Conflito e
Bem-Aventurança Fluem
Lado a Lado no Caminho Espiritual
Lado a Lado no Caminho Espiritual
Carlos Cardoso
Aveline
Helena
Blavatsky escreveu sobre a harmonia interior entre os ensinamentos teosóficos e
a filosofia dos Templários. [1]
A Regra
ou Disciplina da Ordem do Templo - escrita pelo místico francês Bernardo de
Claraval (1090-1153) - expressa em alguma medida o compromisso sagrado em torno
do qual estruturou-se a vida templária. De modo semelhante, na era moderna, o
Compromisso original da escola esotérica criada por Blavatsky em 1888 cumpre um
papel central na história interna e mística do movimento teosófico.[2]
É
verdade que a Regra dos Templários não tem um grande interesse teosófico. Ela
se refere principalmente à vida diária externa de uma ordem religiosa militar
medieval. Ainda assim, há nela vários itens cujo valor filosófico é grande. [3] E seguramente os cavaleiros do
Templo possuíam níveis mais profundos de compromisso, que não aparecem na Regra
conhecida.
Segundo
as informações disponíveis publicamente, a Ordem dos Cavaleiros Pobres de Cristo e do
Templo de Salomão foi criada em Jerusalém no ano de 1118.
Mais de
um estudioso, no entanto, pensa que esta foi apenas a sua criação formal
externa. Afirma-se que a ordem teve uma existência embrionária anterior. Freddy
Silva, por exemplo, cita documentos históricos para comprovar que a organização
estava plenamente ativa em Portugal sete anos antes, em 1111.[4]
No
século 12, os estudiosos de filosofia esotérica ainda participavam da vida da
igreja católica. Escrevendo sobre os Templários, Blavatsky deixa claro que a
Ordem destes místicos e guerreiros possuía fortes ligações internas com a
sabedoria esotérica do Oriente.
S.
Bernardo de Claraval, diretamente ligado aos Templários e no mínimo um forte
aliado deles, é visto por alguns como o principal pensador cristão do seu
tempo. Entre suas obras de interesse para a filosofia esotérica está o tratado
“Doze Graus de Humildade e Orgulho”, em que discute a “escada divina” para o
céu. O tema é profundamente teosófico. [5]
Em
outro tratado, Bernardo examina a relação entre a Graça e o Livre Arbítrio. Há
um contraste e uma unidade entre estas duas coisas.
Antes
de examinar a questão, cabe lembrar que a ideia de um Deus supostamente
monoteísta corresponde em teosofia ao conceito de Lei Universal, a Lei do
Carma. Mas não só isso. A ideia de Deus ou Senhor simboliza também a noção de
eu superior e alma espiritual. O verdadeiro ser de cada um de nós está imerso
na Lei eterna, e tudo o que vem do alto até nós tem como origem a inteligência
divina do cosmo. Vejamos então o que é a graça celeste. Examinemos a sua
relação prática com o livre arbítrio e a
lei do carma.
A graça
é a oportunidade sagrada. É a potencialidade da bênção e a energia do eu
superior. Constitui o lado divino agradável da vida. Expressa a noção de bom
carma, tanto individual quanto coletivo.
Porém, há um outro aspecto da existência humana, igualmente
divino, que está presente no sofrimento e surge dele como uma lição e como um
aprendizado.
A graça
e a dor são dois aspectos da vida e do carma. O livre arbítrio, por sua vez, é
a possibilidade sempre disponível de uma tomada de decisão consciente por parte
do eu inferior, do ser humano em seu aspecto concreto.
Livre
arbítrio é o nosso dever constante de tomar decisões pessoais o tempo todo,
arcando com as consequências dos erros e sendo beneficiados pelos acertos. A Graça desce como orvalho desde os níveis
superiores de consciência, e faz isso na exata medida em que, nos níveis
inferiores e básicos, tenhamos usado o nosso livre arbítrio para agir
corretamente.
Helena
Blavatsky escreveu:
“Antes
de desejar, faça por merecer”.[6]
A ideia
de acumular mérito é central tanto nas filosofias do Oriente como no cristianismo.
