Sabedoria e Criatividade no
Compromisso de Longo Prazo
Carlos Cardoso Aveline
O amor é uma escola para a evolução da
alma
Carlos Cardoso Aveline
O verdadeiro amor é um sentimento revolucionário. Ele questiona
as rotinas estabelecidas, e pode ser destruído por elas. Ele cria dinâmicas
inteiramente novas. Ele é uma ação que expressa a sabedoria da alma.
De outro lado, a
ausência de criatividade é obedientemente alimentada tanto pelo culto comercial
ao sexo-pelo-sexo quanto pelo seu extremo oposto, o velho moralismo repressivo.
Esses dois mecanismos sociais são na aparência muito diferentes, mas levam o
ser humano a uma atitude igualmente irresponsável diante da vida. Nos dois
casos há uma fuga do desafio do amor profundo, que causa medo e maravilha.
No século 19, reinava
a atitude vitoriana em setores dominantes da nossa cultura. Negava-se o sexo,
considerado inevitavelmente animalesco. Mas, por debaixo do dogma, havia
hipocrisia. No século 21, a moral dominante prefere o extremo oposto: a sedução
substituiu em grande parte o amor. É hora de retomar o equilíbrio.
Saint-Éxupéry
escreveu:
“Você é eternamente
responsável por aquilo que você cativa.”
O comportamento
sexual descartável surgido na segunda metade do século 20 parece inverter a
frase de Saint-Éxupéry: “Seduza irresponsavelmente”. O sexo sem amor, o poder pessoal
e o dinheiro são três divindades materiais apresentadas à adoração irrestrita do
público. Elas formam a santíssima
trindade de uma civilização que perdeu o sentido da vida.
O culto do sexo
transformou-se em um dogma obrigatório da moral consumista da sociedade
industrial. Os desinformados consomem sexo, batatas fritas e refrigerante, e
pagam no cartão de crédito. Nos meios de comunicação social, o sexo e a
violência são deidades menores a
serviço do todo-poderoso dólar. Possuem uma onipresença apenas relativa.
Assim como antes o
amor era reprimido pela moral puritana, há algum tempo ele passou a ser
suprimido pela exaltação do sexo exibicionista. Esta situação paradoxal foi prevista
em 1881 por um grande raja iogue que vivia na época (e talvez viva ainda) em um
vale oculto e esquecido dos Himalaias. Depois de descrever em carta a um
teosofista inglês a divisão dos setores intelectualizados da humanidade em dois
grandes grupos, o mestre disse que era hora de a sabedoria divina e o bom senso
entrarem em cena:
“Entre a superstição
degradante e o ainda mais degradante materialismo, a pomba branca da verdade
dificilmente encontra um lugar onde possa descansar seus pés desprezados e
exaustos.” [1]
Superados em parte o
fanatismo e a superstição do século 19, desde o século 20 a nossa cultura tem
sido marcada por um materialismo degradante e não menos autoritário. “A tão
alardeada liberdade sexual tornou-se uma nova forma de puritanismo”, escreveu
em 1969 Rollo May, psicanalista e autor de vários livros. E acrescentou:
“O puritano
contemporâneo afirma ser imoral não manifestar a líbido. (…) Os vitorianos
procuravam o amor sem envolvimento com o sexo. O homem contemporâneo procura
sexo sem amor.” [2]
O pensador Viktor
Frankl construiu toda uma teoria psicológica a partir da ideia de que o ser
humano busca a transcendência e precisa dela para ser feliz. “O amor é parte da
autotranscendência”, afirma Frankl. “O homem está preocupado basicamente em ir
além de si mesmo, seja na direção de um significado que ele quer preencher,
seja na direção de outro ser humano que ele deseja encontrar no plano amoroso.
A autotranscendência se manifesta através do trabalho por uma causa ou pelo
amor a uma outra pessoa.” Neste contexto, o sexo é uma das expressões físicas
do amor, isto é, da necessidade de “ir além de si mesmo.” [3]
Para Frankl, como
para a maior parte dos psicólogos, a promiscuidade sexual - apresentada hoje
por alguns como algo “progressista” - é na verdade uma regressão psicológica.
