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26 de agosto de 2020

Pessoas Não-Humanas

A Relação entre Humanos e Animais
Ganha Relevo Crescente e Visibilidade

Maurício Andrés Ribeiro




“Contaram-me uma mentira durante toda a
 minha vida dizendo que eu fazia parte da única espécie
racional do  planeta. Mentira profunda. Existe uma
racionalidade profunda dentro de cada espécie. E eu tive
 que aprender a compreender essa racionalidade.”

Sebastião Salgado,
fotógrafo do projeto Gênesis



O dicionário Aurélio define como pessoa “cada ser humano considerado na sua individualidade física ou espiritual, portador de qualidades que se atribuem exclusivamente à espécie humana, quais sejam, a racionalidade, a consciência de si, a capacidade de agir conforme fins determinados e o discernimento de valores”.

Animais são seres com corpo, mente, emoções, sentimentos, que têm dor e medo e que aprendem, dentro de seu estágio de consciência. As capacidades cognitivas dos animais são crescentemente reconhecidas. Merecem o status de pessoas, tais como as pessoas físicas, as pessoas jurídicas, as pessoas angelicais.

A diversidade de postagens e de compartilhamento de vídeos nas redes sociais e no Facebook mostra como as pessoas não-humanas gostam de brincar, com uma mentalidade muito afim com as crianças. O relacionamento afetivo de seres humanos com cães, gatos e animais domésticos supre carências emocionais tanto para crianças como para adultos e idosos.  As crianças prezam a afetividade animal e se encantam com as histórias de bichos que muitas vezes só conhecem nos zoológicos.  Têm grande empatia para com os animais. Empatia é uma qualidade da inteligência emocional. É uma resposta afetiva capaz de compreender a perspectiva psicológica de outra pessoa; e de se emocionar ao observar a experiência e a situação do outro.

Há vídeos  que mostram como eles se comunicam pelo canto; como são  usados como alimento por pessoas humanas. Muitas mensagens nas redes sociais abordam o vegetarianismo como opção de dieta alimentar. Há crueldades tais como as touradas ou “farras do boi”, disfarçadas de cultura e tradição, e maus tratos a animais em cativeiro. Mensagens mostram também formas de relacionamento mais amigáveis e harmônicas entre pessoas humanas e não-humanas. Na Internet se encontram muitos sites com pensamentos sobre os direitos dos animais. Aos poucos a visão ecocêntrica e biocêntrica ganha espaço e questiona os fundamentos da civilização ocidental em sua relação com os animais.

Cientistas renomados tais como James Lovelock em “A vingança de Gaia” e E.O. Wilson propõem uma retirada sustentável das pessoas humanas cedendo espaço para os animais e o mundo natural.

No Facebook, meu amigo Apolo Heringer-Lisboa observa que “quando a gente diz seres humanos, está dando a entender que há outros tipos de seres. Vinha à mente a ideia de seres divinos ou angelicais. Não a ideia de seres como tartarugas, corujinhas e cães. Você tem insistido neste tema buscando, provavelmente, uma mudança na mentalidade atual da sociedade. Você insiste no termo pessoas. Como vê a distinção entre os termos pessoas e seres? Pessoas a gente associa com gente, seres humanos, um sinônimo”.

Eu lhe respondi que há vários tipos de pessoas: pessoas humanas, pessoas físicas, pessoas jurídicas. Nomear os animais como pessoas não-humanas ajuda a elevar seu status numa visão menos antropocêntrica e ajuda a valorizar seus sentimentos e inteligência. Um status ainda mais elevado é quando são tratados como divindades. O status mais baixo é quando são tratados como coisas, usados como objetos de pesquisas e cobaias para testar medicamentos, cosméticos, cigarros. Os animais são vistos como bens econômicos, e a pecuária tem a mesma raiz de pecuniária, pois pecos, o boi, era uma fonte original de riqueza, uma moeda transacionável. Por esse enfoque, somos donos, proprietários de tais seres sensíveis, semoventes.

