A Agressividade e o Radicalismo
Não Passam de Formas de Pânico
Tancredo Neves
Nascido sob o signo de Peixes em 4
de março de 1910, Tancredo (foto) morreu
em 21 de abril de 1985, sem assumir
a Presidência para a qual havia sido eleito
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Nota
Editorial de 2017:
A vida se organiza por círculos
concêntricos. Para que haja fraternidade
universal - primeiro objetivo do
movimento
teosófico - cada cidade e cada país devem
construir-se como ambientes éticos e
solidários.
Transcrevemos, a seguir, o discurso de
Tancredo Neves proferido em novembro de
1984 como candidato à presidência do
Brasil.
Falando no Estado do Espírito Santo ao
final
de 20 anos de ditadura militar, Tancredo
propôs as bases da nova república
democrática.
Omitimos as primeiras linhas da
transcrição,
porque as palavras de abertura do
discurso tiveram
valor apenas circunstancial. No meio da
transcrição,
um trecho voltado para a situação específica
dos
anos 1980 é reproduzido como nota de
rodapé. Deste
modo o presente discurso pode ser lido como
um
documento de atualidade histórica
permanente.
(Carlos Cardoso Aveline)
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Os
ideais do 7 de setembro, com Pedro I, e do 15 de novembro, com o Marechal
Deodoro, cresceram gêmeos no passado como rebentos naturais da Inconfidência
Mineira e de Tiradentes.
No
Brasil, a República respeita e admira o Império precisamente porque, nele, a
democracia nunca sofreu agressões partidas do poder. Respeitamos o Império, mas
ele não podia perdurar. Era um regime singular na América, uma fase histórica
que, em si mesma, nos honra, mas que havia perdido sua razão de ser pela
exaustão dos próprios princípios.
O
desgaste do regime imperial chegou ao ponto de o magnânimo Imperador Pedro II
se declarar, teoricamente, republicano. Mas registre-se que, ao deixar o poder,
nenhum Chefe de Estado em toda a América foi, tanto quanto ele, cercado de
reverência pelos seus contemporâneos, mesmo os adversários. Pode-se dizer que
Pedro II mereceu o culto histórico da posteridade precisamente porque soube
fazer de seu País uma democracia.
A
República venera e respeita o Império, que ela encerrou sem violência nem
injustiça. Reconhece no Império, principalmente, o serviço inestimável de nos
haver trazido a Independência sem guerra e sem divisão do nosso território,
tesouro maior que é a origem da nossa grandeza como País.
O
21 de abril, a Independência e a Proclamação da República representam a linha
ascensional da nossa formação social e política, na qual a Nação e o Estado se
integram na grande pátria coesa, soberana e livre.
A
coesão é a unidade, que mantivemos contra os desafios separatistas, vindos de
dissensões internas ou invasões estrangeiras.
A
soberania é a autodeterminação, que temos sabido conservar diante das ameaças
externas de pressão ou imposição.
A
liberdade é o regime democrático, que temos podido fazer prevalecer e
sobreviver aos eventuais predomínios do autoritarismo; é a democracia, vindo da
Independência e da República, que renasce do absolutismo.
Firmados
em tão inspiradora fonte histórica, retomada em sua pureza, é que teremos de
lançar os alicerces da Nova República.
Primeiro
o alicerce da Federação, a refazer-se autêntica, sem sentido conservador e
localista, com o espírito voltado para a unidade do País. Um federalismo que,
realista e moderno, será capaz de assegurar o desenvolvimento da pluralidade
dos estados, dos municípios e das regiões, ao mesmo tempo em que estabelecerá,
na organização política, a imprescindível unidade nacional.
A
Nova República se quer composta de autonomias vinculadas à soberania central,
na melhor tradição de nosso passado.
Assim antecipada, ela compatibilizará as partes com o seu todo;
harmonizará a desconcentração do poder com a unidade nacional e será forte não
porque o centro o seja, mas porque as frações do todo o serão.
A
República brasileira nós a queremos descentralizada, em atribuições e recursos,
na forma das práticas do federalismo que distribui tarefas ao poder central,
aos Estados, às regiões metropolitanas e aos municípios.
Desconcentração
do poder e descentralização administrativa serão os eixos da construção da
sociedade livre e democrática.
O
alicerce republicano do poder distribuído é infenso ao poder unipessoal. Este é
o segundo significado histórico da existência das Repúblicas; a rejeição do
poder absoluto, incompatível com o pressuposto de uma democracia.
A
Nova República não se coadunará com qualquer experiência de Presidentes
todo-poderosos, impondo as vontades do centro e detendo o quase monopólio do
poder decisório-legislativo.