“O mito do
sexo-pelo-prazer-do-sexo é vendido e difundido pelas pessoas que sabem que este
é um negócio lucrativo”, escreve Viktor Frankl. Mas como pode-se explicar
tamanho êxito dos comerciantes na venda de ilusões sexuais? Nenhum negócio pode
ser bem-sucedido se não atender alguma necessidade substancial. A resposta,
aponta Frankl, está no vazio existencial. Quem não percebe o sentido profundo
da sua vida pode fugir da angústia que isto provoca através do sexo, da bebida
e de outras maneiras. Mas o vazio psicológico só pode ser preenchido pelo
renascimento espiritual que a nova era traz, iluminando o coração humano e
abrindo espaço nele para a “pomba branca da verdade”.
Do ponto de vista
profundo, não há sexo separado dos vários contextos emocionais e existenciais
em que vive cada pessoa. Rollo May distingue sexo de eros. Sexo, para
ele, é explorado pela tecnologia moderna, e corresponde no plano pessoal a uma
descarga das tensões. Eros é amor, e é multidimensional. É construtivo, busca
uma união durável. Eros inclui o sexo, mas também a amizade, a admiração, o
sentido de unidade com todas as coisas e do mundo divino.
Na civilização da
nova era, o amor sexual não será arrastado para o esgoto pela ansiedade
consumista gerada por propaganda. Não será usado como mercadoria pelo processo
de acumulação de capital. Ao contrário, o amor será parte do projeto
existencial e do roteiro de vida de cada pessoa. A liberdade será compensada
pela responsabilidade de cada um pelos seus atos.
Namoro e casamento
são flexíveis na nova era. Podem morrer, como todo processo vivo, e devem
renascer a cada dia, porque são uma parceria entre pessoas livres. Mas um fato
é claro para o observador atento: a relação duradoura de duas pessoas torna o
sexo mais produtivo, profundo e satisfatório. O sexo que se dá em uma relação
monogâmica e durável expressa o amor entre duas almas, coisa que o sexo de
curto prazo não permite. Quando conhece bem a outra pessoa, você relaxa mais e
é criativo na relação com ela.
O que mata o amor nos
namoros e casamentos são frequentemente as ilusões e as falsas expectativas. A
substituição frequente de um parceiro por outro significa começar de novo o
processo de ilusão e desilusão. Este ciclo renovado funciona como uma fuga da
solidão e gera dor e frustração. É impossível encontrar o amor se não podemos
estar sozinhos. Viver sozinho pode ser, em muitos casos, uma bênção. Quem puder
sentir-se bem como celibatário deve ficar à vontade para seguir seu caminho.
Mas quem tem necessidade da vida afetiva que o namoro e o casamento
possibilitam não deve pensar que isto impedirá seu aprendizado espiritual. Há, no
entanto, uma série de ilusões que devem ser evitadas. Entre elas, as seguintes:
1) Estarei vivendo
uma felicidade eterna.
Se a convivência de
cada um consigo mesmo nem sempre é fácil, por que deveria ser necessariamente fácil
a convivência com outra pessoa, por mais que a amemos? Há quem diga que o
objetivo de um casal não é a felicidade cômoda, feita de satisfações e em geral
pouco durável, mas sim o autoconhecimento. Desse ponto de vista, se você vive
uma crise em seu namoro ou casamento, deverá perguntar-se não pela sua comodidade
ou felicidade pessoal de curto prazo, mas sobretudo o seguinte:
“Esta relação
alimenta meu crescimento interior? As dificuldades que estou enfrentando me
trazem lições que, aprendidas, me levarão a conquistar novos patamares de
felicidade?”
Casar para ter uma
vida fácil é uma perigosa ilusão que deve ser descartada desde o início.
2) A outra pessoa
satisfará todas as minhas necessidades.
Este é outro exemplo radical
de ingenuidade. Na verdade, temos de resolver nossos próprios problemas. Um dos
trunfos insubstituíveis do casal durável está no apoio mútuo incondicional.
Ouvir e estimular positivamente um ao outro é de importância inestimável. Para
isso, cada um deve ser capaz de querer sinceramente o crescimento do outro e de
sentir-se corresponsável por isto. Isso é o oposto de encarar o parceiro como
objeto de sua satisfação.