A cultura ocidental, de matriz greco-romana e judaico-cristã tem uma visão antropocêntrica e humanista que vem sendo questionada por vários flancos. “Para que serve uma barata ou um pernilongo?”, pergunta-me uma amiga que descubro ser utilitarista. As abelhas são úteis, pois polinizam e fertilizam as plantas e prestam um relevante serviço ambiental e econômico. Por isso podem ter valor. Mas e esses outros animais? O movimento antiutilitarista reconhece o valor intrínseco dos animais e dos seres vivos, independente se tenham ou não uma utilidade para os seres humanos.

O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro  reflete sobre o tema, tomando como referência as culturas indígenas brasileiras:

Uma coisa é você dizer que os animais são humanos, no sentido de direitos humanos. Outra coisa é dizer que os animais são pessoas, isto é, são seres que têm valor intrínseco. É isso o que significa ser pessoa. Reconhecer direitos aos demais viventes não é reconhecer direitos humanos aos demais viventes. É reconhecer direitos característicos e próprios daquelas diferentes formas de vida. Os direitos de uma árvore não são os mesmos direitos de um cidadão brasileiro da espécie homo sapiens. O que não quer dizer, entretanto, que ela não tenha direitos. Por exemplo, o direito à existência, que só pode ser negado sob condições que exigem reflexão. Os índios não acham que as árvores são iguais a eles. O que eles acham simplesmente é que você não faz nada impunemente. Todo ser vivo, com exceção dos vegetais, tem que tirar a vida de um outro ser vivo para sobreviver. A diferença está no fato de que os índios sabem disso. E sabem que isso é algo sério. Nós estamos acostumados a fazer a nossa caça nos supermercados, não somos mais capazes de olhar de frente uma galinha antes de matá-la para comer. Assim, perdemos a consciência de que nós vivemos num mundo em que viver é perigoso e traz consequências. E que comer tem consequências. Os animais seriam pessoas no sentido de que eles possuem valor intrínseco, eles têm direito à vida, e só podemos tirar a vida deles quando a nossa vida depende disso. Isso é uma coisa que, para os índios, é absolutamente claro. Se você matar à toa, você vai ter problemas. Eles não estão dizendo que é tudo igual. Eles estão dizendo que tudo possui um valor intrínseco e que mexer com isso envolve você mesmo.” [1]

A ética nas relações com os animais passou a ser tema discutido especialmente a partir das ideias de Peter Singer, filósofo australiano conhecido por sua postura em relação aos direitos dos animais e a questões éticas no relacionamento com eles. Hans Huesch escreveu “Matança de inocentes” e “A grande fraude”, sobre o tema.

No segundo semestre de 2013, ativistas invadiram um instituto de pesquisas em São Paulo, que usava cães beagle e ratos em testes para cosméticos e para medicamentos, sequestraram os animais e destruíram as instalações, levando ao fechamento do instituto.

O movimento Born Free defende padrões de bem-estar animal e procura protegê-los dos circos, do entretenimento em shows, parques marinhos, do sofrimento físico e mental que passam no cativeiro.

Organizações da sociedade civil como a PETA - Pessoas pelo tratamento ético para com os animais - e a Frente de Libertação Animal assumiram a causa do abolicionismo da escravidão e do fim da tortura dos animais. A WSPA, sociedade mundial para a proteção dos animais, propõe protegê-los pois têm dor e sofrimento, merecem viver livres de crueldade e porque milhões de pessoas no mundo todo  se apoiam neles para a sobrevivência e a companhia. Propõe que a ONU institua um dia dedicado à proteção dos animais. Por meio de vídeos, divulgam no YouTube muitas informações sobre o tema. Mostram a crueldade de depenar gansos para fazer preenchimento de travesseiros com suas plumas e penas; o processo doloroso de produção do paté de fígado de ganso. O que ocorre nos matadouros é mostrado no vídeo “E se os matadouros tivessem paredes de vidro?”, protagonizado por Paul McCartney, que também se tornou ativista vegetariano. Outros disponíveis no YouTube mostram as realidades atrozes da produção de carne e as fazendas industriais.

