenliebe), verdade e liberdade. Razão e liberdade são interdependentes, diz o autor em apreço. Se o homem prescinde da ilusão de um Deus paternal, se encara a sua própria solidão e insignificância no universo, ele se sentirá como a criança longe da casa paterna. Mas o verdadeiro sentido do desenvolvimento humano consiste em sobrepujar esta fixação infantil. A educação deve encorajar a aceitação da realidade. Quando sabe que deve se apoiar apenas nas suas próprias forças, o homem aprende a usá-las eficientemente.

Somente o homem livre, que conseguiu emancipar-se de autoridades - autoridades que ameaçam e protegem - pode fazer uso do seu poder racional e compreender o mundo e a sua própria função no universo, objetivamente, sem ilusões, mas também com a habilidade de desenvolver ao máximo as potencialidades que lhe são inatas. Somente quando conseguimos abrir mão da nossa dependência infantil, e deixamos de temer autoridades, temos coragem para pensar independentemente. E a recíproca também é verdadeira: somente se tivermos coragem para pensar, somos capazes de nos emancipar do domínio e da prepotência. É curioso verificar que Freud afirma ser o sentimento de incapacidade oposto ao sentimento religioso. Uma vez que muitos teólogos, e, como veremos mais adiante, Jung, até certo ponto, consideram o sentimento de dependência e de incapacidade como o núcleo da experiência religiosa, a asserção freudiana torna-se muito importante. Exprime, ainda que apenas implicitamente, o seu próprio conceito de experiência religiosa, a saber, de independência e de conhecimento das próprias forças. Procurarei mostrar mais adiante que tal diferença de pontos de vista constitui um dos problemas críticos da psicologia da religião.

Passando agora a Jung, verificaremos que discorda das ideias de Freud a cada passo.

Inicia o seu estudo por uma discussão dos princípios gerais que o orientam. Enquanto que Freud, embora não fosse filósofo profissional, encara o problema pelo ângulo psicológico e também filosófico, a exemplo de William James, Dewey e MacMurray, Jung declara no princípio do seu livro: “Restrinjo-me à observação de fenômenos e abstenho-me de qualquer aplicação de considerações metafísicas ou filosóficas.” [4]

A seguir, explica como pode o psicólogo analisar a religião, sem apelar para considerações filosóficas. Qualifica a sua posição de “fenomenológica”, quer dizer, preocupada com ocorrências, acontecimentos, experiências, em suma com fatos. A verdade é um fato e não um julgamento. Por exemplo, em relação à concepção da Virgem, a psicologia preocupa-se apenas com o fato de que existe tal ideia, mas não se interessa em saber se o conteúdo ideológico é verdadeiro ou falso em qualquer outro sentido. Desde que existe, a ideia deve ser considerada como verdade psicológica. A existência psicológica é subjetiva, enquanto a ideia ocorre apenas a um indivíduo; mas torna-se objetiva quando estabelecida por uma sociedade - consensus gentium. [5]

Antes de apresentar a posição de Jung em face do fenômeno religioso, convém examinar criticamente essas premissas metodológicas. O conceito de verdade, proposto por Jung, é insustentável. Declara ele que “a verdade é um fato e não um julgamento”, que “um elefante é verdadeiro porque existe” [6], mas se esquece de que a verdade sempre, e necessariamente, se refere a um julgamento e não à simples descrição de um fenômeno que percebemos sensorialmente e designamos com um símbolo verbal. Jung declara que uma ideia é “psicologicamente verdadeira desde que existe”, mas a verdade é que a ideia “existe”, independentemente da sua natureza delirante ou factual.

