Tendências Sociais de Hoje
Antecipam o Dia de Amanhã
Carlos Cardoso Aveline
Como estará o mundo dentro de alguns anos?
Será possível traçar um
retrato provisório da vida cotidiana no futuro? Estará a humanidade vivendo um
processo civilizatório sadio e estável na década de 2070?
Estas perguntas não constituem
apenas um desafio à imaginação. Elas nos levam a erguer nosso olhar coletivo
para o futuro a médio e longo prazos, como cidadãos de um processo evolutivo
cujo potencial não conhece limites, mas que deve ser preservado por nós na
transição atual. A vida é uma chama que
passa de geração em geração. É só
pensando a longo prazo que podemos
perceber nossas responsabilidades.
Foi com o objetivo de expressar uma perspectiva mais ampla da vida que John
Seed concluiu o texto do seu poema “Invocação ao Espírito de Gaia” [1] evocando “o poder que sustenta os
planetas em suas órbitas”, para pedir-lhe, como em uma oração, que nos dê a todos um sentido de “tempo
imenso”, de modo que nossas breves vidas frágeis possam refletir os milhões de
anos de evolução cuja potencialidade está posta, agora, em nossas mãos.
Esqueçamos os filmes de
suposta ficção-científica, que
aparentemente falam de tempos futuros mas estão presos a velhos roteiros de
faroeste e bangue-bangue. A humanidade precisa recuperar a capacidade de
olhar adequada e criativamente para o futuro. Sabemos que o futuro de uma sociedade, como o
de um indivíduo, é literalmente criado e materializado pelo
pensamento e pelas ações que surgem do pensamento.
É neste contexto que foram
feitos esforços nas décadas de 1980 e 1990 pela criação de modelos
regenerativos de sociedade, e estudaram-se os cenários possíveis para o século
21. O Instituto Worldwatch e o Instituto
de Recursos Mundiais, dos Estados Unidos, vários organismos da ONU e setores do
movimento ecológico e pacifista deram atenção ao tema durante vários anos. Este foi o assunto, por exemplo, da
Conferência Internacional sobre a Cidade Ecológica, realizada em abril de 1990
em Berkeley, Califórnia, e que reuniu alguns dos nomes mais ilustres do processo
de transição civilizatória, naquele momento. Lá, o
escritor Fritjof Capra, autor de “O Ponto de Mutação”, afirmou:
“O modo como vemos as coisas
determina como reagimos, criamos e construímos. A realidade não está toda em
nossas mentes, claro. Mas nossas mentes criam suas próprias realidades e
alteram a realidade física, que, por sua vez, dá forma à nossas mentes...
Portanto, nossos pensamentos são os fundamentos reais de nossas cidades, e as
nossas cidades são a expressão mais ampla da maneira como pensamos.” O pensamento, portanto, antecipa e determina
a realidade. Mas como é possível ter em
nossa consciência o arquétipo do futuro enquanto atuamos no presente? O que pensar em relação à segunda metade do
século 21?
O mais notável da vida das décadas
de 2060 e 2070 será que poderemos ver
objetivamente, como meta das civilizações, o autoaperfeiçoamento da humanidade
e a cooperação com as outras formas de vida - sejam elas mais, ou menos, avançadas do que nós na escala da evolução.
Isto não será nenhuma verdade
oficial. Verdades oficiais, aliás, poderão ser coisas do passado. Mas saber que
o autoaperfeiçoamento é a meta da existência será algo natural, quase tão óbvio
como saber respirar ou caminhar. Este
próprio fato fará com que haja um grande número de instituições e grupos
voltados para a qualidade e a preservação da vida no planeta. Os cidadãos planetários serão mais influentes
do que hoje, mantendo um processo natural
de observação e preservação das condições de vida das espécies, inclusive
a espécie humana.
Um número apreciável de
cidadãos estará vivendo na prática o
princípio expressado pelo filósofo Demócrito, no mundo antigo:
“Toda a Terra é acessível para o homem sábio, porque a pátria da alma
grande é todo o universo”.[2]
Determinado número de
cidadãos, embora dedicados normalmente a
uma vida contemplativa, se voltarão para
o mundo externo e se transformarão em ativistas extraordinariamente influentes,
sempre que surgir algum desafio social mais sério, ou que o pensamento econômico e político
dominante entrar em choque com o princípio do equilíbrio social e ecológico. No entanto, haverá uma ampla base permanente de cidadãos planetários
cuidando da manutenção de uma cota
razoável de paz entre todos os seres do planeta. Esta é um princípio fundamentalmente
espiritual e ético, mas ele se
expressará externamente em uma
infinidade de questões sociais, culturais, políticas e ecológicas, cuja unidade e interconexão serão visíveis.