Vídeos mostram testes com pesquisas biológicas de efeitos dos cigarros sobre a saúde, realizados com macacos, coelhos e ratos. O filme “A feia verdade” denuncia que mais de 50 bilhões de animais são sacrificados a cada ano pela indústria de cosméticos e mostra coelhos cegados por testes de produtos que irritam os olhos. Outros vídeos fazem campanhas de boicote a produtos de companhias que fazem testes com animais. Outros ainda mostram as vacas fistuladas, com o seu interior à mostra, em pesquisas agropecuárias.

A relação entre pessoas humanas e animais adquire relevo crescente e visibilidade como um tema de interesse público.  Mais seres humanos, e não somente as crianças e idosos que com eles convivem mais diretamente, passam a manifestar com maior frequência a empatia para com os animais. Essa relação merece ser tratada em seus aspectos regulatórios, normativos e de comunicação. Tal como a escravatura, que teve uma sucessão de leis, até a do ventre livre e a da abolição, também a abolição da escravatura animal passa por etapas sucessivas e crescentes, por ondas de consciência social e de sensibilização e empatia. É preciso aprimorar as leis sobre o tema.

Nos parlamentos, tramitam dezenas de  projetos referentes a animais com temas tais como o uso de animais em espetáculos e pesquisas científicas, leis e código de proteção e defesa de animais, na esteira da crescente sensibilidade para com o bem-estar animal e para com os direitos das pessoas não-humanas.

NOTA:

[1] Entrevista a Eliane Brum, Diálogos sobre o fim do mundo, publicada no El País em 29 de setembro de 2014. 

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O artigo “Pessoas Não-Humanas” foi publicado nos websites associados dia 26 de agosto de 2020.

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Maurício Andrés Ribeiro é fotógrafo, pai de dois filhos e avô de quatro netos. Pesquisador no Indian Institute of Management, Bengaluru, Índia. Ecologista e arquiteto, foi professor de gestão  ambiental urbana. Escritor, autor de livros como “Ecologizar”, “Tesouros da Índia”, “Meio Ambiente & Evolução Humana”, “Ecologizando a cidade  e o planeta”, publica no blog Ecologizar.blogspot. Colaborador de organizações sociais voltadas para a cultura de paz. Coautor do livro “A água fala”, voltado para a geração dos netos, que precisará ter sabedoria e conhecimento para lidar com o tema da água no contexto das mudanças do clima.

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31 de dezembro de 2016

Ecologia, Corrupção e Ética

Alguns Meios Práticos
Para Vencer a Corrupção

Maurício Andrés Ribeiro




O ser humano integra o mundo natural e compartilha uma base biológica comum com as demais espécies. Guardadas as devidas diferenças entre o mundo natural e o mundo dos humanos, uma abordagem ecológica do tema da corrupção pode iluminar alguns de seus fundamentos biológicos e ajudar a lidar com ela.

Relações ecológicas variam da parceria e cooperação ao antagonismo e competição. Assim, a simbiose e o comensalismo são relações em que os organismos atuam em conjunto para proveito mútuo; são desarmônicas interações como a antibiose (princípio usado nos antibióticos, que matam ou inibem certos organismos vivos), a predação, o canibalismo, o vampirismo, o esclavagismo, o parasitismo.

Na natureza, um parasita suga um animal ou vegetal e dele tira seu sustento. Em alguns casos, leva o hospedeiro à morte. Os predadores se multiplicam quando há muito do que se alimentar, mas quando escasseia a comida, eles podem, no limite, ser extintos. Hospedeiros precisam experimentar mutações para ter um organismo geneticamente mais adaptado para sobreviver na guerra com os invasores. Flávio de Carvalho Serpa observa que “Sobrevive o mais adaptado. A natureza não distingue entre o bem e o mal. A humanidade é a única que tem a ética e honestidade como fator seletivo, o que é bom...”.

O parasita social suga a sociedade na qual se hospeda, a explora e vive à sua custa; se beneficia dela e a enfraquece quando extrai e se apropria de seus recursos somente em proveito próprio. Dependendo da percepção ou da ideologia de quem os define, já foram apontados como parasitas sociais os indivíduos que vivem à custa alheia, os capitalistas, os burgueses, os senhorios, os que vivem da previdência social. Nos governos, alguns veem como parasitas os servidores públicos que não trabalham; que defendem seus interesses e privilégios corporativos acima do interesse público mais amplo. O avanço civilizatório traz maior eficiência no controle dos predadores aproveitadores, que aparecem e se multiplicam quando há oportunidade.