Alicerce
de igual relevância nas novas instituições é o da temporariedade dos mandatos,
princípio que nos cumpre respeitar em coerência com o nosso passado recente.
É
de grande importância lembrar que, mesmo nesse passado centralizador, houve
obediência fiel a essa norma dos mandatos dos Presidentes, cuja escolha
obedecia a decisões tomadas fora da classe política.
Honra
os brasileiros a desambição dos militares ao respeitarem este princípio, ainda
que sob regime de exceção. Está provado que as substituições no poder
presidencial não ferem a continuidade administrativa do Estado, que se deseja
fundada em burocracia responsável e eficiente, servidora permanente e impessoal
das leis do País.
Finalmente,
o alicerce da cidadania de cada brasileiro: República e cidadania são
indissociáveis. Elas se engrandecem ou se degradam juntas, tendo sempre o mesmo
destino.
Não
haverá no Brasil uma República sadia e estável sem se refazer a realidade e a
mística da cidadania como origem do poder político do Estado e condição maior
da existência dos direitos e liberdades da pessoa humana, independente de
riqueza, raça, sexo ou credo.
Sejamos,
pois, nesta hora decisiva da vida brasileira, possuídos pela mística da
República, a fim de que ela se prepare para a sua continuidade histórica. Para
que ela, instituída em uma Federação descentralizada, seja, efetivamente, capaz
de moderar os conflitos, por meio de uma vigilância constante contra os perigos
de quaisquer novos disfarces pelos quais se pretenda impor à Nação a vontade
das minorias.
A
generosa inclinação dos brasileiros para a tolerância e o consenso fez da
Independência, da Abolição e da República conquistas civilizadas e pacíficas.
Esta cordura nos processos, esta moderação nos meios empregados para o alcance
dos objetivos mais difíceis, esta ausência de violência no encaminhamento das
soluções mais intrincadas não significam debilidade de um povo, mas, ao
contrário, força de alma e de razão. O rigor e a violência são, muitas vezes,
filhos da fraqueza e do temor. Os livros são férteis de casos trágicos, que,
não fora a desconfiança e o medo, não teriam prevalecido por tanto tempo em
tantas Nações.
Os
historiadores sabem que muitas vezes a agressividade e o radicalismo não passam
de formas de pânico, individuais ou coletivas, situações limite que, por isso
mesmo, não podem durar e, muito menos, ser permanentes.
De
outra parte, reconhecem que a organização democrática e, especialmente, a sua
Justiça podem e devem ser permanentes, pois têm na moderação e na paz os
princípios básicos de sua continuidade e de seu constante aprimoramento. Este
espírito democrático é uma vertente da história brasileira. No avanço de nossas
instituições políticas, na fixação dos limites de nosso território, o Brasil
sempre ofereceu a moderação como motor de seu progresso, inspirador de suas
ações e do seu engrandecimento.
Infelizmente,
a República, instalada e confirmada com tanta prudência e saber, passou a
conhecer depois, nos períodos de transição e, especialmente, nos momentos de
transmissão do poder supremo, crises de violência e de injustiça, colapsos
breves ou longos do Estado de Direito, governos impostos pela força, períodos
de escuridão sem causa que têm abalado o prestígio do País e comprometido a
situação que o Brasil ocupa no Continente.
É
mais que chegado o tempo de se pôr um paradeiro neste demorado e repetido
espetáculo de imaturidade política e de submissão da razão à paixão. Este
espetáculo que, com felizes alternativas, vem durando desde 1922, deve se
encerrar agora em uma confluência de propósitos elevados, dentro das naturais
divergências democráticas.
É
mais que chegado o tempo em que se inicie a marcha para um futuro de
estabilidade das instituições e de progresso econômico que prepare o nosso País
e seu povo para melhores dias. O futuro dos nossos descendentes e, em certa
medida, o equilíbrio da civilização no mundo dependem um pouco da conduta, da visão
e da capacidade realizadora dos brasileiros de agora.
O
alargamento interno do território nacional, consequente à fundação de Brasília,
o progresso nas comunicações e na tecnologia, as realizações da política
energética, o avanço cultural e político, a crescente participação popular no
acompanhamento das decisões nacionais e o acúmulo, enfim, das potencialidades
criadoras da sociedade brasileira não cabem no quadro estreito e hesitante da
instabilidade institucional. Não cabem no regime das decisões fechadas, do
predomínio das ambições pessoais ou de grupos sociais ou econômicos. Não cabem,
evidentemente, na estreita moldura do contraste entre uma sociedade que se
expande e uma política que se encolhe, na qual podem subsistir medidas
casuísticas, soluções impopulares e objetivos antiéticos. [1]
A
fase nova se definirá pela eliminação dos resíduos autoritários que subsistem
na legislação vigente e pelo início, decidido e corajoso, das transformações de
cunho social, administrativo, econômico e político que requer a sociedade
brasileira.
