Como Perceber Melhor o
Que é Joio, e o Que é Trigo
Carlos Cardoso Aveline
Certos ditados populares contêm uma sabedoria
verdadeiramente imortal, quando nos advertem
sobre as relações surpreendentes entre o que é ilusão e o que é
realidade:
* “O essencial é invisível aos olhos.”
* “As aparências enganam.”
* “O hábito não faz o monge.”
* “Quem vê cara não vê coração.”
Apesar de todos os
avisos e conselhos nesse sentido, é normal que muitos se deixem levar pelas aparências. Afinal, como explica
outro ditado popular, “o que os olhos não veem, o coração não sente”. As
pessoas necessitam do apoio da visão externa. Há muitos São Tomés modernos exigindo ver para crer, e quando eles veem
algo, acreditam naquilo, mesmo que a visão seja falsa e enganosa e os leve a um
beco sem saída.
Cecília Meireles
escreveu:
Os teus ouvidos estão enganados.
E os teus olhos.
E as tuas mãos.
E a tua boca anda mentindo
Enganada pelos teus sentidos.
Faze silêncio no teu corpo.
E escuta-te.
Há uma verdade silenciosa dentro de ti.
A verdade sem palavras.
Que procuras inutilmente,
Há tanto tempo (...). [1]
A dificuldade de
distinguir mitos de verdades deve-se também ao fato de que, em certas ocasiões,
a verdade não é agradável.
O ditado popular
afirma que o pior cego é aquele que não quer ver, mas o ditado ignora o fato de
que quase sempre há um motivo forte para manter os olhos fechados. A aceitação da realidade pode derrubar e
destruir as ilusões mais agradáveis.
A ilusão é como
uma couraça protetora. A verdade torna o indivíduo interiormente forte, mas externamente vulnerável. Com ela, o ser humano
é forçado a deixar de lado situações sobre as quais antes comodamente enganava
a si mesmo – e aos outros. Assim, o cego mais astucioso é aquele
que prefere não ver, e uma boa parte das pessoas está nesse caso. É como se o
indivíduo pensasse: “é melhor não saber de certas coisas”. Todo conhecimento direto implica uma
responsabilidade e um perigo. Às vezes o indivíduo foge do perigo − e da sua verdadeira força interior
− buscando refúgio na falsa segurança do não-saber.
Há ainda outro
aspecto no processo de produção de brumas e ilusões. É mais fácil seguir as
velhas trilhas do pensamento conhecido, das ações repetidas, dos pontos de
vista estabelecidos. Muita gente vê a vida
como algo imóvel, ou como algo cujo movimento é sempre o mesmo e não admite
inovações. E há inúmeros cidadãos que querem que seja assim. Apenas gostariam
de trocar alguns poucos fatos isolados, para que suas ambições pessoais se tornassem
realidade.
Quase tudo o que é
rotina parece real. O que rompe a rotina parece irreal e até inaceitável. O caminho estreito e íngreme de que fala
Jesus no Novo Testamento (Mateus, 7: 13-14) consiste em ir contra a correnteza
e olhar os fatos colocando a verdade acima das outras considerações. Esse
caminho precário força o ser humano a pensar, e nele os tombos e os tropeços são
inevitáveis. A roupa fica rasgada. A sola dos sapatos fura. O futuro é incerto,
e o caminhante é visitado pelo medo e pela incerteza –; mas sua alma cresce, e nem as corporações
multinacionais, com todo o seu inquestionável poder tecnológico, puderam
inventar até hoje algo tão importante quanto o simples crescimento da alma.
É verdade que a
caminhada do autoconhecimento não se dá em terreno asfaltado, sob o aplauso constante
das pessoas mais queridas do peregrino, enquanto ele avança feliz entre seus admiradores. O caminho é íngreme. Ele é percorrido
solitariamente em uma paisagem complexa, em meio a luzes e sombras, sons e
silêncios, orientações verdadeiras e falsas indicações. A chave da vitória do
peregrino está sobretudo na sua capacidade de aprender com as derrotas.