Esta ampla base de cidadãos
planetários terá até certo ponto harmonizado em si os caminhos da evolução
interior, exterior, individual e coletiva do ser humano. Terão compreendido um princípio básico da
filosofia esotérica:
“Em última instância,
‘interior’ e ‘exterior’ são apenas
figuras de linguagem, porque o Ser não tem localização, exceto no que se refere
às condições físicas da nossa existência corporal, que são percebidas através
dos órgãos dos nossos sentidos. (...) O
ser interior do homem, em todos os seus
diversos aspectos, não está separado da natureza que nós percebemos como
‘externa’. O ser não está dentro nem
fora, nem em algum lugar qualquer, mas em todos os lugares.” [3]
Assim no céu como na terra,
assim em grande escala como em pequena escala, e existe um eixo simétrico que
estabelece um equilíbrio e uma correspondência entre as coisas do mundo externo
e do mundo interno. Os cidadãos capazes de organizar suas vidas a partir deste princípio estarão
influenciando as universidades, governos, partidos políticos, indústrias,
religiões organizadas, grupos de cidadãos e todos os setores da sociedade. Ajudada
pela crise planetária de transição para um novo ciclo e uma nova era - cuja
proporção e cujo tamanho desconhecemos - esta base ampla de cidadãos já terá criado a
“massa crítica” para a resolução dos
principais problemas da civilização humana na etapa atual, entre eles o nacionalismo exacerbado, o
armamentismo, a fome, a traição dos dirigentes políticos contra seus povos, as
injustiças sociais e o desequilíbrio ambiental.
Todos estes problemas resultam de visões de mundo que impede o ser
humano de ver que o autoaperfeiçoamento pela solidariedade é o único grande propósito
da vida.
Em cada setor de atividade
humana o cenário será bem diferente daquele do início do século 21, porque o conhecimento humano estará sendo
usado de outra forma e para outros fins.
É possível que não seja
necessária uma crise geológica e ecológica tão profunda e grave a ponto de
provocar uma drástica redução da população humana. Mesmo no pior cenário, a humanidade em si não
estará em risco, muito menos o
planeta; mas haverá
uma perda de grande parte dos
conhecimentos culturais e recursos técnicos atualmente disponíveis. Uma tal
crise destruiria as cidades em que hoje vive a maior parte da população, e provocaria a
ruptura da grande massa de saber hoje acumulada. Haveria então - como já
ocorreu em muitos casos quando civilizações anteriores chegaram a seu final -
uma radical “perda de memória”
por parte da nossa humanidade. Lembremos do que aconteceu por exemplo com a
civilização Maia, que desapareceu sem deixar pistas. Ou mesmo do que ocorreu
com as civilizações andinas. A perda de memória cultural é um fenômeno recorrente na história humana. Civilizações
morrem e “reencarnam”; e, ao “reencarnar”, sua memória é como uma
página em branco.
No caso de uma “ruptura do
cenário geoecológico e geoambiental”, o ser humano teria de pagar um preço
radical para poder libertar-se das premissas inconscientes da sua própria ignorância espiritual e da sua falta de ética. Ele seria então obrigado
a retomar sua evolução sobre bases sociais e culturais muito diferentes. E
novas.
Assim como o passado distante,
o futuro é uma página em branco, ainda que sempre haja fortes tendências cármicas, ou
históricas, em relação ao que pode e ao
que não pode ser “escrito” nessa página.
Talvez a
ruptura geológica e cultural possa ser evitada. A vida é sempre um
mistério e o despertar do coração
coletivo pode ocorrer até o último minuto.
Se ocorrer o melhor, a mente
coletiva da humanidade passará por um momento de libertação e de expansão de
proporções imprevisíveis, em um tempo cronológico próximo de zero.
Então, grande parte do atual cenário
social será preservada. Essa possibilidade depende de nós, cidadãos comuns. Com
algumas exceções, os aparentes líderes sociais são cegos pretendendo conduzir cegos,
e nada sabem de como se define o rumo
evolutivo da humanidade.
Se a transição para uma civilização eticamente
correta e ecologicamente sustentável ocorrer sem grandes rupturas, não é
difícil imaginar como serão as coisas.
Em relação ao transporte, por
exemplo, haverá muito menos necessidade de percorrer longas distâncias. A
própria ideia de estar fisicamente presente em algum lugar terá sido amplamente
relativizada, até 2070, pelas técnicas
de comunicação em uso, algo que já se pode observar na primeira parte do século
21. Além disso, as pessoas morarão perto de seus
trabalhos. E terão o hábito de caminhar - exercício físico que combina bem com
a reflexão e a meditação.
Além da caminhada, haverá a
bicicleta, o mais econômico de todos os veículos já inventados pelo homem.
Poderá haver bicicletas públicas, à disposição dos interessados, gratuitamente,
nas praças e outros locais. A ideia, experimentada na Itália nos anos 80,
poderá ser recuperada.
Com relação à medicina, o
prioritário será manter a saúde e evitar todas as causas das doenças - vistas como um fenômeno
psicossomático amplo. Quando a doença ocorrer, será a vez da medicina naturista.
Os avanços da alta tecnologia serão enormes e estarão incorporados à prática cotidiana da
assistência à saúde. O pensamento correto e a sabedoria emocional serão vistos como grandes fontes de saúde e
bem-estar pessoal. Será amplamente sabido o fato de que objetivos altruístas
geram pensamentos corretos, que garantem saúde e longa vida. O bem-estar de cada um será,
gradualmente, visto como inseparável do bem-estar dos outros - e vice-versa.
