Notas Sobre a Alegria e o
Sofrimento nos Laços Familiares
Carlos Cardoso Aveline e Joana Maria Ferreira de Pinho
A imagem reproduz um quadro de Joana Maria Pinho pintado em 2011: o
amor, que é inseparável do respeito, faz parte do modo correto de olhar
para a vida.
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Embora o artigo a seguir se refira
à família portuguesa, o seu conteúdo
se aplica às famílias de qualquer nação.
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Os portugueses buscam paz e felicidade, e elas devem ser encontradas pelo indivíduo sobretudo dentro de si mesmo, e depois no
mundo externo.
Nenhum português é uma ilha: para encontrar a paz dentro de si mesmo, é necessário construir
a paz nas suas relações mais íntimas e mais pessoais.
E para construir a paz, é preciso compreender a guerra.
Há uma guerra familiar em Portugal, e ela é frequentemente surda.
Funciona disfarçada de amor. Também anda misturada como veneno inconsciente e
involuntário ao mais puro e mais verdadeiro amor.
A
violência doméstica não é feita só de pancadas físicas. Existem pancadas emocionais. As agressões verbais provocam feridas
difíceis de sarar. Há uma cultura da violência verbal na tradição familiar
“tuga”. Há ditaduras familiares e elas
provocam exilados. As famílias autoritárias podem ser patriarcais ou
matriarcais. Possuem os seus Antónios
Salazares, que às vezes respondem pelo
nome de “Mãe”.
Tais
pessoas são amorosas, praticam o autossacrifício, mas abusam, e desrespeitam, porque
foram vítimas de agressões em sua infância e não conhecem outra linguagem.
Matriarcas e patriarcas têm o poder de decretar que tal ou qual pessoa “não
pertence mais à família”, ou decidir que
“nunca pertenceu”. Fabricam a fantasia segundo a qual um filho, ou filha,
chamado de “rebelde”, de “maluco” ou “inútil”, é destituído de qualidades
positivas e não merece consideração.
Tais
“figuras de autoridade” fazem-se de fortes.
E fazem isso para fugirem da percepção das suas próprias fragilidades
interiores. Usam de astúcia, porque
temem usar a inteligência. Mas podem, e
merecem, chegar a um ponto em que se libertarão da fantasia do autoritarismo
para viver o amor com equilíbrio, autorrespeito e discernimento.
A Sabedoria Cura a
Violência
Formas
erradas de busca da felicidade estão na base do sofrimento que vemos ao nosso
redor, e também do que vemos dentro
de nós. A cura existe: ela está na
sabedoria impessoal e imparcial que cada
um pode encontrar em seu próprio coração.
O
amor e a verdade, inseparáveis, governam o universo. Mas nem todos sabem
disso. As guerras emocionais são modos
agressivos de exercer a ignorância, e de administrar uma cegueira que às vezes
é voluntária. Melhor seria abrir os
olhos, porque toda agressão a outrem é uma agressão a si mesmo. Em uma certa dimensão da vida, aquele a quem
amamos ou odiamos é um espelho nosso, conforme explicam a psicanálise e a
teosofia. Um dos nomes do “efeito espelho” é “projeção”.
Aquele
que agride familiares - física, emocional ou mentalmente - é, pois, alguém que
está desinformado sobre o modo como a vida funciona. Está a atacar o espelho. Atrai mau carma para
si. Ainda não saiu da infância psicológica.
A agressão e a raiva são modos de disfarçar a
frustração consigo mesmo, e com relações íntimas baseadas no egoísmo. A violência física no âmbito doméstico provoca
milhares de eventos registados a cada ano em Portugal.
Em
grande parte, os dramas familiares são verdadeiramente teatrais. Incluem
gritos, tapas na mesa, acusações absurdas. Os dramalhões vividos por parte da
família “tuga” seguem velhos roteiros inspirados na idade média. As farmácias
saem ganhando com a infelicidade. As agressões
verbais e emocionais elevam a níveis absurdos o consumo de calmantes e
antidepressivos, assim como as crises de nervos, as manias de vítima, as
ameaças de suicídio, a tristeza profunda, a culpa, e as consultas aos
psiquiatras que estão a serviço das indústrias químicas. Sem falar nas
numerosas doenças físicas que decorrem do sofrimento emocional.
E
esta dor é desnecessária. Está condenada a desaparecer. Não existe mais lugar
para ela no século 21. Não há necessidade de permanecer na idade média.
O
sentimento de afeto é a energia da vida. Ele cura todos os males, quando vivido
com um nível razoável de sabedoria. O amor está no modo como olhamos para a
vida: mas também deve haver, no mesmo olhar, um sentido de justiça, um
sentimento de responsabilidade, um respeito incondicional. Estas são coisas que não se pode comprar nas
farmácias, obter nas igrejas, ou aprender nas escolas: mas se aprenderá.