A existência de uma ideia não a torna “verdadeira” de modo algum. Nem o psiquiatra poderia trabalhar se desprezasse o conceito de verdade, quer dizer, a relação da ideia com os fenômenos que procura elucidar. De outro modo, como poderia ele identificar um delírio ou um sistema paranoide? Mas o ponto de vista junguiano não é indefensável apenas pelo critério psiquiátrico; Jung defende um ponto de vista relativista que, embora aparentemente mais favorável à religião do que o de Freud, se opõe fundamentalmente a religiões como o judaísmo, cristianismo e budismo, que consideram a busca da verdade como uma das virtudes essenciais do homem e insistem em que o seu corpo de doutrina, obtido por uma revelação ou pelo poder da razão, não transgride o critério da verdade.

Jung critica as fraquezas da sua própria posição, mas o modo pelo qual procura resolver essas dificuldades iniciais é insatisfatório. Procura distinguir entre “subjetivo” e “objetivo”, apesar da qualidade indiscutivelmente fluída desses termos. Parece querer dizer que o objetivo é mais válido e verdadeiro do que o simplesmente subjetivo. O seu critério para distinguir o subjetivo do objetivo, na base da aprovação por um único indivíduo ou por uma sociedade, não resiste à crítica. Por acaso não temos nós assistido a loucuras coletivas, à loucura de grupos inteiros, no nosso próprio século? Não temos acaso visto milhões de pessoas, falsamente guiadas por suas paixões irracionais acreditarem em ideias tão delirantes e irracionais como as produções de um único indivíduo? O que significa qualificar tais ideias de objetivas? O espírito deste critério de subjetividade e objetividade é análogo ao do igualmente discutível relativismo. Mais especificamente, trata-se de um relativismo sociológico, que faz da aceitação social de uma ideia o critério de sua validade, verdade, ou “objetividade”. [7]

Após discutir as suas premissas metodológicas, Jung define a sua orientação em relação ao magno problema: o que é religião? Qual a natureza da experiência religiosa? A sua definição de religião não difere essencialmente da adotada por muitos teólogos. Pode ser sumarizada dizendo que a essência da experiência religiosa é a submissão a poderes superiores. Mas será melhor citar Jung diretamente. Afirma ele que religião é uma observação cuidadosa e escrupulosa do que Rudolph Otto adequadamente chamou “luminosum”, quer dizer, uma existência dinâmica que não seja causada por ato arbitrário da vontade; ao contrário, constitui uma experiência que domina e controla o indivíduo humano, que a vive passivamente. [8]

Havendo definido a experiência religiosa como a dominação por uma força exterior a nós mesmos, Jung passa a interpretar o conceito de inconsciente como um fenômeno religioso. Declara que o inconsciente não pode ser apenas uma simples parte da mente individual; constitui um poder que escapa ao nosso controle, invadindo a nossa própria mente. “O fato de que você percebe a voz do inconsciente nos seus sonhos não prova coisa alguma, porque você pode igualmente ouvir as vozes da rua, sem, entretanto, afirmar que esses últimos fonemas sejam fenômenos interiores. Só é possível considerar a voz do inconsciente como realmente sua, se você admitir a sua personalidade consciente como parte de um todo, ou como um círculo menor contido em um círculo maior. Um simples bancário, que mostra a cidade a um amigo e aponta o edifício do banco, dizendo, ‘veja lá o meu Banco’, está recorrendo ao mesmo privilégio.” [9]

Como consequência necessária da referida definição de religião e de inconsciente, Carl Jung chega à conclusão de que, dada a sua natureza, a influência do inconsciente sobre nós “é um fenômeno religioso básico”. [10] Segue-se que tanto os dogmas religiosos como os sonhos são fenômenos religiosos, porque ambos traduzem a nossa dominação por um poder exterior. Não há necessidade de dizer que, de acordo com a lógica de Jung, o pensamento psicótico seria um fenômeno eminentemente religioso.

Por acaso, o nosso exame das atitudes de Freud e Jung em relação ao fenômeno religioso confirma a opinião popularmente aceita, de que Freud é inimigo e Jung amigo da religião? Uma comparação sumária do ponto de vista desses autores mostra que a concepção popularmente generalizada constitui exagerada e perigosa simplificação.