A espiritualidade não
existe afastada da vida. O que há no mundo externo, há também no mundo da busca
espiritual. Existem espertalhões que mentem no âmbito das relações sociais e
econômicas, e outros tantos “espertos” geram mitos no universo da busca
espiritual. Os indivíduos honestos são a maioria em ambas dimensões da vida; mas
eles devem viver com os olhos abertos e com os ouvidos atentos, porque a
vigilância é um preço a pagar pelo progresso, em todos os aspectos da caminhada.
O grau de
honestidade de qualquer indivíduo em relação aos outros é uma decorrência do seu
nível de honestidade consigo mesmo. Quem engana os outros engana a si. E quem engana a si mesmo não tem
motivos − nem meios ou instrumentos − para ser sincero com os outros.
Por isso, um dos
primeiros passos de toda caminhada espiritual é a decisão de ser honesto com
sua própria consciência interior.
A jornada em busca
do conhecimento sagrado é uma obra de alquimia em que você troca o tempo potencial
de sua vida física por experiência acumulada e sabedoria. Você transmuta tempo,
e energia, em conhecimento. O tempo que lhe é dado viver e a energia vital
correspondente a cada uma das suas faixas etárias são recursos naturais. Mais
do que isso: são recursos naturais não-renováveis − pelo menos do ponto de
vista da sua atual encarnação. Para o
alquimista espiritual, o tempo e a vitalidade são as matérias-primas do seu
trabalho, e não podem ser desperdiçados. Para evitar o mau uso desta
matéria-prima, uma coisa é indispensável: o discernimento. É ele que permite
identificar o que é mito e o que é verdade, o que é folclore e o que é fato, o
que é jogo de cena e o que é lei eterna.
Deste modo o
indivíduo evita jogar fora o tempo de vida que lhe pertence. É certo que haverá outras encarnações no
futuro: mas a qualidade do ponto de partida que lhe será dado nelas
dependerá de saber aproveitar as
oportunidades de agora.
O Desafio da Prática
O que se pode
fazer, então, para diminuir o problema
da perda de tempo?
Esta pergunta coloca
alguns desafios que, quando enfrentados com seriedade, têm lições valiosas a
ensinar.
A prática é um
critério da verdade. É ela, e não o discurso, que revela a diferença entre o
tonto e o sábio. Mas a prática é algo
bem maior e mais complexo que os fatos físicos externos. A prática é também a vida psicológica, emocional e contemplativa ou intuicional.
Assim, para ver
como anda o processo de iluminação da alma de alguém que assumiu um
compromisso espiritual consigo mesmo, é preciso examinar quanto há de força
e de responsabilidade próprias na decisão tomada, e qual é o poder real que o
compromisso assumido tem de mudar para melhor − ainda que lentamente − a vida
diária do indivíduo.
A Ação Individual
Algumas pautas de
comportamento individual são típicas da religiosidade não dogmática dos novos
tempos. Entre esses costumes e recomendações
éticas estão:
*A leitura
reflexiva de obras da teosofia original e da filosofia clássica;
*A ajuda mútua e a
solidariedade na caminhada espiritual;
*O apoio a ações
altruístas no plano econômico-social e cultural;
*Uma alimentação
natural, sem aditivos, corantes, flavorizantes, conservantes, e sem uso de
defensivos agrícolas;
*Uma alimentação
integral, sem uso de grãos refinados;
*Uma alimentação
vegetariana, ou lacto-ovo-vegetariana, isto é, que não implique a morte de
animais;
*A abstenção de
cigarro e bebidas alcoólicas;
*A prática diária
de exercícios físicos moderados, como caminhadas, plantio de mudas de
árvores, tai-chi-chuan, ou artes marciais
como judô e ai-ki-dô;
*A auto-observação
diária e a gradual purificação de pensamentos e sentimentos;
*O estudo livre e
não-dogmático dos melhores textos de cada religião, sem que o estudante esteja
preso a dogmas ou rituais.
Esses, entre
vários outros itens, caracterizam um novo tipo humano, e também uma nova
cultura emergente. Abre-se espaço assim para o cidadão e a humanidade da era de
Aquário. O novo indivíduo escuta seu próprio coração. Ele já não coloca fama, poder e dinheiro acima
de todas as coisas. Sua espiritualidade não se prende a seitas, rótulos, crenças
cegas ou conceitos inquestionáveis. Ele não pensa que pode comprar sabedoria
indo a caros seminários de final de semana.