A corrupção pode ser vista como uma forma extrema de parasitismo social, combinado com a predação. Corruptores e corrompidos colaboram entre si como os parasitas/predadores; o hospedeiro/presa do qual se alimentam é a sociedade. O corruptor e o corrompido se apropriam de recursos coletivos. Atuam como sanguessugas, que causam sangria nos cofres públicos. Corruptores e corrompidos são muitas vezes hábeis e tentam se esconder para não serem descobertos; se disfarçam, camuflam, enganam, dissimulam e aplicam estratagemas e táticas de ação engenhosas e às vezes criativas.

Nas sociedades humanas, entre as condições que facilitam a corrupção, relacionam-se a impunidade e a inexistência de riscos; as debilidades institucionais, tais como o mau funcionamento dos poderes judiciário, legislativo e executivo; o loteamento partidário da administração pública, sem a contrapartida da probidade e competência técnica; o sistema eleitoral corrupto, as oligarquias aproveitadoras, as empresas corruptoras, o hábito da transgressão das regras, normas e leis como atributo de espertos; a autocomplacência individual ou grupal. A falta de proteção policial, de consequência jurídica e a prostração e o conformismo social estimulam o aumento da atividade de parasitas e predadores.

Num quadro mais amplo, Jared Diamond, em seu livro Armas, Germes e Aço, dedica um capítulo à análise da evolução do igualitarismo às cleptocracias modernas, que surgiram depois dos bandos, das tribos, dos principados e sultanatos. Diz ele que “A diferença entre um cleptocrata e um estadista sábio, entre um barão ladrão e um benfeitor público é meramente de grau.” Depende de qual a porcentagem dos impostos coletados é retida pela elite e quanto dos impostos é destinado aos bens comuns e usos públicos. Ele constata que as grandes sociedades precisam ser centralizadas,“Mas a centralização do poder inevitavelmente abre a porta - para aqueles que detêm o poder, a informação, tomam as decisões e redistribuem os bens - para explorar as oportunidades resultantes de se premiarem e a seus parentes”. Em cleptocracias, parasitas se incrustam em nichos do estado,  nos quais se locupletam e usufruem de direitos, vantagens e benefícios pessoais.

Há também quem associe a corrupção à era ‘Kali Yuga’, a idade do ferro do ciclo hindu. Nesta era, há poluição, gratificação dos sentidos, matança de animais, destruição da natureza, com grupos, quadrilhas, gangues, máfias, empresas, companhias disputando e competindo pela riqueza material coletiva.

Se parasitismo e predação são relações naturais, também são naturais as estratégias de defesa dos organismos contra predadores e parasitas.

Nesse contexto, cabe perguntar:

1) Como descobrir a ocorrência de um processo inicial de parasitismo ou predação social?

2) Em que medida são aplicáveis aos casos de corrupção, no mundo dos humanos, as estratégias dos hospedeiros para sobreviverem a parasitas, e das presas, para escaparem de seus predadores?

3) Como dificultar a vida dos parasitas e predadores? Como facilitar a vida dos hospedeiros/presas?

4) É possível prevenir ou combater a corrupção com a aplicação de princípios e de estratégias de sobrevivência ecológicos?

Se o predador e o parasita desenvolvem formas astuciosas de agir, também as presas e os hospedeiros concebem maneiras criativas de se livrar dos ataques e se proteger. A evolução civilizatória dificulta a sobrevivência dos aproveitadores. Para se prevenir a corrupção é eficaz desenvolver a consciência coletiva sobre as consequências e os ônus de uma relação corrupta. Transparência e informação clara e circulante à luz do dia ajudam na prevenção de relações de parasitismo ou de predação social.