Vamos,
com a graça de Deus, presidir o momento histórico e o faremos com a cooperação
e a participação de todas as forças políticas, econômicas e sociais bem
intencionadas, sem quaisquer preocupações de represálias quanto ao passado.
Minha
formação democrática, alicerçada em uma vida pública em que nunca faltaram o
apoio do povo, o voto direto dos meus concidadãos e a confiança das lideranças
políticas e sociais, não foi e jamais será marcada por revanchismos ou represálias.
Estes são métodos próprios de governo e governantes temerosos dos resultados de
suas injustiças e dos seus excessos de poder.
Podem
os brasileiros estar seguros de que faremos, com prudência e moderação, as
mudanças que a República requer. Mudanças na legislação opressiva, nas formas
falsas de representação, na estrutura federal, de maneira a que se fortaleçam
os Estados e os municípios.
Tudo
isso há de acontecer com a participação ativa e decidida do Poder Executivo
Federal, que manterá os ouvidos abertos para a opinião pública e procurará, por
todos os modos, o apoio dos representantes do povo neste e no futuro Congresso
Nacional.
Politicamente
enfrentaremos com repulsa os radicalismos, que agridem os sentimentos e as
tradições nacionais. Repulsa a todos os radicalismos, tanto os de esquerda, que
nos levam ao fanatismo ideológico, quanto os de direita, carentes de princípios
e repletos de ambições de poder.
A
Primeira República, terminada em 1930, padeceu de defeitos e vícios
principalmente políticos, decorrentes de uma estrutura federativa oligárquica e
de escassa visão nacional.
A
Segunda República, que se instalou a partir de 1930, atravessou sucessivas
crises, de origem marcadamente político-ideológicas, origem esta que
condicionou os grandes embates do nosso tempo.
Estes
embates, dramatizados em duas guerras mundiais - as maiores da história humana
-, criaram reflexos tumultuosos em países como o nosso e explicam, de certa
forma, como nesse período a experiência atormentada do Brasil faz parte da
experiência mesma vivida pelo mundo ocidental.
Os
momentos atribulados que vivemos nestes quase cem anos e as crises que
superamos ressaltam ainda mais a grandeza da República e é na evocação do 15 de
novembro de 1889 que relembro os ideais que forjaram essa grandeza.
A
República nasceu para dar ao povo um regime no qual ele pudesse participar,
escolhendo os seus governantes em oposição ao direito hereditário dos reis.
Vitorioso o movimento, uniram-se republicanos e monarquistas, sem ressentimentos
ou sectarismos, para construir a nova ordem.
O
povo é a substância da República, como prova a raiz latina da palavra. A
República deve, pois, ser o compromisso fundamental do Estado para a solução
dos problemas do povo, o atendimento de suas necessidades básicas até de
sobrevivência. As necessidades referentes ao pão, à saúde, à habitação, à
previdência e assistência social, que têm na criação de empregos, no salário
digno e na justa distribuição de renda e dos frutos do progresso as suas
respostas básicas.
Não
nos esqueçamos pois, neste momento histórico, que essa é a dívida institucional
da República, a ser resgatada com superioridade hierárquica sobre qualquer
outra, pois o homem, o seu desenvolvimento e o seu bem-estar são a destinação e
a verdadeira segurança do Estado.
Repete-se
hoje o alvorecer de uma Nova República, que vai nascer revigorada no
compromisso de fortalecer seus valores e seus símbolos.
É
hora de lembrar que a República foi sonhada e implantada pelas nossas gloriosas
Forças Armadas. A palavra de Benjamim Constant e a espada do Marechal Deodoro
da Fonseca fundiram a República nas chamas de acrisolado idealismo. Desde então
Forças Armadas e Repúblicas vivem indissoluvelmente vinculadas: se esta entra
em colapso, aquelas sofrem na quebra de suas tradições e de sua vocação
história.
Daí
ser imperioso criarmos uma Nova República, forte e soberana, para que nossas
Forças Armadas não sejam nunca desviadas de sua destinação constitucional.
Forças Armadas vigorosas, compenetradas de suas funções tutelares e imbuídas de
sua capacidade técnica e profissional é o que todos almejamos, para que possam
desempenhar, na maior competência e eficiência, as suas missões, no quadro de
definição de seus encargos, na patriótica defesa interna e externa do País.