O
amor é inseparável da verdade e da sinceridade. Ele deve ser incondicional. Ele
é válido em si mesmo. Não pode estar sujeito a trocas comerciais e chantagens,
como quando alguém diz:
“Eu
amo-te e respeito-te se tu fizeres o que eu quero.”
É
melhor amar do que ser amado, compreender do que ser compreendido, cuidar de
alguém do que ser cuidado. Mas a bem-aventurança surge da reciprocidade. Em
última instância, é a capacidade de querer o bem dos outros, e de olhar para a
vida do ponto de vista do amor-verdade, que nos aproxima da felicidade
plena.
Vossos Filhos Não
São Vossos Filhos
O
bem-estar, o amor, o carinho e a violência (subtil ou brutal) se mesclam para
formar um emaranhado e um paradoxo na vida familiar portuguesa.
A
agressão é mais frequente no plano verbal e emocional. Ela é, em grande parte,
subconsciente. Agride-se sem saber ou sentir que se agride. Mas a compreensão
da infelicidade nos liberta dela.
Um
aspecto essencial do sofrimento é a atitude destrutiva do indivíduo em relação
a si mesmo. O pensamento negativo é uma
forma de autoagressão. Outros exemplos são o apego ao sofrimento, e a fuga
dele.
Milhares
tentam escapar de si mesmos através da violência química e alucinógena.
Inúmeros jovens “tugas” agridem seus organismos físicos e emocionais através do
consumo de drogas e bebidas alcoólicas. O problema atinge várias gerações. Alguns
drogados, ainda jovens, já são pais e colocam em risco a formação emocional das
suas crianças.
Há
pais de drogados - em alguns casos já avós - que preferem “não saber de
nada”. Decidem ignorar os fatos porque estão
emocionalmente distantes dos seus filhos.
Amam-se todos, mas é como se vivessem em planetas diferentes. O problema tem solução: a alternativa está em
perceber desde o início e como um primeiro passo que amar não basta. É preciso
amar e profetizar incondicionalmente o bem. Deve-se amar e pensar o que é bom,
e dizer, repetidamente, o que é bom.
O
carma plantado no passado deve ser colhido, mas sempre é possível plantar bom
carma para o futuro. O pensamento é uma arma. Cada palavra é um mantra e uma
profecia que pressiona pelo seu próprio cumprimento. Assim, cada frase deve ter
uma força predominantemente construtiva, tanto no diálogo interno consigo
mesmo, como no diálogo com os outros. Não há um minuto que passe em vão: toda
emoção e toda ideia criam carma. Além de amados, os filhos devem ser apoiados
incondicionalmente em seu crescimento. Sua autonomia interior precisa ser respeitada.
Isso implica renúncia. Khalil Gibran escreveu:
“E
não imagineis que possais dirigir o curso do amor, pois o amor, se vos achar
dignos, determinará ele próprio o vosso curso.” [1]
Gibran
disse:
“Vossos
filhos não são vossos filhos. São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si
mesma. Vêm através de vós, mas não de vós. E, embora vivam convosco, não vos
pertencem. Podeis outorgar-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos, porque
eles têm os seus próprios pensamentos. Podeis abrigar os seus corpos, mas não
as suas almas; pois suas almas moram na mansão do amanhã, que vós não podeis
visitar nem mesmo em sonho. Podeis esforçar-vos por ser como eles, mas não
procurei fazê-los como vós, porque a vida não anda para trás e não se demora
com os dias passados.” [2]
Ninguém
é dono dos seus filhos, portanto. E
ninguém tem o direito de abusar dos mais velhos. Da sabedoria nas relações
pessoais, surge uma sabedoria social. O Portugal do futuro surge hoje, de
dentro para fora. Já é possível acordar
do pesadelo da ignorância.
Há
séculos, a nação portuguesa abre caminhos. O futuro de Portugal depende de uma
retomada do seu pioneirismo. Tudo se comunica, e o exemplo de cada um chega
misteriosamente a todos os outros: a vida da nação irá encontrar o seu ponto ótimo quando a porção mais
criativa e pioneira dos seus cidadãos reconquistar com força suficiente a visão
planetária da vida, o que deve ocorrer com base na experiência direta do
autoconhecimento.
O Equilíbrio Entre
Alegria e Tristeza
A
família portuguesa é um pouco brasileira, e vice-versa. Os dois países estão
mais unidos do que parece.
No
povo luso-brasileiro, como em todas as nações, alegria e tristeza estão unidas
por uma relação de simetria. Para eliminar as causas da dor, os membros de cada
família podem transcender ao mesmo tempo o apego cego e aquela rejeição que
insiste em nada enxergar. Alegria e
tristeza devem ser observados com serenidade, e Khalil Gibran escreveu:
“Vossa
alegria é vossa tristeza mascarada. E o mesmo poço que dá nascimento a vosso
riso foi muitas vezes preenchido com vossas lágrimas. E como poderia não ser
assim? Quanto mais profundamente a tristeza cavar suas garras em vosso ser,
tanto mais alegria podereis conter.”