É preciso plantar, antes de colher, e plantar não é fácil. No capítulo primeiro
da obra “Sobre a Graça e o Livre Arbítrio”, São Bernardo afirma algo que todo
teosofista sincero pode perceber diretamente ao olhar de frente para a sua
própria vida diária: é mais fácil saber algo
sobre o rumo certo do que caminhar, de fato, no rumo certo.
Bernardo
explica:
“É mais
fácil saber o que deve ser feito do que fazer o que deve ser feito, porque uma
coisa é orientar um cego, e outra coisa é carregar o exausto [que já não pode caminhar]. Nem todo
homem que mostra o caminho ao peregrino dá a ele também o que comer durante a
caminhada. Aquele que lhe dá instruções para que seus passos não percam o rumo
faz uma coisa; aquele que o alimenta para que ele não perca as forças ao longo
do caminho faz outra coisa.” [7]
A Transmissão Vivencial
Ouvir e
compreender interiormente o ensinamento é um primeiro passo. Viver à altura do
que foi compreendido é outro nível do aprendizado. O bom conselho, acrescenta
Bernardo de Claraval, é um conselho que pode ser colocado em prática.
Ensinar
em abstrato é uma tarefa: a transmissão vivencial da prática pelo exemplo e
pelo convívio é outra. O processo depende tanto daquele que ensina como daquele
que aprende. Bernardo alerta:
“… Nem
todo professor transmite diretamente o bem que ele ensina”.
Quando
a aprendizagem fica obstaculizada, a causa do problema pode estar tanto nas
limitações da ação de quem ensina como nas dificuldades de quem aprende. A
aprendizagem ocorre conforme o carma coletivo e os carmas individuais. Há
limitações para a ação de um mestre: ninguém pode ensinar algo que o aluno é
incapaz de aprender.
Bernardo
prossegue:
“Consequentemente
minha necessidade é dupla, ou seja, preciso ser ensinado e preciso ser ajudado
a fazer aquilo que me é ensinado.” Posso
receber excelente conselho, em minha ignorância, mas Aquele que me dá o
conselho deve Ele mesmo por seu Espírito ajudar-me a obedecer o conselho. [8]
Bernardo
cita Santo Agostinho para acrescentar:
“Não é
por ações meritórias que tenhamos feito que Ele nos salva, mas por causa da Sua
misericórdia. Você pensou por acaso que havia criado os seus próprios méritos,
que poderia ser salvo pela sua própria boa ética, quando não é capaz de dizer
sequer que Jesus é o Senhor? Esqueceu quem foi que disse ‘Sem mim você não pode coisa alguma’?”
Sem
Jesus nada podemos. Mas é preciso compreender o simbolismo esotérico da
linguagem cristã medieval. “Jesus” é uma
representação simbólica do eu superior, da alma espiritual do peregrino.
Embora
a boa ética do aprendiz seja indispensável, a salvação, isto é, a sabedoria
transcendental, não surge diretamente das suas boas ações. Resulta da presença
da alma espiritual, Jesus, o “sexto princípio da consciência” segundo a
linguagem da teosofia clássica.
O bom
uso do livre arbítrio por parte do eu inferior coloca o peregrino em harmonia
com a alma espiritual, ou seja, em sintonia com o Mestre, a divindade, a lei
una. É a Misericórdia, a lei da
Compaixão Universal, que no momento certo abençoa o aprendiz. (ver “Concerning Grace and Free Will”, obra citada, p. 5)
Devido
ao bom uso do discernimento, o eu inferior percebe que está imerso na graça
celeste, do mesmo modo como a Terra gira em torno do Sol e recebe a sua luz.
O eu inferior não pode fazer com que o Sol nasça. Tampouco produz a sua
própria salvação. Porém, graças à luz do Sol espiritual, que está no seu próprio
eu superior, ele é capaz de enxergar a verdade e construir pouco a pouco uma
relação correta com todos os seres.
A Luta Entre Erros e Acertos
Há uma relação
dinâmica entre autorresponsabilidade e progresso espiritual, isto é, entre o
uso correto do livre arbítrio, de um lado, e a graça celeste, de outro. Este
fato leva o estudante a examinar a sua própria vida como uma espécie de
conflito entre os seus erros e os seus acertos.
Assim
nasce o desafio do guerreiro: a vida implica um certo combate, que não é
necessariamente físico.
