E a Maneira de
Construir Bom Senso na
Vida Pessoal e na
Comunidade das Nações
Carlos Cardoso
Aveline
Henry Kissinger, em
diálogo com Vladimir Putin em Moscou
Na vida
em família, na política local ou na comunidade das nações, a prática de usar os
outros como bodes expiatórios nos ajuda a viver a ilusão de que somos
infalíveis, e de que a verdade pertence a nós.
“Qualquer um que discordar de mim está obviamente
errado”, diz o tolo otimista.
Este tipo de padrão emocional é confortável no curto
prazo, na família, entre amigos e em política. Mais tarde ele termina em
desastre, mas é inicialmente agradável pensar que não precisamos questionar a
nós mesmos. Não há razão para aprender coisa alguma dos nossos erros. Quem
pensar diferente merece o nosso desprezo automático.
Em todas as formas de vida coletiva, os ataques
persistentes contra esta ou aquela personalidade são mecanismos de
“scapegoating”, ou fabricação de bodes expiatórios. São também uma espécie de
“vudu” sutil. A repetição de insultos ou acusações sem base cria uma falsa
imagem do nosso oponente. Esta ideia do adversário é então atacada
persistentemente, e passa a cumprir o papel de boneco de vudu.
Em um país em que este tipo de tática política é dominante,
o espírito da democracia está em perigo. Quando uma tamanha falta de
sinceridade não é desmascarada na comunidade internacional, o princípio do
diálogo entre as nações é questionado e surge a possibilidade de guerra. Se um
país ocidental com armas nucleares cai neste tipo de jogo psicológico contra
outra potência nuclear, o seu governo está sofrendo de uma notável ausência de
lucidez.
Será
Necessário um Bicho-Papão?
É um fenômeno antigo a perseguição daquele que não se
encaixa em um consenso forçado. Há muitos séculos os judeus têm sido os
principais bodes expiatórios das nações cristãs, mas não se pode dizer que o
povo judeu está sozinho neste papel. Em séculos mais recentes ele tem tido a
companhia dos negros, das nações africanas, dos asiáticos e de grupos menores
de cristãos (como os Amish), para citar uns poucos exemplos. Durante a Guerra
Fria, os russos eram o grande inimigo. A terra de Dostoievsky e Tolstoi fazia o
papel conveniente de bicho-papão internacional e “fonte de todos os problemas”.
Naturalmente, os Estados Unidos cumpriam um papel semelhante na vida da Rússia
comunista.
O hábito de usar um indivíduo, grupo ou nação como bode
expiatório é em alguns casos principalmente subconsciente, pelo menos para
muitas das pessoas envolvidas, porque ocorre numa parte instintiva da alma.
Entre outras metas, o mecanismo visa esconder alguma verdade importante, uma
verdade que, se fosse aceita de modo adequado, abriria caminho para um
crescimento em sabedoria por parte da comunidade mais ampla.
O uso de bodes expiatórios é uma tentativa fracassada de
ocultar algum fato desagradável, de si mesmo e dos outros. Trata-se de afastar
uma realidade dolorosa estimulando o medo do desconhecido. O sentimento de
insegurança interior será disfarçado ou ocultado pela atitude de desprezo e
raiva. Vejamos um exemplo. Um país rico, usando agências de espionagem e os
meios de comunicação para fabricar convincentemente um inimigo internacional,
pode provocar um clima político global de constante insegurança, que lhe
permita estimular o seu próprio complexo industrial-militar enquanto impõe um
controle mais apertado aos seus cidadãos, internamente.
O truque funciona durante algum tempo. No momento certo,
a verdade se torna clara e o fracasso não pode mais ser evitado. Em qualquer
instante vale a pena lembrar a lei fundamental da vida: o que vai, volta. O que
se planta, se colhe, cedo ou tarde. Preservar um sentimento de respeito pelos
nossos adversários nos permite ser suficientemente realistas e equilibrados para
aprender com nossos próprios erros.
A presença de bom senso em nossas vidas é protegida pela
prática da sinceridade, e não pela prática do ódio organizado. A falsidade não
é boa conselheira. Toda raiva durável destrói a lucidez das pessoas. Os
jornalistas sabem por experiência própria que a verdade é a primeira vítima de
uma guerra, enquanto, por outro lado, a paz torna possível a sinceridade.
As fontes de paz estão em nossa mente e em nossa alma.