A Liturgia da Espiritualidade
Cada etapa da vida
nos capacita para romper com um certo tipo de armadilhas e ilusões. Mas algumas
delas são as mesmas de etapas anteriores, apenas de cara nova. Não basta passar
a falar de temas filosóficos e universais, por exemplo, para que morra o velho hábito de pensar
mecânica e superficialmente. Astucioso, discreto, o hábito da preguiça mental
nos acompanha fielmente, de modo quase imperceptível, como um cachorro
envergonhado que teima em seguir o dono, disfarçando para não ser visto porque sabe
que recebeu ordens de ficar em casa.
É recomendável examinar
algumas questões: os nossos pequenos rituais diários, aquilo que poderíamos
chamar de liturgias da nossa espiritualidade, serão todos resultado de decisões
realmente responsáveis e conscientes? Esse conjunto de práticas é consequência
natural de uma compreensão ampliada da vida? E, sobretudo, usamos de bom senso? O mito e o
folclore rodeiam e encobrem a verdade, e há uma antiga história zen que ilustra
esse tema.
Certo dia, séculos
atrás, um grande mestre budista recolheu da rua um gato abandonado e passou a
cuidar dele. Quando meditava, em sua
cela, o monge amarrava respeitosamente o animal no pé da mesa, para que não o
atrapalhasse. Passaram-se vários anos. O monge morreu e pouco depois o gato desapareceu
do monastério. O sucessor do velho mestre − zeloso seguidor das suas técnicas
de meditação − buscou então um gato e o amarrou ao pé da mesa durante as suas meditações.
Com o tempo, a prática institucionalizou-se. Já muitos praticantes amarravam gatos
a pés de mesas no momento da meditação. Surgiram polêmicas entre doutores sobre
qual devia ser a cor do cordão que amarrava o gato. Novas seitas passaram a
alegar que o gato deveria ser dessa ou daquela raça. Caso contrário, a
meditação seria apócrifa e ineficaz. O dogma
e o mito haviam transformado o meio em fim, a aparência em essência, e a
circunstância externa em fato central.
O mesmo pode
ocorrer – e ocorre frequentemente – com as modernas técnicas de meditação e oração, o vegetarianismo, o
respeito aos animais, e a atitude de valorizar pensamentos construtivos. Tudo
pode ser visto com olhos supersticiosos e transformado em dogma, rotina e
ritual.
A verdade, porém,
é que não existe uma sequência pré-concebida de passos a serem tomados no
caminho do autoconhecimento. Os oito
passos do nobre óctuplo caminho do
budismo são todos reflexivos, e podemos começar por qualquer um deles, ou pelos
oito ao mesmo tempo. Eles são: 1) compreensão correta; 2) pensamento correto;
3) palavra correta; 4) ação correta; 5) meio de vida correto; 6) esforço mental
correto; 7) atenção correta, e 8)
concentração correta. São passos inseparáveis entre si, e não
sucessivos.
O caminho não
está, pois, em linha reta. Não consiste em obediência. Cada caminhante deve ter em primeiro lugar
sua meta clara, e então abrir caminho. O poeta espanhol Antônio Machado
ensinou: “Caminante, no hay camino –
el camino se hace al andar”. Não há um caminho único e igual para todos.
Cada passo é sempre o primeiro passo, e define a substância dos passos
seguintes. A condição mais importante da caminhada é que os
passos sejam dados com integridade e por decisão própria.
“Faze o que é
correto, e com o tempo isso te será agradável”, ensinavam os pitagóricos. De
fato, vale a pena fazer um esforço para melhorar nossos hábitos, e os resultados
são melhores quando o esforço é feito a partir de uma concepção ampla, firme e
universal da vida.
Cinco Ilusões Frequentes na Espiritualidade Superficial
Uma dose razoável
de realismo e uma certa experiência de vida nos mostrarão que estamos mais ou
menos rodeados por todos lados de uma estranha mistura de verdade e ilusão. E
essa mistura ocorre também dentro de nós.
De um certo ponto
de vista, podemos dizer que “a ilusão é uma tinta ou camuflagem cuja função é
encobrir a verdade apenas de quem não está pronto para ela” [2].