A possibilidade de se estruturar uma sociedade menos corrupta depende de ações de fortalecimento social (o hospedeiro/presa) e de enfraquecimento dos corruptores e corrompidos (os parasitas/predadores):

1) Ações e atitudes do hospedeiro/presa:

Estar vigilante e atento; ter imaginação, sagacidade, astúcia. (Um exemplo para tentar neutralizar ataques cibernéticos é a contratação de hackers por serviços de inteligência.) Ter vontade e coragem para enfrentar resistências. Detectar preventivamente e corrigir situações de corrupção conhecidas. Manter informação livre (imprensa); conceber e colocar em prática estratégias - sociais, políticas, culturais - para escapar do parasita. Exercitar a indignação consequente. Adotar controle social externo e interno com hierarquias claras, gestão participativa e transparente, critérios de avaliação; reduzir a autocomplacência; reduzir, por meio de gestão bem feita, as frestas por onde se infiltram oportunistas e parasitas. Fortalecer a defesa imunológica contra vírus e espécies invasoras. Manter sistemas eficazes de fiscalização e auditoria, internos e externos, com padrão ético. Criar fatores de repulsão aos ataques dos parasitas, como, por exemplo, na natureza, o mau cheiro; por meio de tolerância zero, aplicar ao corpo do hospedeiro repelentes que afugentem os potenciais parasitas; fortalecer as defesas imunológicas do hospedeiro.

2) No parasita/predador:

Descobrir os liames e romper o conluio e a cooperação entre corruptores e corruptos; adotar a delação premiada, que funciona como um antibiótico ao romper a relação simbiótica corruptor-corrompido; promover a cizânia entre corruptos, com tratamento igual para todos os que forem descobertos; encontrar e fortalecer os predadores dos corruptos; fazer limpeza e saneamento, punir e demitir servidores corrompidos, sabendo que não basta extirpar, porque o parasita retorna quando se mantêm as condições ambientais favoráveis; eliminar as condições para que voltem, melhorando controles administrativos e transparência; evitar que novos parasitas venham a ocupar o nicho institucional dos anteriores. Esclarecer e desativar mecanismos de louvação e elogio da esperteza corrupta e a simpatia para com as ilegalidades; Quando descoberto o parasitismo da corrupção, aplicar punição exemplar; reduzir suas fontes de alimentos: bloquear contas bancárias, obrigar ao ressarcimento dos recursos públicos, punir os aproveitadores corruptores.

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Maurício Andrés Ribeiro é autor das obras “Ecologizar” e “Tesouros da Índia”.

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5 de novembro de 2016

Autoconhecimento e Ecologia

Examinando a Realidade da Transição Humana

Maurício Andrés Ribeiro





A atividade humana está, inequivocamente, causando mudanças climáticas e transformações ambientais no planeta, segundo constatou o IPCC - Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas - em seu 4º Relatório, de 2007.

O ser humano provoca tantas alterações no ambiente que este período em que vivemos passou a ser designado como o antropoceno: um período que considera a influência humana no funcionamento do planeta como uma nova era na escala do tempo geológico.

No oráculo de Delfos, na Grécia antiga, estava inscrito:

“Oh, ser humano, conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os Deuses!”

O autoconhecimento, valorizado em Delfos, volta a ser crucial diante da crise ecológica, pois as ações que causam forte impacto ambiental e social derivam de pensamentos e sentimentos, de necessidades e carências físicas ou emocionais, desejos e crenças, de qualidades mentais e espirituais. Esse autoconhecimento pode-se dar tanto na escala de um indivíduo, como de um grupo social ou população, e até na escala da espécie e do gênero Homo. As ciências humanas e sociais abordam a questão a partir dos indivíduos e grupos sociais. Uma abordagem ecológica inclui os aspectos biológicos e das ciências da natureza. A inscrição de Delfos sobre o autoconhecimento pode assim ser adaptada para a época atual: “Espécie humana, conhece-te a ti mesma e conhecerás o ambiente e o universo em que vives”.

Como espécie, quem somos nós, quais as nossas características principais? Que imagens e percepções temos dessa espécie? Os seres humanos, com sua consciência, capacidade de percepção e de comunicação, descreveram de várias maneiras o gênero Homo ao qual pertencem. Compilamos cerca de 40 delas, na expressão em latim: academicus, belicosus, beligerans, bellicus, complexus, consulens, consumptor, corruptus, cosmicus, deletabilis, demens, erectus, ergaster, faber, habilis, honestus, idioticus, lixus, ludens, moralis, noologicus, œcologicus, œconomicus, pecuniosus, perfectus, planetaris, proteus, ricus, sapiens, sapiens globalis, sapiens localis, sapiens sapiens, scientificus, simbioticus, sportivus, stressatus, superpredator, sustentabilis, tecnocraticus, universalis.