Quando o bom senso prevalece, a manipulação desonesta dos sentimentos da
comunidade é deixada de lado e a liderança compreende que a prática do ódio faz
a pessoa viver num plano inferior ao nível de quem é odiado. No longo prazo, a
força interna é que faz a diferença. Aqueles que cumprem o papel mais importante
desde um ponto de vista espiritual são com frequência os mais fracos no plano
físico, e podem ser usados como bodes expiatórios.
No exercício legítimo das artes marciais do Oriente, não
há espaço para o medo ou a raiva. Estes dois sentimentos opostos são vistos
como inseparáveis, e facilmente se transformam um no outro. Uma boa vontade
impessoal por todos os seres constitui fonte central de autocontrole e um fator
básico na prática eficiente de artes marciais.
Quando o foco da nossa percepção funciona na perspectiva
dos níveis superiores da vida, a nossa situação externa tende a melhorar
naturalmente. Nestas condições nós não temos a ideia infeliz de procurar bodes
expiatórios para projetar neles as nossas frustrações. Na família como entre as
nações, abandonar o ódio é melhor do que persistir na prática da acusação
falsa.
O diálogo entre países é similar ao diálogo entre os
membros de um pequeno grupo. É necessário que haja sinceridade mútua, mesmo
quando as discordâncias são sérias.
As
Obras de Henry Kissinger
Henry Kissinger é um estadista singularmente
experimentado. Foi um dos personagens mais destacados da Guerra do Vietnam e
também do processo de paz que a concluiu. Kissinger cumpriu um papel decisivo
nos passos preparatórios para o final da Guerra Fria. Ao descrever a história
do mundo em seus livros, ele mostra a precária alternância entre períodos de
lucidez e equilíbrio, de um lado, e de paranoia, ódio e violência, de outro
lado. As duas atitudes são com frequência combinadas de maneiras complexas e
nem sempre são fáceis de identificar.
Kissinger examina em seus escritos os modos como se pode
transcender o uso do medo e do ódio na política internacional. Ele também
possui um bom número de amigos na Rússia e teve várias reuniões cordiais com
Vladimir Putin, em Moscou. Em um livro publicado em 2014, Kissinger afirma:
“A nossa época anda em busca insistente - por vezes,
quase desesperada - de um conceito de ordem mundial. A par de uma
interdependência sem precedentes, é o caos que espreita: na proliferação de
armas de destruição maciça, na desintegração de nações, no impacto das
depredações ambientais, na persistência das práticas de genocídio, e na
expansão de novas tecnologias que ameaçam levar o conflito para lá de todo
controle ou compreensão humanos.”
Em muitos casos os líderes políticos se tornam marionetes
da propaganda organizada. Kissinger acrescenta:
“Novos métodos de acesso ou transmissão de informação
unem como nunca regiões distantes e emprestam aos acontecimentos uma projeção
global, mas de forma tal que inibe a reflexão e exige dos dirigentes políticos
reações imediatistas e que funcionem como slogans.”
[1]
A Cena
Mundial Agora
O momento atual é adequado para usar o bom senso.
“Cada época” - diz Kissinger - “tem o seu leitmotiv, um conjunto de convicções que
explica o universo, que anima ou consola o indivíduo, munindo-o de uma
explicação para a multiplicidade de acontecimentos.”
“Na época medieval”, acrescenta, “foi a religião; no
Iluminismo, a razão; nos séculos XIX e XX, foi o nacionalismo aliado a uma
visão da história como força motriz. Ciência e tecnologia são os conceitos que
presidem à nossa era. Trouxeram um aumento do bem-estar humano sem precedente
histórico. A sua evolução transcende as barreiras culturais tradicionais. Mas
também produziram armas capazes de destruir o homem.”[2]
Conforme Jean-Jacques Rousseau escreveu no século 18,
mais importante que a quantidade de conhecimento que nós pensamos que temos, é
o modo como nós o usamos. O conhecimento pode ser desperdiçado em metas tolas e
até nocivas. Por outro lado “a integridade é ainda mais valiosa para as pessoas
boas do que o conhecimento para os eruditos.” [3]
Kissinger escreve:
“A tecnologia proporcionou meios de comunicação que
permitem o contato instantâneo entre indivíduos ou instituições em qualquer
parte do mundo, bem como o armazenamento e a obtenção de enormes quantidades de
informação mediante o simples premir de uma tecla. E, no entanto, que
propósitos informam essa tecnologia?”