Freud sustenta que o objetivo do desenvolvimento humano é a realização dos seguintes ideais: conhecimento (razão, verdade, logos), amor fraternal, redução do sofrimento, independência e responsabilidade. Esses elementos constituem precisamente o núcleo ético de todas as grandes religiões em que se baseiam as culturas orientais e ocidentais, tanto dos ensinamentos de Confúcio e Lao-Tse, como de Buda, dos Profetas e de Jesus. Enquanto que existem algumas diferenças tônicas no conteúdo desses ensinamentos, por exemplo, Buda acentuando a redução do sofrimento, os Profetas insistindo na importância do conhecimento e da justiça e Jesus pregando o amor fraternal, nota-se uma concordância fundamental no ponto de vista desses pensadores religiosos, no que diz respeito ao objetivo do desenvolvimento humano e às normas que devem guiar a humanidade. Freud defende o aspecto ético da religião, mas critica a crença teística sobrenatural, que se opõe à completa realização dos mesmos objetivos éticos. Explica os conceitos teístas sobrenaturais como estágios na evolução humana, que foram necessários, e mesmo úteis, mas que perderam a sua razão de ser, e se transformaram em um empecilho para o desenvolvimento mais amplo do homem. A declaração de que Freud é “contra” a religião parece-nos portanto falsa, a não ser que definamos exatamente que tipo de religião, ou qual o aspecto da religião que ele critica, e quais os ângulos da experiência religiosa que defende.

Para Jung, a experiência religiosa constitui fenômeno emocional bastante específico, caracterizado pela submissão a um poder superior, cujo nome tanto pode ser Deus como o inconsciente. Indiscutivelmente, esta formulação define um certo tipo de experiência religiosa – no cristianismo, por exemplo, representa o acorde fundamental dos ensinamentos de Lutero e de Calvino - enquanto que não condiz absolutamente com um outro tipo de orientação religiosa, como seja a representada pelo budismo. O conceito de Jung no que concerne à verdade está em oposição aos preceitos do budismo, judaísmo e cristianismo. Neste, a obrigação de procurar a verdade é postulado fundamental. A pergunta irônica de Pilatos, “O que é a verdade?”, simboliza uma atitude antirreligiosa, não apenas do ponto de vista do cristianismo, como de todas as outras grandes religiões.

Sumarizando as posições respectivas de Freud e Jung, podemos dizer que Freud se opõe à religião em nome da ética - porque o homem realmente esclarecido é espontaneamente moral, sem precisar temer o castigo divino - o que já de si pode ser considerada uma atitude “religiosa”, no sentido amplo e não-dogmático. De outro lado, Jung reduz a religião a um fenômeno psicológico, e ao mesmo tempo eleva o inconsciente à categoria de fenômeno religioso. [11]

NOTAS:

[1] Terry Lectures, 1937. ( Nota de Erich Fromm)

[2] O próprio Freud, entretanto, esclarece que uma ideia não é obrigatoriamente falsa pelo simples fato de corresponder a um anseio humano. Já que muitos psicanalistas têm, uma vez por outra, condenado ideias que traduzem emoções, desejo solicitar atenção para a declaração de Freud. Na verdade, existem muitas ideias verdadeiras, do mesmo modo que concepções falsas, a que o homem chega porque prefere acreditar na realidade das mesmas. A maioria das descobertas repousa no interesse de provar uma verdade desejada. A presença de semelhante anseio autoriza uma certa suspeita, mas, por si só, não invalida o conceito ou conclusão. O critério de validade não decorre da existência de uma motivação psicológica, mas das evidências lógicas positivas ou negativas inerentes ao conceito ou conclusão. (Nota de Erich Fromm)

[3] Ele acentua o contraste entre a brilhante inteligência das crianças e o empobrecimento da razão adulta (Denkschwaeche). Sugere que a natureza íntima do homem talvez não seja tão irracional quanto o indivíduo se torna sob a influência de ensinamentos irracionais. (Nota de Erich Fromm)