No Novo
Testamento, Jesus afirma que não vem trazer a paz, mas a espada. Jesus é um
sábio que prima pela não-violência. Como
guerreiro, ele combate a ignorância. A sua espada é a mente lúcida diante dos
fatos da vida:
Jesus Cristo, o Guerreiro da Verdade
As
artes marciais do Oriente têm origem budista. Cabe registrar que o Mestre de
HPB, um raja-iogue oriental, pertence à casta indiana dos guerreiros e à
dinastia guerreira dos Maurya.[9]
Em
1867, aos 36 anos de idade, Helena
Blavatsky participou pessoalmente da batalha de Mentana como voluntária ao lado
das forças de Garibaldi, na Itália. Foi gravemente ferida, tendo uma experiência
próxima à morte. De algum modo foi retirada de uma pilha de cadáveres e salva.[10]
Quando
começamos a ler algo sobre a Ordem do Templo, vemos que os seus membros eram
guerreiros em pelo menos dois aspectos.
Primeiro,
os Templários lutavam contra a ignorância espiritual em seu interior, em suas próprias
almas. Através do bom uso do livre
arbítrio, buscavam seguir a vontade do eu superior, e não do eu inferior. Isto
implica autossacrifício.
Em
segundo lugar, e ao mesmo tempo, alguns dos templários cumpriam missões
militares. Neste aspecto, seguiam o
caminho dos antigos guerreiros espirituais, no Oriente.
Os
sábios se abstêm de toda agressão física e ensinam a não-violência. Porém, vivem
e ensinam sobretudo a Lei do Equilíbrio. Conhecendo a ignorância, podemos
evitá-la. O motivo para conhecer as leis do conflito é evitar o conflito, tanto
quanto isso é possível. A razão para estudar como funciona a violência é evitar
o desequilíbrio provocado pelo desrespeito, e eliminar as suas raízes. Isso é
feito com mais eficiência através do plantio de três coisas: a justiça, a
harmonia e a ajuda mútua. A tarefa requer um grau de severidade. O bom uso do
livre arbítrio por parte do guerreiro não-violento produz uma correspondência
harmoniosa da sua vida concreta com as leis do mundo espiritual.
O Bom Uso do
Discernimento
A
prática ativa da solidariedade é indispensável para quem pretende lutar e obter
a sabedoria do altruísmo. A sangha - a comunidade de buscadores - constitui um
dos três refúgios que amparam o budista. Os outros são o Mestre (Buddha) e a
Lei, ou seja, o Dever, o Ensinamento
(Dharma).
A Ordem
do Templo era a sangha ou comunidade dos templários originais, um equivalente
medieval das atuais associações teosóficas ou esotéricas, quando estas são
sérias e bem informadas.
Em
qualquer século ou nação, o aspecto coletivo do esforço melhora a pontaria de
cada guerreiro e reforça a sua capacidade de amparar o bom uso do discernimento
na vida diária, e assim plantar o carma positivo que irá permitir a
manifestação da graça celeste.
A ajuda
mútua leva à formação de uma Regra de vida, uma estrutura de ações e
prioridades que protege a decisão de buscar o melhor e o mais nobre. O judaísmo
fala de uma “cerca” de bons hábitos que o estudante constrói em torno do seu
compromisso com a Torá, o Ensinamento.
A Regra
ou Disciplina Diária deve ser livremente aceita pelos peregrinos associados.
Esta aceitação sincera e individual é produto do livre arbítrio. Ao mesmo
tempo, implica uma responsabilidade de longo prazo.
Em sua
obra sobre a regra primitiva dos Cavaleiros Templários, Pinharanda Gomes
escreve:
“Quando,
em 1118, Hugo de Payens, se exilou da Champagne para se fixar, mais os 6
companheiros, em Jerusalém, ele tinha um projeto, mas não tinha, desde logo, um
Regulamento. A necessidade de dispor de
regras de vida é algo que surge dia a dia, conforme as exigências de uma
disciplina, em que cada um dos membros do grupo saiba o que lhe incumbe, em vez
de agir a livre alvedrio.” [11]
Livre
alvedrio é livre arbítrio.
O livre
arbítrio não significa que você está livre para trocar de ideia
irresponsavelmente a qualquer momento e não precisa levar a sério os seus
compromissos. Num plano moral, ninguém tem a liberdade de agir traiçoeiramente,
nem com deslealdade. Nenhum peregrino dispõe da liberdade de mentir
impunemente.