Fomos designados como Homo demens: “O homem é esse animal louco cuja loucura inventou a razão”, disse Cornelius Castoriadis; como o Homo moralis e o Homo honestus, um primata que coopera e que se comporta com valores éticos; o Homo sportivus e o Homo ludens, pelas características lúdicas, que compartilha com outros animais que jogam, gostam de brincar e fazer humor (Johan Huizinga); o Homo corruptus, uma espécie parasita e predatória.

Temos capacidade de autorreflexão e de saber-nos ignorantes: o Homo idioticus que se deixa enganar e ao mesmo tempo é capaz de fazer humor e de se enxergar criticamente. É conhecida a história de dois planetas que se encontram. Coçando-se, um diz: “Estou incomodado com essa coceira.” Pergunta o outro: “O que pode ser isso?” O primeiro responde: “Acho que é Homo sapiens”. O segundo finaliza a conversa: “Não se preocupe, isso passa logo.”

O Homo bellicus se denomina assim por seu caráter guerreiro. Ao desenvolver a tecnologia somos os Homo tecnocraticus. O Homo economicus e o Homo consumptor representam uma espécie composta de indivíduos egoístas em busca de gratificação pessoal e acumulação material. Já o Homo scientificus valoriza a observação objetiva, a classificação e a mensuração. Edgar Morin fala do Homo complexus, que lida com a complexidade. Hoje podemos nos ver também como o Homo lixus, a única espécie animal que produz lixo: dois milhões de toneladas por dia. E ainda como o Homo stressatus moderno, com as consequências que o estresse acarreta para a saúde, ansioso, com medo e preocupado com o futuro e com ameaças reais ou imaginárias. Diegues imagina o Homo ricus, uma parcela da humanidade que derivará da plutocracia e que se descolará do restante da espécie, beneficiária de onerosos avanços da medicina, que nem todos podem pagar. O Homo Consulens trata com cuidado de sua casa e das demais espécies.

Ao ocuparmos todo o planeta, nos vemos como Homo planetaris; ao viajarmos no espaço, somos os Homo cosmicus e o Homo universalis. Transumanistas, que trabalham com a perspectiva de um ser evolutivo, acenam com o surgimento do Homo perfectus que atua por meio do uso ético das tecnologias para estender as capacidades humanas. Ou o Homo noologicus, que sabe das consequências de seus atos.

Em diferentes momentos, distintas qualidades da espécie foram percebidas e expressas por tais definições ou designações, e cada uma delas corresponde a uma parcela da realidade acerca desse ser que apresenta grandezas e misérias. Cada uma dessas categorias reconhece uma faceta e uma característica e se baseia em atributos variados. Todas expressam uma parte da realidade, mas nenhuma esgota a descrição desse ser complexo e multidimensional. Assim, podemos observar que algumas definições enfatizam nossos defeitos e deficiências, outras realçam nossas boas qualidades e virtudes; outras, ainda, enxergam aspectos físicos, sociais, espirituais. Algumas expressam uma visão crítica e autocrítica. Outras têm uma conotação humorística; outras, ainda, expressam uma percepção das potencialidades, de uma visão ideal ou de um desejo de quem as formula; ainda há aquelas que procuram expressar o que seus proponentes visualizam como a verdade ou a realidade sobre as facetas da espécie. Muitas focam mais nas qualidades da consciência do que em diferenças biológicas ou genéticas. 

A variedade de definições filosóficas parte de distintas concepções e modelos mentais. Algumas definições enfatizam o pensamento (Descartes: “Penso, logo existo”); outras nos definiram como animal racional, enfatizando a razão. Aristóteles nos definiu como animais políticos. Outros, como Hobbes, realçaram nossa característica predatória: “O homem é o lobo do homem”.