[4] “Psychology of Religion”, p. 2. (Nota de Erich Fromm)

[5] Ibidem, p. 3. Os itálicos são meus. (Nota de Erich Fromm)

[6] Ibidem, p. 3. (Nota de Erich Fromm)

[7] Conforme a discussão de ética universal e ética socialmente imanente, no livro “Man for Himself”, Erich Fromm, Rineart & Co., 1947, pp. 237-244. (Nota de Erich Fromm)

[8] Jung, “Psychology of Religion”, p. 4, itálico do autor. (Nota de Erich Fromm)

[9] Ibidem p. 47. Jung está se referindo ao inconsciente individual como parte do grande inconsciente coletivo. (Nota da edição do livro em língua portuguesa)

[10] Ibidem, p. 46. (Nota de Erich Fromm)

[11] É interessante notar que a posição de Jung no seu livro “Psicologia e Religião” havia sido adotada pelo seu antecessor William James, ao mesmo tempo que as ideias gerais de Freud foram defendidas, nos seus pontos essenciais, por John Dewey. William James refere-se à atitude religiosa como “uma atitude de sacrifício e impotência (.....) que o indivíduo é impelido a adotar em relação ao seu modo de conceber o divino”. (“The Varieties of Religious Experience”, Modern Library, p. 51). Como Jung, James compara o inconsciente com o conceito teológico de Deus quando diz: “A tese dos teólogos, de que o homem religioso é impelido por um poder exterior, encontra justificativa no fato de que as irrupções de elementos subconscientes assumem ante o indivíduo aparência de realidade objetiva, sugerindo-lhe a existência de um controle externo.” (Ibidem p. 503). Na base desta conexão entre o inconsciente (ou subconsciente) e Deus, William James aproxima a psicologia da religião.

John Dewey distingue religião e experiência religiosa. Para ele, os dogmas religiosos sobrenaturais enfraqueceram a atitude religiosa do homem. “A oposição entre valores religiosos, como eu os concebo”, diz ele, “e as religiões não pode ser harmonizada. Justamente porque a libertação desses valores é tão importante, a identificação dos mesmos com os credos e cultos religiosos deve ser desfeita”. (“A Common Faith”, Yale University Press, p. 28). Como Freud, Dewey declara: “O homem não tem usado de modo amplo os poderes que lhe são inerentes para melhorar as próprias condições de vida, porque tem esperado muito do auxílio divino e da natureza.” (ibidem, p. 46). Consulte-se também a posição de John MacMurray na obra “The Structure of Religious Experience” (Yale University Press, 1936). Este autor acentua a diferença entre emoções religiosas racionais e irracionais, sentimentais e viciosas. Em contraste com a orientação de Jung, MacMurray declara: “nenhuma atividade reflexiva pode estar justificada, a não ser que seja verdadeira e válida” (ibidem, p. 54). (Nota de Erich Fromm)

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Sobre o mistério do despertar individual para a sabedoria do universo, leia a edição luso-brasileira de “Luz no Caminho”, de M. C.


Com tradução, prólogo e notas de Carlos Cardoso Aveline, a obra tem sete capítulos, 85 páginas, e foi publicada em 2014 por “The Aquarian Theosophist”.

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17 de março de 2014

O Amor Sem Violência

No Verdadeiro Afeto, A União
É Total Mas Preserva a Autonomia

Erich Fromm

O amor é a prática de um poder que só pode ser exercido com liberdade

  

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Nota Editorial de 2014

O amor é uma atividade primordial na
vida de todos os seres.  Não há quem não busque  
a felicidade na vida afetiva.  Mas quantos buscam
aprender a amar? E quantos caem desde a infância
em padrões de conflito psicológico que envolvem
uma estranha satisfação e um prazer irracional
no sofrimento próprio,  ou no sofrimento alheio?

O ser humano está rodeado o tempo todo
de oportunidades para o bem. Sempre há
tempo para a cura natural da alma, que resulta
do despertar da compreensão e da sabedoria.