Há ilusões
coletivas que pairam no ar: podemos absorvê-las inconscientemente. São
falsidades culturais mais ou menos estabelecidas, mas que é possível identificar, analisar e descartar.
Vejamos, como exemplos, cinco delas:
1)“Há apenas paz e amor no caminho espiritual.” O
pensador zen-budista Shundo Aoyama escreveu que a velhice, a doença e a morte −
assim como a felicidade, a infelicidade, o ganho e a perda − são todos fatores importantes no caminho em
busca da sabedoria.
2)“Temos a obrigação de experimentar sempre
sentimentos maravilhosos durante nossas meditações”. Na verdade, como ensinou Charlotte Joko Beck, “a
meditação não é ocasião para bem-aventurança e relaxamento, mas um forno para
queimar nossas ilusões egoístas”.[3]
Quando sentamos, imóveis, para buscar a
verdade interior, podemos ser assaltados por dúvidas, ansiedades e outras
movimentações da ignorância. Dessa tensão surgem um atrito e um fogo que
queimam as ilusões do nosso eu pessoal, tornando-o digno de contemplar a verdade.
3)“A caminhada espiritual é apenas pessoal e
subjetiva, nada tendo a ver com os outros ou com o mundo externo”. O
monge zen Thich Nhat Hanh considera que “os instrutores espirituais que não dão
atenção aos problemas do mundo, como fome, guerra, opressão e injustiça social,
não compreenderam bem o significado do budismo”. Porém, em teosofia, como no budismo, o
importante é combater as causas e não os meros efeitos externos da ignorância.
4)“Nossos pensamentos e emoções são separados do nosso
corpo físico”. Uma grande
quantidade de derrotas e fracassos resulta da visão do caminho espiritual como
algo que nega o corpo físico, ao invés de conhecê-lo e usá-lo adequadamente
como um instrumento da caminhada. A alimentação, a respiração, a circulação do
sangue, o trabalho do rim e do fígado, os relaxamentos e as tensões musculares
são retratos dinâmicos que expressam, no mundo físico, aquilo que ocorre na alma.
Por sua vez, os hábitos, posturas e
processos corporais também influenciam as
atividades mentais e emocionais.
5)“O caminho espiritual é feito de fé e de crença”. Grave engano. A crença em algo que não podemos
verificar por nós mesmos reduz a nossa capacidade de perceber a realidade e
fecha nossa mente para o que é novo. Os caminhos que levam à paz interior são
feitos de perguntas e de tentativas. A convicção é um péssimo critério para
julgar a verdade.
Os autoritarismos
bem intencionados, religiosos ou não, plantam falsas certezas e exigem “fé” e
“confiança” de seus seguidores.[4] Os
sistemas corretos de liderança, baseados na comunhão fraterna, fazem da
transparência e da vigilância coletiva a sua característica central. A
verdadeira fé e a verdadeira confiança surgem de dentro para fora. Elas não são
resultado de propaganda ou de pregação, e não têm medo do exame crítico, mas,
ao contrário, testam sua força
enfrentando de boa vontade os desafios da vida. Robert Crosbie, o fundador da
Loja Unida de Teosofistas, escreveu:
“A teosofia não
impõe coisa alguma, mas convida a um exame atento”.
Há muitos exemplos
de ilusão, é claro – dentro e fora de
cada cidadão. Os caminhos que levam à paz interior são, na prática, maneiras
pelas quais cada um de nós decide aceitar a destruição dos seus mitos particulares
e adequar sua vida prática à lei da verdade.
O Pacifismo Ingênuo
Quando examinamos algumas
das ilusões “espirituais” comuns na primeira parte do século 21, há um item que
merece um relativo destaque. Trata-se do
mito pacifista segundo o qual todo conflito é inútil, e a única atitude
recomendável é a ausência de combate, e até a ausência de esforço, por parte do
aprendiz espiritual.
