Surge Gradualmente o Projeto
De um País que Respeita a Si mesmo
Carlos Cardoso Aveline
Ao escrever o romance “Macunaíma”, o modernista Mário de
Andrade demonstrou o seu bem intencionado desconhecimento sobre o
caráter do povo brasileiro.
Como abordagem da realidade cultural do nosso país, o
livro ilude mais do que informa. Já o título e o subtítulo
da obra - “Macunaíma, o herói sem nenhum
caráter” - revelam o equívoco do
autor. Comecemos pelo título.
Mário de Andrade admite que, para criar o personagem, baseou-se no
trabalho do etnógrafo alemão Theodor Koch-Grünberg. O próprio etnógrafo
esclarece a origem da palavra “Macunaíma”: “maku” significa “mau”, “maldoso”,
e “ima” quer dizer “grande”. Traduzido, o nome “Macunaíma”
significa “o grande maldoso”.[1]
O subtítulo da obra é igualmente infeliz. A expressão “herói sem nenhum
caráter” não faz sentido, porque o que define um herói é,
precisamente, o fato de que ele tem caráter e, por isso, é eticamente responsável.
Um Judas age como eticamente irresponsável e portanto não tem caráter.
Macunaíma, não tendo caráter, não é herói.
Há nesta obra de Mário de Andrade um impulso derrotista em
relação ao povo brasileiro. Apresentado como “modernista”, o enfoque tenta ver
como essencial e duradouro um elemento que é secundário e passageiro: a
ignorância espiritual. Pensar que a obra “Macunaíma” revela
aspectos essenciais do brasileiro é não só algo infeliz:
é, sobretudo, não-verdadeiro.
Em um prefácio que Mário de Andrade escreveu para “Macunaíma”, mas que
não publicou na época do lançamento do livro, podemos ler:
“O que me interessou por ‘Macunaíma’ foi incontestavelmente a
preocupação em que vivo de trabalhar e descobrir o mais que possa a entidade
nacional dos brasileiros. Ora depois de pelejar muito verifiquei uma coisa que
parece certa: o brasileiro não tem caráter. Pode ser que alguém já tenha falado
isso antes de mim porém a minha conclusão é uma novidade para mim porque tirada
da minha experiência pessoal. E com a palavra caráter não determino apenas uma
realidade moral não, em vez entendo a entidade psíquica permanente, se
manifestando por tudo, nos costumes na ação exterior no sentimento na língua na
História na andadura tanto no bem como no mal. O brasileiro não tem
caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional.”[2]
Aqui Mário de Andrade confunde um povo que está culturalmente em
formação, em seu berço, com um povo maldoso, um povo “maku-na-íma”. O
povo brasileiro, ao contrário, é evidentemente bom e honesto. Como
todos os povos.
Individual e coletivamente, a ética é inseparável do autocontrole, do
autoconhecimento e do autorrespeito.
O Brasil possui uma linhagem de verdadeiros heróis. Havia
heróis entre os indígenas pré-descobrimento, e havia heróis entre os
portugueses desbravadores. Havia heróis entre os líderes da
resistência negra, no século 17, e há heróis na fase atual da nossa história,
como o seringueiro Chico Mendes. Tiradentes e
os outros líderes sociais foram e são heróis, assim como
os que lutaram e lutam contra o escravismo, pela democracia, pela liberdade,
pela justiça social e pela ética na política e na administração
pública.
Desinformado sobre as realidades profundas da Evolução da vida, Mário
de Andrade evoca a ignorância espiritual da infância passageira de
uma nova nação, como se pudesse definir com isso, unilateralmente, o
caráter do povo.
Se o povo brasileiro não amadureceu culturalmente
tanto quanto gostaríamos, este não é um motivo para catalogarmos o seu caráter
como mau, ou como inexistente. O fato constitui, ao contrário,
um desafio positivo. Cada nova geração de brasileiros deve
dar a sua contribuição para a formação correta e digna do caráter do nosso
povo. Este é um processo necessariamente lento, mas que vem avançando bem há
vários séculos. Vale a pena citar alguns poucos exemplos:
* No plano da
evolução política e social, é necessário mencionar - além de Tiradentes -
José Bonifácio, o patriarca da independência; Diogo Feijó, o filósofo-estadista
que foi Regente do Império; e Dom Pedro II, o imperador
humanista.
* No plano cultural,
Antônio Vieira, Gonçalves Dias, Castro Alves, Monteiro Lobato, Lima Barreto,
Augusto de Lima e a primeira fase
de Jorge Amado correspondem a outras tantas contribuições.
* Cecília Meirelles
trouxe para a cultura brasileira a influência do pensamento indiano,
e a perspectiva de Rabindranath Tagore está presente em sua obra. Não por
acaso Cecília escreveu longamente sobre um dos grandes formadores do bom
caráter do povo brasileiro: Tiradentes.
* Mário
Quintana trouxe a perspectiva de outra grande cultura milenar, a da China
antiga, e a do taoísmo filosófico; e não por acaso ele traduziu várias
obras de Lin Yutang.
* Graciliano Ramos
ofereceu uma visão ética do drama do povo brasileiro. Clarice Lispector
aprofundou nossa percepção da vida.
* Padre Cícero e Chico
Xavier trouxeram influências éticas positivas para a formação do país.
* Paulo Freire definiu o povo brasileiro como uma
comunidade em construção, uma comunidade de aprendizagem, unida pela ajuda
mútua e pela colaboração solidária.
Os exemplos positivos citados acima são, evidentemente, poucos. Temos
tido um número quase ilimitado de contribuições eticamente positivas, ao longo
do processo de formação do ethos brasileiro.
Quase todas anônimas. É nosso o exemplo valioso de gerações de lutadores e
militantes sociais desde o período colonial. Milhões de pessoas honestas e de
bom caráter agem corretamente todos os dias, sem chamar atenção para suas boas
ações. Estes são os verdadeiros heróis brasileiros.
Sérgio Buarque de Holanda constrói uma discussão lúcida sobre a
formação histórica da alma do Brasil e define corretamente o brasileiro como “o
homem cordial”. Buarque de Holanda analisa com franqueza as dificuldades e
desafios da formação histórica do caráter do povo brasileiro. Mas ele deixa
aberta a porta para a evolução positiva, e também indica boa parte do caminho
para ela. Ele menciona uma chave essencial para o futuro do país: a prática da
ética humanitária impessoal. [3]
Só a ética impessoal e humanitária pode opor-se vitoriosamente ao
casuísmo personalista destituído de princípios, e assim abrir caminho para
a maturidade de um povo e de uma cultura.
Vale a
pena pensar com amor e respeito na boa alma do grande povo brasileiro. Um
povo jovem, como escreveu Darcy Ribeiro; mas um povo ético e inspirado pela
sabedoria universal.
NOTAS:
[1] “Macunaíma”, Mário de Andrade, Livraria Garnier, BH-RJ, 176 pp., 2001.
[2] “Macunaíma”, Mário de Andrade, obra citada, p. 169.
[3] “Raízes do Brasil”, Sérgio Buarque de Holanda, Companhia das Letras,
SP, 2006, 448 pp., ver especialmente pp. 205 e 285, sobre o caráter
impessoal do ideal humanitário e democrático.
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Sobre o mistério do despertar individual
para a sabedoria do universo, leia a edição luso-brasileira de “Luz no Caminho”, de M. C.
Com tradução, prólogo e notas de Carlos
Cardoso Aveline, a obra tem sete capítulos, 85 páginas, e foi publicada em 2014
por “The Aquarian Theosophist”.
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