A tradição hindu enfatiza nosso caráter divino, como um corpo de luz, com desidentificação e abstração do corpo. Outras explicitam nosso caráter falível: “Errar é humano”. Nossas várias designações como espécie podem espelhar como nos vemos em nossas características e papéis sociais e individuais. Freud observou que “Quando Pedro me fala sobre Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo”. Assim, quando alguém diz que o ser humano não tem jeito, que é como uma praga e que a natureza humana é vil, aquela pessoa pode estar projetando uma característica que enxerga em si para toda a espécie. Passamos a saber mais sobre quem expressa essa percepção do que sobre a própria espécie humana.

No contexto da evolução, são também variados os papéis que essa espécie tem exercido e pela qual tem sido designada: gestora da evolução, senhora do clima (Tim Flannery); engenheira de manutenção do planeta (James Lovelock), degradadora, exterminadora e predadora de outras espécies; construtora e facilitadora da evolução.

A consciência humana é uma força poderosa. Caso seja colocada a serviço de práticas construtivas e orientada para desenvolver relações ecológicas harmônicas de simbiose e cooperação baseadas em valores éticos, pode ajudar a regenerar e restaurar o oásis Terra em que vivemos. Caso seja colocada a serviço de valores destrutivos e desenvolva relações desarmônicas de predatismo, parasitismo e canibalismo de uns contra os outros, pode acelerar colapsos e destruição ecológica, social, econômica, política.

Cabe à consciência de cada um de nós e à consciência coletiva discernir entre o que deve, pode e precisa ser feito, para a partir disso orientar nossas ações. O rumo que tomará o desenvolvimento e a evolução da matéria e da vida no planeta será influenciado por esse discernimento. A ecologia do ser é um caminho para desenvolver o autoconhecimento e para dar respostas à atual crise da evolução.

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Maurício Andrés Ribeiro é autor das obras “Ecologizar” e de “Tesouros da Índia”. Visite o website www.ecologizar.com.br. Contato: ecologizar@gmail.com.

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O texto acima foi publicado pela primeira vez na edição de fevereiro de 2012 de “O Teosofista”.

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Em setembro de 2016, depois de cuidadosa análise da situação do movimento esotérico internacional, um grupo de estudantes decidiu formar a Loja Independente de Teosofistas, que tem como uma das suas prioridades a construção de um futuro melhor nas diversas dimensões da vida.

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31 de julho de 2016

O Brasil, a Índia e a Civilização do Futuro

A Prática da Ajuda Mútua em Escala Planetária

Maurício Andrés Ribeiro




“Estamos na luta para florescer
amanhã como uma nova civilização,
mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma.”

(Darcy Ribeiro)



Para o cientista político norte-americano Samuel Huntington, o futuro será moldado pelas interações entre as principais civilizações: ocidental, confuciana (China), japonesa, islâmica, hindu (Índia), eslavo-ortodoxa (Rússia), latino-americana e africana. As relações bilaterais entre elas são mais conflituosas ou menos conflituosas, conforme mostra a figura. [1] Em sua visão, a civilização latino-americana relaciona-se fortemente apenas com a ocidental do Atlântico norte (América do Norte e Europa) e não tem vínculo significativo com as demais. O Brasil seria, nessa percepção, parte da civilização latino-americana.



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Para conhecer a teosofia original desde o ângulo da vivência direta, leia o livro “Três Caminhos Para a Paz Interior”, de Carlos Cardoso Aveline.


Com 19 capítulos e 191 páginas, a obra foi publicada em 2002 pela Editora Teosófica de Brasília.   

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3 de novembro de 2011

Respiração Como Cultura


Uma Respiração Profunda Pode
Alterar o Estado de Consciência


Maurício Andrés Ribeiro



Respirar é um ato que todo animal ou vegetal realiza do início ao final de sua vida. Da primeira inspiração ao último suspiro, o corpo interage com a atmosfera. Mas respirar não é apenas um ato natural. A respiração consciente, os vários modos e formas de respirar, o aprender a respirar corretamente, transformam esse ato elementar num ato cultural.

Foi durante minha estadia na Índia, nos idos da década de 1970, que tomei consciência da importância cultural da respiração. Os antigos iogues desenvolveram a prática de exercícios respiratórios como forma de concentração. Essa tradição desenvolveu técnicas de controle da respiração e modos de inspirar e expirar a energia que mantém a vida e que está presente em toda a natureza, conhecida como prana.