O extraordinário texto a seguir é reproduzido
da obra “A Arte de Amar”, de Erich Fromm, que
foi publicada, com tradução de Milton Amado, pela
Ed. Itatiaia, de Belo Horizonte, em 1990. Ver pp. 29-33.

(Carlos Cardoso Aveline)

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O desejo de fusão interpessoal é o mais poderoso anseio do homem. É a paixão mais fundamental, é a força que conserva juntos a raça humana, clã, a família, a sociedade. O fracasso em realizá-la significa loucura ou destruição - autodestruição ou destruição de outros.

Sem amor, a humanidade não poderia existir um só dia. Contudo, se chamarmos “amor” a realização da união interpessoal, poderemos encontrar-nos em séria dificuldade. A fusão pode ser obtida de diversos modos - e as diferenças não são menos significativas do que aquilo que é comum às várias formas de amor. Devem ser todas chamadas de amor? Ou devemos reservar a palavra “amor” somente para um tipo específico de união, aquele que tem sido a virtude ideal para todas as grandes religiões humanísticas e sistemas filosóficos dos últimos quatro mil anos de história ocidental e oriental.

Como se dá com todas as dificuldades semânticas, a resposta só pode ser arbitrária. O que importa é sabermos de que espécie de união estamos falando, quando falamos de amor. Referimo-nos ao amor como à resposta amadurecida ao problema da existência, ou falamos das formas imaturas do amor que podem ser chamadas união simbiótica? Nas páginas seguintes, darei o nome de amor apenas à primeira. Começarei a discussão sobre o “amor” com a última.

A união simbiótica tem seu modelo biológico na relação entre a mãe grávida e o feto. São dois e, contudo, um. Vivem “juntos” (sym-bio-sis), necessitam um do outro. O feto é parte da mãe, recebe dela tudo de que necessita; a mãe é seu mundo, em suma: alimenta-o, protege-o, mas também a própria vida dela é acrescida por ele. Na união simbiótica psíquica, os dois corpos são independentes, mas a mesma espécie de ligação existe psicologicamente.

A forma passiva da união simbiótica é a da submissão, ou, se usarmos um termo clínico, a do masoquismo. A pessoa masoquista foge ao insuportável sentimento de isolamento e separação tornando-se parte e porção de outra pessoa, que a dirige, guia, protege; que, em suma, é sua vida e seu oxigênio. O poder daquele a quem alguém se submete é expandido, trate-se de uma pessoa ou de um deus; é tudo, e o submisso nada, exceto naquilo em que é parte dele. Como parte, é parcela da grandeza, da força, da certeza. A pessoa masoquista não tem de tomar decisões, não precisa assumir quaisquer riscos; nunca está só - mas não é independente; não tem integridade; ainda não nasceu de todo. Num contexto religioso, o objeto da adoração é chamado ídolo; num contexto secular de relações de amor masoquista, o mecanismo essencial, o da idolatria, é o mesmo. A relação masoquista pode-se misturar com o desejo físico, sexual; neste caso, não é só uma submissão de que participe o espírito de alguém, mas também todo o corpo. Pode haver submissão masoquista ao destino, à enfermidade, à música rítmica, ao estado orgíaco produzido por drogas ou sob transe hipnótico: em todos esses exemplos a pessoa renuncia à sua integridade, torna-se o instrumento de alguém ou de algo fora dela própria; não precisa de resolver o problema de viver por meio da atividade produtiva.

A forma ativa da fusão simbiótica é a dominação, ou, para empregar o termo psicológico corresponde ao masoquismo, o sadismo. A pessoa sadista quer escapar de sua solidão e de sua sensação de encarceramento, fazendo de outra pessoa uma parte, uma parcela de si mesma. Expande-se e valoriza-se incorporando outra pessoa, que a adora.