De
Norte a Sul do Brasil estou pregando, em praça pública, a unidade nacional.
Prego
a concórdia, a construção do futuro, e não me prendo aos pesadelos do passado.
Sinto que estou contribuindo, de maneira eloquente e significativa, para unir o
nosso povo, tão dividido em face dos graves problemas desta hora.
É
com profunda emoção que tenho visto, do Acre ao Rio Grande o povo, em grande
vibração cívica, nas concentrações públicas, cantar com ferver o Hino Nacional,
de mãos dadas, em meio às bandeiras nacionais, que são símbolos e inspiração de
nossa luta e de nosso comportamento.
Estou
contribuindo para reacender a chama do patriotismo. Como fizeram em 1889, prego
o direito do povo de eleger diretamente seus governantes, em todos os níveis,
estabelecendo que só existe um império, que é o império da Lei, e só um
soberano, que é o povo brasileiro.
Exalto
os valores da Pátria, a ordem e o progresso, e faço-me apóstolo dos que
sonharam e criaram a República.
Inspiro-me
nesta data para proclamar que nenhuma campanha cívica na história do Brasil foi
tão voltada para os valores e as instituições republicanas quanto a que agora
realizamos.
Em
nenhum momento reuniu-se numa mesma causa tão ampla presença de homens e
mulheres de tantas tendências, sem distinção ou discriminação de qualquer
sorte.
São
os brasileiros, civis e militares, trabalhadores e empresários, estudantes e
professores, homens e mulheres de todos os credos e de todas as raças, com um
só objetivo: restaurar em sua plenitude a democracia no Brasil. E restaurar a
democracia é restaurar a República, missão que estou recebendo do povo e se
transformará em realidade pela força não apenas de um político, mas de todos os
cidadãos brasileiros.
NOTA:
[1] Neste
ponto da transcrição há um trecho cujo valor é mais histórico do que atual, e
o reproduzimos aqui como nota de rodapé.
Diz Tancredo:
“A
transição para a Nova República passa pelo voto dos representantes do povo em
15 de janeiro de 1985. O sistema de escolha do Presidente pelo Colégio Eleitoral
abre-se sob a pressão da opinião pública e vai servir, agora, à transição
democrática. A eleição, ainda imperfeita, por não se ter podido organizar para
a participação direta do povo com o voto de nossos mais de 60 milhões de
eleitores, mesmo assim registrará importantíssimo progresso. Terminados os Atos
Institucionais, aprovada a Lei da Anistia e realizadas as eleições de 1982 - as
mais livres e diretas dos últimos vinte anos - caminha-se para o passo mais
sério e decisivo da sucessão presidencial. Na transição, sem dúvida, temos
agora o grande avanço republicano e democrático como decorrência da vontade
manifesta de mudança, que se expressou na longa campanha das ‘diretas já’ e se
constituiu na base mesma da pregação dos candidatos da Aliança Democrática.
Festejemos a República. Ela progrediu pacificamente, pelas ações de propaganda
nos meios civis e militares, pelas lições dos mestres nas escolas e faculdades,
pela manifestação das forças políticas organizadas na Câmara e no Senado do
Império, pelas vozes presentes nas grandes reuniões e nas praças públicas, pela
coragem da palavra dos jornalistas e o desassombro de grandes e pequenos
jornais. A campanha republicana chegou à vitória do 15 de novembro sob as
garantias jurídicas do Supremo Poder Imperial, não ausente, mas presente, no
respeito deliberado à evolução pacífica das instituições. Estou certo de que,
com a vivência dos nossos maiores e tendo em vista a segurança da vitória
democrática em 15 de janeiro, o Brasil poderá afinal encerrar esta longa fase
de oscilações entre o Estado de Direito e o Estado autoritário. Foram mais de
sessenta anos que marcaram a República e correspondem a fases superadas de
nossa evolução política e social. A posse do Presidente eleito vai marcar, em
15 de março, uma fase de ordem, de paz, de moderação, de participação e de
progresso. Uma fase de avanço institucional, político, econômico e social. Ela
será iluminada pelo futuro Poder Constituinte que, eleito em 1986, substituirá
as malogradas instituições atuais por uma Constituição que situe o Brasil no
seu tempo, prepare o Estado e a Nação para os dias de amanhã e honre as
melhores tradições das Constituições que já tivemos.”
Terminado
este trecho, segue a transcrição na sua sequência literal. (CCA)
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O texto
acima é transcrito do livro “Tancredo
Neves, Sua palavra na História”, organização de Lucilia de Almeida Neves
Delgado, Fundação Tancredo Neves, Livraria Atheneu, RJ/SP, 1988, 345 pp., pp.
277-283.
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