3) Ter filhos trará
harmonia.
Este não é
necessariamente o caso. Ao contrário. Sempre que possível, a relação deve ter
uma base comprovadamente sólida e harmoniosa antes da decisão de ter a criança.
É importante para toda criança conviver com uma figura paterna e uma figura
materna. As crianças devem receber atenção. Não se deve esperar que elas venham
para resolver dificuldades do casal.
4) Eu vou ser amado
e respeitado no casal.
Em primeiro lugar,
isto dependerá de quanto amor e respeito você der à outra pessoa. Mas há outros
fatores. Um casal é um laboratório alquímico onde ocorrem inúmeras reações
inesperadas entre as substâncias emocionais e mentais levadas para dentro dele.
Muitos sentimentos contraditórios - que habitam o inconsciente de um e de outro
- acabam sendo dramatizados na relação. Rancor, frustração, competição, alegria
e triunfo, vitória e derrota - tudo isto faz parte de uma relação de amor. Para
uma avaliação sensata, algumas das perguntas mais importantes são:
“Há prazer? Há um amadurecimento
psicológico e um crescimento espiritual? A dinâmica da vida comum é capaz de
resolver os problemas criados por ela mesma?”
Todos sabem que a
atração é fundamental nas relações de amor. Nem todo o mundo presta atenção ao
fato de que a atração envolve vários níveis de consciência. Há uma atração
física - e ela é sem dúvida importante, mas não é suficiente. Há uma atração
emocional, uma atração mental ou intelectual, e também uma atração menos fácil
de explicar, que é espiritual - uma questão de afinidade de almas. À medida que
passa o tempo, a atração física passa a ser cada vez mais reforçada pelas
outras atrações. Cada tipo de atração - resultado de uma afinidade em um plano
da existência - deve ser respeitado e preservado.
Há também diversos
tipos de abraço. Alguns abraços ocorrem por motivos predominantemente físicos. Outros
são predominantemente emocionais. E existem abraços espirituais. Até a
afinidade intelectual pode provocar um abraço. É interessante saber se as
portas da relação estão abertas para abraços em níveis superiores de
consciência, porque é isto que determina se o casal tem uma relação saudável. A
comunicação espiritual entre duas almas desfaz e supera os bloqueios em planos
inferiores.
Para atrair de modo
durável a pessoa que amamos, devemos ser independentes. Só um ser completo pode
ser amado em profundidade. A atração desaparece (e é substituída por uma
frustração confusa) quando as pessoas se deixam absorver completamente uma pela
outra e já não sabem quais são os seus projetos individuais de vida. Por mais
que a fusão com o outro seja uma delícia, o casal não deve servir como uma fuga
de si mesmo. Cada um deve saber quem é. Cumprir um papel artificial para
satisfazer o outro é o caminho da derrota. O indivíduo deve abrir espaço para
que a outra pessoa seja verdadeiramente ela mesma. A fusão - paradoxalmente -
não deve apagar as individualidades.
O casal pode ser uno
e múltiplo ao mesmo tempo. Isto inclui vários papéis vividos pelos dois. A
relação macho-fêmea é apenas um módulo-âncora para a convivência criativa das
duas almas. O ser humano é infinito e a vida deve expressar-se como em um drama
com personagens variados. Há o eixo pai-filha, com as variantes de
pai-autoridade, pai-protetor e pai-carinhoso. Até onde sei, toda mulher precisa
disto. Por que negar esse componente da vida a dois, se ele dá prazer a ambos?
O personagem filha poderá ter várias
alternativas: filha rebelde, filha que coopera, filha pequena indefesa -
conforme a situação. Há os eixos mãe-filho, amigo-amiga, amante-amante,
líder-liderado, polemista-polemista, cada um com vários subtipos de parte a
parte. O importante é que em todos os eixos dramáticos de um casal haja
respeito, sinceridade, criatividade e, se possível, prazer.
Vejamos, por exemplo,
a relação entre poder e bom senso. Se o assunto for crochê, quem dever liderar?