A obra “Três Caminhos Para a Paz Interior” descreve essa atitude como uma negação infantil do conflito:
“O pacifista
ingênuo faz de conta que todo conflito é inútil ou ilusório, e com isso evita
tomar uma posição clara. Nega seus
próprios sentimentos de rancor, que passam a fazer parte da sua ‘sombra’
inconsciente. Pensa, por exemplo, que
‘nazismo e democracia são a mesma coisa’, e que a injustiça social ou a
corrupção na política não devem ser combatidas ‘porque, afinal, fazem parte do
mundo externo ilusório’. Ele prefere não perceber que há no mundo externo um
doloroso conflito entre verdade e
ilusão, sinceridade e mentira; que esse conflito externo é influenciado e
também influencia o que ocorre na alma humana, pois é, na verdade, parte dela.”
[5]
Fechando os olhos
para a realidade externa, o pacifista superficial desiste de usar o
discernimento. Pensa que o caminho espiritual consiste em nunca dizer uma
palavra áspera e manter sempre um sorriso nos lábios. Ele repete os escribas e
fariseus criticados por Jesus – que eram como sepulcros caiados, limpos por
fora, mas cheios de substâncias podres por dentro, segundo Mateus, 23.
O pacifista
superficial trata de imitar da melhor maneira possível o suposto comportamento
externo e o olhar sublime dos santos, tal como aparecem nos retratos das
igrejas. Esse enfoque evita comodamente proteger a verdade contra a mentira ou
a justiça contra a opressão, alegando que “a iluminação espiritual transcende
as ilusões dualistas”.
A Mitologia da Religião Convencional
As religiões
dogmáticas se alimentam da credulidade humana, e se apoiam em mitos que lhes
dão aparência de legitimidade. O ensaio de Sigmund Freud intitulado O
Futuro de Uma Ilusão descreve os mitos religiosos dos últimos séculos
como algo que não foi inteiramente inocente, da parte de certas “lideranças espirituais”,
mas sim desenhado para dominar multidões através do dogma.
É bom que se diga
que Jesus, Buda e outros grandes
instrutores foram hereges em seu tempo e jamais fundaram religiões baseadas em
crença cega e ritual. A lógica do poder e
o apego à rotina engolem e destroem o quanto podem da sabedoria divina. Normalmente,
depois de um grande instrutor, surge uma religião burocratizada, com seus
numerosos mecanismos corporativos. A tradição institucionalizada produz a
traição ao espírito do ensinamento
original. O movimento teosófico moderno não é uma exceção à regra, mas sempre
há teosofistas suficientes para manter viva
e livre de burocracias a proposta original de trabalho, formulada entre 1875 e
1891.
Falando dos tempos
já passados em que a religião da credulidade dominava absoluta, Freud, o polêmico
criador da psicanálise, avalia:
“É duvidoso que os
homens tenham sido em geral mais felizes na época em que as doutrinas
religiosas dispunham de uma influência irrestrita; mais morais, certamente não
foram. Sempre souberam como externalizar [como
tornar algo exterior, situado fora do ser humano] os preceitos da religião
e anular assim suas intenções. Os sacerdotes, cujo dever era assegurar a
obediência à religião, foram ao seu encontro nesse aspecto. A bondade de Deus
põe uma mão refreadora à sua justiça. Alguém peca; faz depois um sacrifício ou
se penitencia, e fica livre para pecar de novo. (...) Assim, concluíram: só
Deus é forte e bom; o homem é fraco e pecador. Em todas as épocas, a
imoralidade encontrou na religião um apoio não menor que a moralidade.” [6]
As religiões
patriarcais – que cultuam um deus-pai
ameaçador e justificam a morte e a violência – constituem para Freud uma
neurose coletiva, uma psicopatologia:
“Assim, a religião
seria a neurose obsessiva universal da humanidade; tal como a neurose obsessiva
das crianças, ela surgiu do complexo de Édipo, do relacionamento com o
pai.(...)” [7]
Ao definir como ilusões
neuróticas as poderosas religiões monoteístas do século 20, Freud não encarava
o termo religião no seu sentido
original e etimológico, que vem do latim religare e significa a religação
do mundo humano com o mundo divino.
A nova
religiosidade, que surge hoje livre das ilusões institucionalizadas, é um
processo que se constrói com base em alguns princípios básicos e universais, no
bom senso e na experiência direta de cada um, mas não na mera crença.