A pessoa sádica depende tanto da pessoa submissa quanto esta daquela; uma não pode viver sem a outra. A diferença só está em que a pessoa sádica ordena, explora, fere, humilha, e a masoquista é mandada, explorada, ferida, humilhada.

Tal diferença é considerável num sentido realista; num sentido emocional mais profundo, a diferença não é tão grande quanto o que ambas têm em comum: fusão sem integridade. Se se compreende isto, também não é surpreendente verificar que normalmente uma pessoa reage tanto da maneira sádica como da masoquista, de modo geral para com objetos diversos. Hitler reagia primordialmente de maneira sádica para com o povo, mas masoquistamente para com o destino, a história, o “poder mais alto” da natureza. Seu fim - o suicídio em meio à destruição geral - é tão característico quanto o foi seu sonho de sucesso, de dominação total. (Escape from Freedom, Erich Fromm, Londres, Routledge, 1942).

Em contraste com a união simbiótica, o amor amadurecido é união sob a condição de preservar a integridade própria, a própria individualidade. O amor é uma força ativa no homem; uma força que irrompe pelas paredes que separam o homem de seus semelhantes, que o une aos outros; o amor leva-o a superar o sentimento de isolamento e de separação, permitindo-lhe, porém, ser ele mesmo, reter sua integridade. No amor, ocorre o paradoxo de que dois seres sejam um e, contudo, permaneçam dois.

Ao dizermos que o amor é uma atividade, enfrentamos uma dificuldade que reside na significação ambígua desta palavra. Por “atividade”, no emprego moderno do termo, queremos normalmente referir-nos a uma ação que produz mudança numa situação existente, por meio de gasto de energia. Assim, um homem é considerado ativo quando faz negócios, estuda medicina, trabalha numa usina, fabrica uma mesa ou dedica a esportes. Todas essas atividades têm sido em comum: dirigem-se para um alvo exterior a ser alcançado. O que não se leva em conta é a motivação da atividade. Veja-se, por exemplo, um homem impelido a incessante trabalho por um sentimento de profunda insegurança e solidão; ou outro impulsionado pela ambição, ou pela avidez por dinheiro. Em todos esses casos a pessoa é escrava de uma paixão, e sua atividade é de fato uma “passividade”, porque ela é impelida; é o paciente, não o “ator”. De outro lado, alguém que se assente calmo e contemplativo, sem outro alvo que não o de experimentar-se e à sua unidade com o mundo, é considerado como “passivo”, porque não está “fazendo” coisa alguma. E, na verdade, esta atitude de meditação concentrada é a mais alta atividade que existe, uma atividade da alma, só possível sob condições de independência e liberdade interiores. Um conceito de atividade, o moderno, refere-se ao uso de energia para consecução de metas externas; o outro conceito de atividade refere-se ao uso dos poderes inerentes ao homem, sem que importe a produção de qualquer mudança exterior. Este último conceito de atividade foi formulado com muita clareza por Spinoza. Diferencia ele os afetos entre ativos e passivos, “ações” e “paixões”. No exercício de um afeto ativo, o homem é livre, é o senhor de seu afeto; no exercício de um afeto passivo, o homem é impelido, é objeto de motivações de que ele próprio não tem consciência. Assim Spinoza chega à afirmação de que virtude e poder são uma só e a mesma coisa (Spinoza, Ética, IV, Def. 8). A inveja, o ciúme, a ambição, qualquer espécie de cobiça são paixões; o amor é uma ação, a prática de um poder humano, que só pode ser exercido na liberdade e nunca como resultado de uma compulsão.

O amor é uma atividade, e não um afeto passivo; é um “erguimento” e não uma “queda”.

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Para conhecer um diálogo documentado com a sabedoria de grandes pensadores dos últimos 2500 anos, leia o livro “Conversas na Biblioteca”, de Carlos Cardoso Aveline.


Com 28 capítulos e 170 páginas, a obra foi publicada em 2007 pela editora da Universidade de Blumenau, Edifurb. 

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