A Arte de Visitar e Ver a Vida no Rio dos Sinos
Carlos Cardoso Aveline
Cena do rio dos Sinos durante uma
cheia. Foto: jornal NH, de Novo Hamburgo, RS.
O povo que preserva a sua memória e
aprende com o passado alcança uma visão correta do futuro.
No final dos anos 1980, o sr. Edgar
Heurich descreveu de modo vívido durante um debate ecológico uma cena recorrente
no rio dos Sinos das décadas de 1940 e 1950. [1]
Henrique Luiz Roessler, o pioneiro da
ecologia no Brasil, subia o rio impulsando seu longo barco com um único remo.
Em meio à paisagem cheia de vida, sem o ruído dos motores modernos, o barco
ecológico avançava lentamente contra a correnteza.
Na popa, de pé, a figura imponente de
Roessler. Sentada na parte dianteira, sua esposa. À medida que o barco
avançava, de algum modo misterioso ou quem sabe por um sinal convencionado (como
assobio ou grito), a notícia da presença do ecologista se alastrava.
Pescadores clandestinos, caçadores e
outros personagens que tinham a consciência pesada com relação à preservação da
natureza iam afastando-se do rio. As margens perdiam rapidamente sua população.
Pela proximidade do seu protetor, a natureza recuperava seus direitos.
Henrique Luiz Roessler, cujo trabalho teve
um grande continuador em seu filho Milton, não é apenas o patrono do movimento
ecológico gaúcho, mas será sempre uma presença misteriosa e real nas águas do
rio dos Sinos. E também uma fonte de inspiração e conselho intuitivo para quem
luta pela sua proteção.
No final dos anos 1980 os tempos eram diferentes
da época de Roessler. A fiscalização da pesca era quase inexistente, mas algum
esforço vinha sendo feito. Depois de começar a fazer viagens pelo rio
explicando aos pescadores por que a pesca com redes era proibida de novembro a
fevereiro, foi uma satisfação perceber que de viagem para viagem ia diminuindo
o número de redes, e não só porque elas eram apreendidas. Os bons pescadores eram
amigos e aliados de quem defendia o rio. Alertados, cooperavam.
Há pessoas que nunca andaram pelo Sinos mas
têm uma vontade enorme de flutuar nas águas deste rio legendário.
“Não se pode amar o que não se conhece, e não
se pode defender o que não se ama”, diz uma frase que ouvi num encontro
ecológico.
E, de fato, conhecer os nossos rios é
fundamental. Andar de barco é totalmente seguro e tem pelo menos duas vantagens
sobre andar de automóvel nas ruas da cidade. Não há esquinas perigosas, nem
sinais vermelhos.
Devido à sua forma geométrica e ao
material com que é feito, um barco moderno é praticamente impossível de virar
na água. Além disso, a ação do motor lhe dá uma grande estabilidade perante as
correntezas mais perigosas. Não há hoje qualquer aventura ou risco em andar de
barco pelo rio, ao contrário do que ocorria nos tempos antigos. Mas a
experiência é igualmente agradável, como aconteceu em uma viagem feita nos
primeiros dias de 1988.
Em determinado momento, desliguei o motor
e descemos o rio usando os remos para manter o barco no rumo certo. Foi
possível então ouvir perfeitamente os ruídos da natureza viva e observar melhor
os pássaros, o salto dos lambaris, a expectativa das garças e
martins-pescadores esperando pegar algum peixe distraído.
Quando subíamos o rio a toda velocidade e
eu tinha o ronco do motor nos ouvidos, fiquei observando como uma colega de
viagem olhava maravilhada os pássaros que jogavam corrida com o barco, as
árvores imponentes à beira do rio, as curvas súbitas, cheias de surpresas, nas
águas do velho rio. O motor era o leme. A experiência acumulada me permitia
dirigir o barco com a mesma naturalidade com que se dirige um carro na cidade.
A grande diferença é que num rio tudo é vivo, tudo é vida, inclusive o ar e a
água e as margens de terra nos dois lados.
Percebi a perfeita identidade, na mente e
no coração, entre os seres humanos e os rios que lhes dão água. O corpo humano
é feito em setenta por cento de água, e a água vem dos rios.
O curso d’água que nos abastece continua
navegando misteriosamente em nossos organismos. O rio flutua e navega em nós,
assim como nós podemos navegar em suas águas.
A vida transcende a forma.
O que é grande está presente no que é pequeno. O que é pequeno pode ser encontrado no que é imenso. As coisas ocorrem assim no Céu como na Terra, e a unidade entre tudo o que há é um fato a celebrar todo dia.
NOTA:
[1] O debate ocorreu
em janeiro de 1988 na sede da União Protetora do Ambiente Natural, em São Leopoldo,
RS, Brasil.
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O artigo “O Rio que Navega em Nós” está disponível nos websites associados
desde o dia 24 de julho de 2021. Uma versão inicial do texto foi publicada em
12 de janeiro de 1988 no jornal “Vale do
Sinos”, da cidade de São Leopoldo.
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Leia mais:
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Helena Blavatsky (foto) escreveu
estas palavras: “Antes de desejar, faça
por merecer”.
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