O cidadão do
século 21 busca a sabedoria em uma
caminhada coletiva e solidária, em comunhão com outros seres. Mas isso não
autoriza a construção de dogmas. A comunhão visa a troca de experiências úteis e
também a ajuda mútua – duas coisas moralmente belas e indispensáveis em qualquer etapa ou aspecto da
vida.
Desse modo, a nova
religiosidade do século 21 pode abandonar esse nome e ser chamada de ciência. Ou
de psicologia. Ou simplesmente de
filosofia da espiritualidade não-dogmática.
Porque ela não está presa a nomes ou rótulos, mas é uma realidade viva,
dinâmica, mutável na forma, que pode ser denominada de maneiras diferentes.
A Pedagogia de Paulo Freire
A espiritualidade
não-dogmática não aceita crenças ou recomendações cegas, mas é, ao invés disso,
um processo vivo de aprender e de ensinar.
Mesmo sem usar em
momento algum o rótulo de espiritual ou
de religioso, o pensador brasileiro
Paulo Freire propõe em suas obras sobre pedagogia uma atitude mais eficaz
diante do aprender e do ensinar.
Sua abordagem é de
grande utilidade para a arte de viver corretamente. Ele escreveu:
“Outro saber
necessário à prática educativa, e que se funda na mesma raiz que acabo de
discutir - a da inconclusão do ser humano que se sabe inconcluso - é o que fala do respeito devido à autonomia
do ser do educando. Do educando criança,
jovem ou adulto. Como educador, devo estar constantemente advertido com relação a esse
respeito, que implica igualmente o respeito que devo ter por mim mesmo. Não faz
mal repetir afirmação várias vezes feita nesse texto – o inacabamento de que
nos tornamos conscientes nos faz seres éticos. O respeito à autonomia e à
dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não
conceder uns aos outros. (...) O professor que desrespeita a curiosidade do
aluno, o seu gosto estético, a sua inquietude (...), o professor que ironiza o aluno, que o
minimiza, que manda que ‘ele se ponha no seu lugar’ ao mais tênue sinal de sua
rebeldia legítima, tanto quanto o professor que se exime do cumprimento do seu
dever de propor limites à liberdade do aluno,
que se furta ao dever de ensinar, de estar respeitosamente presente à
experiência formadora do educando, esse professor transgride os princípios
fundamentalmente éticos de nossa existência.” [8]
O pensamento de
Paulo Freire permite examinar melhor os mitos e as ilusões do chamado movimento
esotérico. Algumas pessoas têm a impressão de que a espiritualidade é
algo que se transmite mecanicamente de quem sabe para quem não sabe. Deste
ponto de vista, aquele que tem o conhecimento deve ser ativo no processo, e
quem não sabe deve ser apenas passivo e receber a ação, obedecendo cegamente.
Essa premissa é falsa. Quando ela é aceita, a caminhada é feita sobre a base da
ilusão.
Desde o início,
aquele que sabe mais deve se colocar como um auxiliar daquele que sabe
menos. Aquele que sabe menos é, na verdade,
o centro e o autor do processo de aprendizagem, e não pode ser
artificialmente colocado na periferia da
sua própria caminhada.
O Papel do Bom Senso na Busca
É possível dizer que
o nosso “estado de vigília” é, na verdade, feito de sonhos. E que, mesmo quando
pensamos estar acordados, na verdade nos relacionamos sobretudo com as imagens
que temos das coisas, como em um sonho. Temos poucos momentos de lucidez total,
em que vemos as coisas como elas são e dentro de um horizonte muito mais amplo
que o curto prazo pessoal.
O ser humano
dorme, do ponto de vista da espiritualidade mais elevada. Ele ainda não
despertou para um modo mais maduro de ver o mundo. Sua visão do mundo é feita
de sonhos ou mitos criados por ele
mesmo, ou que ele aceita como se fossem
realidade, porque lhes foram
apresentados e impostos como tal. Ele os
chama de “realidade”, mas, desde outro ponto de vista, as mesmas descrições do mundo podem ser reconhecidas
como imaginação ou fantasia.
Como encontrar,
então, o caminho da verdade? E como
avançar por ele?