O homem deve dar a palavra final? Conforme a situação, a liderança deve ser
definida em função do que seja mais adequado. O amor e a grandeza de alma devem
ser suficientes para que a questão sobre quem
lidera seja considerada secundária, e para que ambos saibam reconhecer
espontaneamente quem é melhor nesta ou naquela situação concreta. O poder que
cada um tem sobre o outro deve surgir da confiança depositada voluntariamente
em si, e não da imposição ou da artimanha.
Em todos os níveis da
relação de amor, a criatividade é fonte de prazer. Cada um pode e deve ter
todas as idades, psicologicamente. Não só sou filho da minha mulher, mas sou um
filho de várias idades, conforme a situação; e sou pai, e irmão mais velho. E ela
também tem muitas idades, porque todo o passado e futuro estão potencialmente
presentes em cada momento.
Inconscientemente,
cada um tende a repetir dramas psicológicos e padrões de comportamento absorvidos
durante a infância e que vêm, às vezes, de vidas anteriores. Esse material deve
ser trazido à tona para que os dois não se transformem em fantoches
fantasmagóricos das suas próprias infâncias, brigando para enquadrar um ao
outro nos dramas do seu passado.
Para escaparmos da
mera repetição distorcida dos padrões de pais, ou avós, ou de vidas anteriores,
devemos perceber a riqueza dos papéis disponíveis. Um casal é um processo de
re-criação do drama da vida. Cada um cria a si mesmo em suas diversas
variedades - amante, pai, amigo, filho -, e cada personagem destes pode ter
seus subtipos. Além disso, cada um também é cocriador dos personagens vividos
pela outra pessoa, e deve sentir-se corresponsável por eles. Assim as almas
podem expressar-se criativamente em diferentes ângulos da vida, e estes ângulos
terão abertura para mudar dinamicamente, melhorando sempre.
Um bom casal é aquele
em que cada um se preocupa em fazer o outro feliz, e faz isso em todas as dimensões
da vida, porque sabe que nenhuma delas existe separadamente. Isso não basta. É indispensável
projetar sobre o outro, constantemente, o que eu poderia chamar de okeidade fundamental. Não se trata de
concordar sempre com a outra pessoa. Mas, como afirmam Khalil Khavari e Sue
Khavari, [4] “embora sejamos
adultos, a criança dentro de nós está sempre esperando apoio e aprovação. Nossa
idade não faz muita diferença para esta necessidade, que é baseada no desejo de
agradar, de se sentir amado e de ser eficaz.”
É preciso dar ao
outro estímulos verbais predominantemente positivos. Dizer, de várias maneiras:
“Você está OK”.
O sentimento de okeidade mútua é fundamental para a
duração e a qualidade de uma relação de amor. Isto não significa que é preciso
alimentar os erros de alguém. O espírito crítico, exercido sem interrupção do
afeto, é indispensável. O apoio deve ser inteligente, fazendo o outro crescer
de modo correto. O amor é uma escola para a evolução da alma, e nela cada um é
professor e aluno. Quanto mais consciente for a evolução, melhor e mais rápida ela
será.
NOTAS:
[1] “Cartas dos Mestres de
Sabedoria”, editadas por C. Jinarajadasa, Editora Teosófica, Brasília, 295 pp.;
ver p. 18.
[2] “Amor e Vontade”, Rollo May,
Editora Vozes, Petrópolis, RJ, 1992, 361 pp.; ver pp. 48 e seguintes.
[3] “A Despersonalização do Sexo”,
texto de Viktor Frankl em “A Visão Espiritual da Relação Homem & Mulher”,
Editora Teosófica, Brasília, 257 pp.; ver pp. 69 a 75. O texto está publicado
em nossos websites associados sob o título de “Amor, Sexo e Autotranscendência”.
[4] “Creating a Successful Family”,
Khalil Khavari e Sue Khavari, Ed. Oneworld, 1989, Grã-Bretanha, 269 pp.; ver p.
178.
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Uma versão inicial do texto acima foi publicada de modo anônimo
durante a década de 1990 na revista “Planeta Nova Era”, da Editora Três, São
Paulo. Título original: “Criatividade no Compromisso”. O artigo foi revisado
pelo autor em março de 2013.
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