As práticas de ioga utilizam diversas posturas (ásanas) e exercícios respiratórios (pranayamas) para aprimorar o uso do corpo. Um bom controle sobre o corpo ajuda a controlar a mente e a obter maior profundidade de percepção e conhecimento. Uma atitude básica da meditação é o focar a atenção na respiração, pois quando se observa o movimento do ar para dentro e para fora dos pulmões, deixa-se de pensar no passado ou no futuro e a atenção orienta-se para o momento presente. A consciência do ato de respirar, associada à vibração de um som como o OM (som universal) durante a expiração, acalma o pensamento e a mente. Trata-se de prática que pode ser exercitada cotidianamente nos tempos de deslocamento, nos transportes e salas de espera.

O espiritualismo da cultura indiana se ancora na matéria, vista como manifestação ou corporificação do espírito. Os fundamentos materiais dessa espiritualidade foram testados em milênios de história e deu-se muita atenção a atos elementares. Para a tradição indiana, o próprio universo é criado e extinto de acordo com o ritmo da respiração de Brahma, que, ao expirar ou inspirar, regula os ritmos universais.

Há várias formas de se respirar, cada qual com seus efeitos sobre o corpo, sobre a mente e as emoções. O exercício de ritmar a respiração voluntariamente induz ao equilíbrio físico-emocional e aumenta a capacidade de percepção sensorial e mental.

A boa respiração reduz estresse, hipertensão, depressão, relaxa, ajuda a emagrecer. Leva a um maior equilíbrio, bem-estar, flexibilidade, saúde. O estado de tranquilidade e de boa irrigação sanguínea que produz pode ser considerado uma preparação para níveis de desenvolvimento espiritual mais elevados, em que há mais percepção, mais consciência, mais harmonia na movimentação corporal e nos relacionamentos, mais segurança nas ações cotidianas, entre outras virtudes e habilidades. A maior ventilação proporcionada por uma respiração profunda pode alterar o estado corporal e de consciência. Nesse ponto, é oportuno realçar a importância da sobriedade e advertir contra abusos em exercícios respiratórios, e contra práticas como a retenção da respiração e outras manipulações perigosas para a saúde física e cerebral.

Cada atividade humana e estado de saúde se associa a uma forma de respiração. Um músico que toca um instrumento de sopro, como uma flauta, precisa ter fôlego e um controle preciso da respiração e do ar; atletas, nadadores, aqueles que desenvolvem trabalhos físicos, têm atividade respiratória e trocas de oxigênio e carbono mais intensas do que quem vive sedentariamente; a insuficiência respiratória de doentes exige aparelhos para ser compensada com a respiração artificial.

Durante a vida desaprendemos a respirar corretamente. Desenvolver a ciência e a arte de respirar faz parte de uma cultura respiratória fundamental e quase esquecida, pois toma-se esse ato apenas como um dado natural, sem refletir ou compreender sua real importância e suas variações.

Na sociedade contemporânea, além de aprender a ser, a conviver, a conhecer e a fazer, a educação corporal ou física inclui aprender a respirar, aprender a alimentar-se e a se movimentar. A educação do corpo é um fundamento básico para a educação do ser. Isso significa que a reeducação respiratória é tão importante quanto a educação dos sentidos, a tomada de consciência sobre a cultura alimentar e outras formas de educação essenciais para a vida individual e coletiva.

A civilização indiana foi a que mais se aprofundou nessas ciências e artes e que as comunicou de forma compreensível, construindo um patrimônio intangível que vem sendo revalorizado devido aos benefícios práticos que proporciona.

A pessoas de minha relação que se entediam quando não têm nada para fazer, costumo dizer:

“Respirem...”

Procuro assim valorizar esse ato vital, básico, fundamental para a vida.

Mas admito que esse fato desperta admiração ou curiosidade, especialmente entre aqueles que ainda não tomaram consciência da respiração como um ato cultural.

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Maurício Andrés Ribeiro é autor dos livros “Ecologizar” e “Tesouros da Índia”.

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