Estas duas perguntas
são sempre atuais. Não há um modo simples de responder a elas. Mas sabemos que, para trilhar o caminho do autoconhecimento, é
necessário ter bom senso. Para quem deseja achar a verdade, existe uma
filosofia antiga e multidisciplinar que ensina a conhecer simultaneamente a si
mesmo e ao universo. É preciso que o indivíduo seja seu próprio mestre, e que seja o aluno da sua
consciência,
isto é, um discípulo leal da “voz da razão” em seu próprio interior. É ouvindo
essa voz que ele se libertará das armadilhas da ignorância e dos mitos que a
sustentam, quer eles tenham sido criados por si mesmo ou por outrem.
Em relação à presença
da voz da razão na consciência individual de cada ser, Freud escreveu,
usando a palavra “intelecto” no seu sentido clássico, de “inteligência elevada”:
“A voz do
intelecto é suave, mas não descansa enquanto não consegue uma audiência.
Finalmente, após uma incontável sucessão de derrotas, obtém êxito. Esse é um
dos poucos pontos sobre os quais se pode
ser otimista a respeito do futuro da humanidade, e, em si mesmo, é de não
pequena importância.” [9]
Aquele que cria as
ilusões deve eliminá-las, e esse é o caso de cada um de nós. O momento em que
vamos considerar necessário melhorar nossa dieta, praticar exercícios ou ler e
meditar diariamente sobre assuntos teosóficos só pode surgir como algo natural. Não deve ser resultado de
imitação, de obediência ou de sujeição a uma autoridade externa.
Se não descobrirmos
a sabedoria dentro de nós, de nada adiantará buscar fora. Mas quando
descobrirmos a paz dentro de nós mesmos, qual a necessidade de procurá-la
ansiosamente no mundo externo?
O essencial é
invisível aos olhos, mas pode ser encontrado dentro de nós.
Depois que isso
acontece, doamos da nossa paz ao mundo sem que ela perca a sua força dentro de
nós, assim como uma chama acende outra chama sem perder coisa alguma da sua própria
luz.
NOTAS:
[1] Poema número IX em “Cânticos”, de Cecília Meireles, Editora Moderna Ltda., SP, 1983.
[2] “Três Caminhos Para a Paz Interior”, Carlos Cardoso
Aveline, Ed. Teosófica, Brasília, 2002, 191 pp. Veja o final da p. 132.
[3] Citado em “365 Zen Daily Readings”, edited by Jean
Smith, obra de 392 páginas publicada por HarperSanFrancisco em 1999, Nova
Iorque, EUA, ver p. 105.
[4] Sobre as cinco ilusões citadas, veja o livro “Três
Caminhos Para a Paz Interior”, obra citada, pp. 135-138.
[5] “Três Caminhos Para a Paz Interior”, obra citada, pp.
34-35.
[6] “O Futuro de Uma
Ilusão”, Sigmund Freud, Ed. Imago, RJ, 1997, 87 pp., ver p. 60.
[7] “O Futuro de Uma Ilusão”, obra citada, p. 69.
[8] “Pedagogia da Autonomia”, Paulo Freire, Ed. Paz e
Terra, ver pp. 65-66. Outro trecho importante dessa obra está à p. 59 (“Ensinar
exige o reconhecimento de ser
condicionado”). Todo o capítulo um, “Não Há Docência Sem Discência”, propõe uma
relação entre educador e aluno – “mestre” e “discípulo” – em que o clima deixa
de ser propício para as ilusões, mas, em compensação, dá lugar a um realismo
prático e a uma capacidade de duvidar respeitosamente que aumentam muito a
eficácia da busca da verdade. Um simples exame do Índice dessa obra
mostrará como encontrar enfoques fundamentais sobre o papel da esperança, da
alegria, da generosidade, da curiosidade, da liberdade, da autoridade e do
saber escutar, no processo de aprendizagem.
[9] “O
Futuro de Uma Ilusão”, obra citada, p. 83.
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Para conhecer a teosofia original desde o
ângulo da vivência direta, leia o livro “Três
Caminhos Para a Paz Interior”, de Carlos Cardoso Aveline.
Com 19 capítulos e 191 páginas, a obra foi
publicada em 2002 pela Editora Teosófica de Brasília.
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