Quem
tem autoestima respeita as suas próprias decisões. O fato fundamental do livre
arbítrio significa que uma decisão séria é livre. Porém, as consequências da
decisão são obrigatórias. Devem ser levadas a sério e administradas com
paciência, de modo inteligente e criativo.
O voo
das moscas muda de direção a todo momento, mas é muito diferente o voo dos
pássaros de grande porte, porque eles preferem viajar em altitudes elevadas,
com uma visão ampla. Uma vez tomada por si mesmo a soberana decisão de buscar a
sabedoria e de avançar para o alto, cabe, pois, agir à altura.
Olhando
o aspecto coletivo do esforço, examinemos onde fica a sede central da
comunidade dos peregrinos.
O lugar
da Ordem do Templo original era Jerusalém [12],
a cidade santa, um símbolo dos planos superiores de consciência.
Em
outras palavras, o compromisso durável com uma vida correta - estabelecido com
base no livre arbítrio individual - acontece no plano superior, na cidade
celeste, no território da alma
espiritual.
A
consciência humana inclui Céu e Terra, e inclui também a escada que liga os
dois. O contato entre céu e Terra é dinâmico. O
compromisso é um processo vivo. O que
sobe, mais tarde desce, e desce melhorado. Quando a ação correta se ergue até o
plano celeste por uma livre decisão individual, a graça divina passa a cair
como orvalho desde os planos superiores, abençoando a topografia do aspecto
terrestre da alma.
NOTAS:
[1] Veja “O Mistério dos Templários”,
artigo de Helena Blavatsky.
[2] Examine por
exemplo “As Sete Cláusulas de um Compromisso”.
[3] “A Regra dos
Templários”, de J.M. Upton-Ward, Ed. A Esfera dos Livros, Portugal, 2006, 255
pp. “A Regra Primitiva dos Cavaleiros Templários”, Pinharanda Gomes, Hugin
Editores, Portugal, 1999, 159 páginas.
[4] “Portugal a
Primeira Nação Templária”, Ed. Alma dos Livros, 2018, 358 pp., ver p. 59.
[5] “The Twelve Degrees of Humility and Pride”, London,
1929, Society for Promoting Christian Knowledge, translated by Barton R.V.
Mills, 95 páginas. A obra faz uma escala com os diferentes níveis de
consciência. O paralelo com o ensinamento teosófico é imediato. Veja “Os Sete Princípios da Consciência”
e “A Ponte Entre Céu e Terra”.
[7] “Concerning Grace and Free Will”, St. Bernard, Abbat
of Clairvaux, Society for Promoting Christian Knowledge, London, UK, New York,
USA, The MacMillan Company, 1920, 95 páginas. Ver metade inferior da página 03.
[8] “Concerning Grace and Free Will”, St. Bernard, Society
for Promoting Christian Knowledge, London, UK, 1920, 95 páginas. Ver pp. 3-4. Reproduzo
nesta frase sem aspas as ideias de S. Bernardo, e uso as mesmas palavras que
ele, porém numa estrutura de frase usada hoje e que não segue literalmente a
estrutura de frase da linguagem clássica.
[9] Veja o artigo “The Mauryan Dynasty”.
[10] “Helena
Blavatsky”, de Sylvia Cranston, Editora Teosófica, Brasília, 1997, 678 pp., ver
pp. 102-103.
[11] “A Regra Primitiva
dos Cavaleiros Templários”, Pinharanda Gomes, Hugin Editores, Portugal, 1999,
159 páginas. Ver p. 17.
[12] “A Regra
Primitiva dos Cavaleiros Templários”, Pinharanda Gomes, ver p. 19.
000
O texto
“Os Templários, o Livre Arbítrio e a
Graça” está publicado nos websites associados desde o dia 03 de julho de
2022.
000
Leia mais:
000
Leia a Parte Um da obra “Três Caminhos para a Paz Interior”. Com sete capítulos, ela é
intitulada “O Caminho do Guerreiro”.
O livro é de Carlos Cardoso Aveline e foi publicado pela Editora Teosófica, em
Brasília, em 2002. Possui 191 páginas.
000