E ele então levanta outras questões:
* “Que acontecerá à ordem internacional se a tecnologia
se tornar uma parte tão grande do quotidiano, que acabe por afirmar-se como
único universo relevante?”
* “Terá o poder destrutivo das novas armas tecnológicas
chegado a tal ponto, que os receios comuns acabem por unir o gênero humano na
eliminação do flagelo da guerra? Ou a posse dessas armas servirá de permanente
mau agouro?”
* “Será que a rapidez e o alcance da comunicação farão
quebrar as barreiras entre as sociedades e os indivíduos e proporcionarão um
tal grau de transparência, que os sonhos seculares de uma única comunidade se
tornarão realidade? Ou será que a humanidade, no meio de armas de destruição
maciça, de redes de informação, de ausência de privacidade, caminhará para um
mundo sem limites e sem ordem correndo atrás de crises que não consegue
explicar?” [4]
Isso ainda está por ser decidido.
De acordo com Kissinger, os princípios tradicionais e
aprovados pelo tempo que recomendam o equilíbrio internacional entre diferentes
potências “estão a ser contestados em todo o lado, por vezes em nome da própria
ordem mundial.” [5]
A tarefa dos bilhões de pessoas de boa vontade é deixar
de olhar para a vida através das lentes do egoísmo estreito, seja ele
individual ou coletivo. As diferenças e paradoxos culturais são parte da nossa
riqueza e precisam ser preservados.
Uma visão prudentemente fraterna do mundo pode ser
compartilhada por todos. A uniformidade de pensamento não é desejável. Um
contrato social e um sentimento comum terão de surgir gradualmente entre nações
muito diferentes, mas cada nação deve fazer por merecer a confiança das
outras. Antes que a cooperação mundial vença a batalha, serão necessários
pequenos passos preparatórios.
NOTAS:
[1] “A Ordem Mundial”, Henry Kissinger, Publicações
Dom Quixote, Portugal, 2014, 476 pp., ver p. 12. Na transcrição dos vários
trechos citados desta obra, revisei o trecho conforme a edição original em inglês, “World
Order”, Henry Kissinger, Penguin Books, 2014, 420 páginas. Ver, no caso desta
primeira citação, a página 02.
[2] “A Ordem Mundial”, Henry Kissinger, Publicações
Dom Quixote, Portugal, ver p. 379. Em
inglês, “World
Order”, H. Kissinger, Penguin Books, p. 330.
[3] “Discourse on the Sciences and the Arts”, no livro “The
Social Contract and the First and Second Discourses”, Jean-Jacques Rousseau,
Tale University Press, New Haven and London, copyright 2002, 315 pp., ver p.
47.
[4] “A Ordem Mundial”, Henry Kissinger, Publicações
Dom Quixote, pp. 379-380. Em inglês, “World Order”, 2014, pp. 330-331.
[5] “A Ordem Mundial”, Henry Kissinger, Publicações
Dom Quixote, p. 17. Em inglês, “World Order”, 2014, p. 7.
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O artigo
“Como Fabricamos Bodes Expiatórios” está disponível como item
independente nos websites associados desde 18 de novembro de 2022. Ele foi
publicado pela primeira vez em inglês no dia 25 de janeiro de 2022, no blog
teosófico de The Times of Israel. No mesmo
idioma está também publicado nos websites associados. Em espanhol, o texto faz parte da edição de
fevereiro de 2022 de “El Teósofo Acuariano”. Em português, foi publicado pela primeira vez
como parte da edição de fevereiro de 2022 de “O Teosofista”.
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Pequenas
Ações Práticas
*
A teosofia deve ser aplicada à
vida diária. Reveja o texto acima, escolhendo os pontos mais úteis. Registre em
um caderno de anotações aquilo que chama atenção por ajudar você no momento
atual. Comente com alguém sobre isso.
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Imprima os textos que estuda dos websites associados. Com frequência a
leitura em papel permite uma compreensão mais profunda. Ao estudar um texto
impresso, o leitor pode sublinhar e fazer comentários manuscritos nas margens,
ligando diretamente o texto à sua realidade concreta.
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Leia
mais:
* Oito Provérbios da Rússia.
* O Eslavofilismo e a Teosofia.
* A Sucessão de um Feiticeiro Russo.
* Tomando Posse da Nossa Própria Natureza.
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Helena Blavatsky (foto) escreveu estas palavras: “Antes de desejar, faça por merecer”.
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