Este
é um paradoxo, e a sua aceitação permite a paz. Gibran acrescentou:
“Quando
estiverdes alegre, olhai no fundo de vosso coração, e achareis que o que vos
deu tristeza é aquilo mesmo que vos está
dando alegria. E quando estiverdes
triste, olhai novamente no vosso coração e vereis que, na verdade,
estais chorando por aquilo mesmo que
constituiu vosso deleite.”
O
escritor alertou:
“Alguns
dentre vós dizeis: ‘A alegria é maior que a tristeza’, e outros dizem: ‘Não, a
tristeza é maior’. Eu, porém, vos digo que elas são inseparáveis. Vêm sempre juntas; e quando uma está sentada à vossa mesa,
lembrai-vos de que a outra dorme em vossa cama. Em verdade, estais suspensos
como os pratos de uma balança entre vossa tristeza e vossa alegria. É somente quando estais vazios que
estais em equilíbrio.” [3]
O
Portugal do futuro é fraterno, é sábio, e é rigoroso. Ele está a ser construído
de modo quase invisível, mas eficaz. Cabe a cada um acelerar a substituição do
ódio pela solidariedade, da hipocrisia pela sinceridade, da ambição material
pela simplicidade voluntária. Deste modo
a tristeza e o sofrimento se esgotam, se transmutam e renascem na forma de
felicidade.
O Quinto Império, no
Século 21
O
mundo exterior reflete o território subtil da alma. O velho sonho do Quinto Império
português, formulado por António Vieira, é correto. O mais belo sonho de
grandeza dos portugueses surgirá inevitavelmente, mas devemos atualizar a forma
como colocamos em palavras o sentimento do Quinto Império.
Dominar
povos ou pessoas é uma brincadeira de crianças. É uma meta banal,
insustentável, e sem valor. É coisa de
quem não tem mais o que fazer. Só o
Quinto Império é realmente grandioso, verdadeiro, durável e sagrado. E ele é o
império sobre si mesmo. Este é o único
império que tem importância, porque é durável. Ele surge no século 21, mas é
tão antigo quanto a sabedoria.
Três
mil anos atrás, Gautama Buddha explicou:
“Melhor
que um homem que vence em batalhas mil vezes mil homens, é aquele que vence a
si mesmo. Ele é, na realidade, o maior dos guerreiros.” [4]
Fonte
de toda verdadeira nobreza, o real Império sobre si mesmo tem importância
sociológica decisiva porque permite agir criativamente desde o centro da nação
inteira.
E
onde está o centro do mundo lusitano?
A
nação portuguesa é semelhante ao famoso círculo de Pascal. Seu limite não está
em parte alguma, porque há portugueses por todo lado neste planeta. O seu centro está em todas as partes - onde
quer que haja uma alma consciente. O
centro de Portugal não é, pois, geográfico. Não está na região de Coimbra ou de
Lisboa. Cada família portuguesa é o centro do país. E o centro da família é a
relação de casal.
Há
um segredo que leva ao bem-estar na nação e na vida familiar, e ele está num
conceito prático que decorre do império sobre si mesmo: o conceito de Okeidade,
a capacidade de ver que a vida está OK.
A
felicidade possível aos seres humanos não surge por acaso. Ela se instala quando alguém se recusa a
pensar mal de si mesmo ou dos outros, combate ações erradas - mas não combate pessoas -, age corretamente, e reconhece o potencial positivo de todos os seres. Ao vivermos por mérito próprio em uma
atmosfera emocional correta, mesmo contra o vento e contra a maré, fazemos com
que o mundo que nos rodeia fique um pouco melhor.
A
consciência de que a cada minuto plantamos com nossos pensamentos e ações o que
colheremos no futuro é uma chave para a felicidade da família portuguesa. É
esta chave que abre o portal do Quinto Império. Ela permite o reencontro com a
grandeza interior e a nobreza de alma, no âmago de todas as nações, isto é: na
família.
NOTAS:
[1] “O
Profeta”, Gibran Khalil Gibran, tradução de Mansour Challita, ACIGI,
Rio de Janeiro, 89 pp., ver p. 11.
[2] “O
Profeta”, Gibran Khalil Gibran, obra citada,
pp. 15-16.
[3] “O Profeta”,
Gibran Khalil Gibran, obra citada, ver pp. 27-28.
[4] “O
Dhammapada”, capítulo 8. O Dhammapada
completo está disponível em nossos websites associados.
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Uma versão
inicial do texto acima foi publicada na página “Portugal Teosófico” do Facebook,
em julho de 2013. O artigo também foi divulgado na edição de outubro de 2013 de
“O Teosofista”.
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Para
conhecer a teosofia original desde o ângulo da vivência direta, leia o livro “Três Caminhos Para a Paz Interior”, de
Carlos Cardoso Aveline.
Com 19
capítulos e 191 páginas, a obra foi publicada em 2002 pela Editora Teosófica de
Brasília.
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