Quanto ao trabalho, já não
será desagradável como hoje. O trabalho
assalariado prosseguirá, porém a jornada diária será menor que a atual,
sobrando várias horas por dia para trabalhos voluntários e ações coletivas ou
individuais que combinem lazer com autoaperfeiçoamento consciente. A fronteira
entre “trabalho” e “lazer” desaparecerá.
Em grande parte, os meios de
produção estarão sob o controle direto dos seus trabalhadores. O panorama
econômico seguirá o princípio do mercado,
mas o mercado levará em conta as necessidades
reais do cidadão, e não serão criadas falsas necessidades através de mera propaganda. Por exigência dos novos tempos, o mercado atuará dentro dos limites da ética, ecológica
e social. As exigências da ética ecológica serão colocadas acima dos
interesses de curto prazo. Isso permitirá
um claro sentimento de dever em relação à preservação dos reinos animal,
vegetal e mineral, como uma responsabilidade que cada geração tem em relação às
futuras gerações.
Um elemento importante da
economia do século 21 será o controle local dos recursos naturais de cada
região. Predominarão pequenas unidades produtivas, de caráter comunitário, onde
as melhores tecnologias serão usadas. Terá sido compreendido que as grandes
unidades produtivas estão ligadas à concentração injusta do poder econômico e
político, além de causarem um impacto desnecessário, e enorme, sobre o ambiente
natural.
As cidades abrirão espaços
para a natureza, enquanto o campo trará para si a vida cultural e política das
cidades. A contradição de hoje entre campo e cidade deixará de existir.
As instituições militares
pertencerão, basicamente, ao passado. Provavelmente, as declarações de
neutralidade perpétua e o desarmamento terão proliferado. As forças
militarizadas serão do tamanho suficiente para manter a ordem e evitar uma
volta desastrada ao passado da violência, que ainda será visto como algo
recente. Mas sua atuação será cada vez menos importante. A ONU, ou sucedâneo,
terá força real em termos militares. O serviço militar terá sido abolido, dando
lugar ao serviço civil - um período em que o jovem serve a comunidade. O
serviço civil já foi contemplado até mesmo pela Constituição Brasileira de
1988, embora ainda seja um direito
eventual do jovem e não uma norma estabelecida.
Nas universidades, reinará o
princípio do livre pensamento. A formação pessoal será orientada pela busca do
conhecimento e não por alguma verdade estabelecida e oficial. A busca do
conhecimento será ditada pela curiosidade e pelo impulso que surge do interior
do estudante. Será reconhecida, em todos os casos, a inter-relação imediata
entre os diferentes campos de conhecimento. Em todos os níveis escolares,
gradualmente, os alunos serão colocados na função de gerentes executivos de seu
próprio aprendizado, enquanto os professores assumirão o papel de assessores e
facilitadores da busca de conhecimentos, ensinando, sobretudo, a pensar e
criar.
O sistema de governo
político-administrativo terá como característica o acesso direto do cidadão aos
mecanismos do poder e de tomada de decisão. Plebiscitos e consultas serão
frequentes, e contarão com as facilidades da era eletrônica. As comunicações
serão tantas que alterarão a nossa percepção de tempo e espaço. O telefone, o
telefax, o televídeo ou videofone e as
redes de computadores estarão ao alcance de todos, fazendo do contato com
qualquer cidadão do mundo algo quase instantâneo e acessível para todo cidadão.
Parte desse futuro já é perceptível
e realizável atualmente. Outra parte
desse futuro só estará plenamente realizada, talvez, dentro de muitas décadas.
No entanto, é para lá que caminham, de um
modo geral, as visões e os esforços de milhares de seres humanos
preocupados com a qualidade de vida deste pequeno planeta aquático e azul, neste tempo de transição
entre o século 20 e o século 22.
NOTAS:
[1] Veja o final do capítulo 1, no livro “Apontando Para o Futuro”, Carlos Cardoso
Aveline, publicado por FEEU e Ed. PrajnaParamita,
Porto Alegre, 1996, 106 pp.
[2] “Los Filósofos Presocráticos, Leucipo y Demócrito”, Introdução, Tradução e Notas de Maria Isabel Santa Cruz de Prunes y Nestor Luis Cordero, Ed. Planeta DeAgostini/Gredos,
Madrid, Espanha, 308 pp., 1998, ver p. 247.
[3] Texto de autor desconhecido, na revista “Theosophy”, de Los Angeles,
edição de Setembro de 1974, pp. 341-342. A
revista é editada por associados da Loja Unida de Teosofistas.
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Sobre
o mistério do despertar individual para a sabedoria do universo, leia a edição
luso-brasileira de “Luz no Caminho”,
de M. C.
Com
tradução, prólogo e notas de Carlos Cardoso Aveline, a obra tem sete capítulos,
85 páginas, e foi publicada em 2014 por “The
Aquarian Theosophist”.
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