Dez Pontos em Comum Entre os Analectos
da China Antiga e o Novo
Testamento Cristão
Carlos Cardoso Aveline
Carlos Cardoso Aveline
A
sabedoria cristã é uma compilação de ensinamentos religiosos e filosóficos
anteriores.
O que o cristianismo tem de melhor e de mais valioso foi retirado da
tradição judaica e da sabedoria pagã, oriental e ocidental. O fanatismo
autoritário do clero cristão, porém, é mais recente. Surgiu com o alvorecer da Idade
Média.
O Jesus do Novo Testamento não fundou igreja alguma nem estabeleceu
rituais. A narrativa dos Evangelhos mostra que ele questionou as autoridades
eclesiásticas do seu tempo. Após chamar os sacerdotes de “sepulcros caiados”, Jesus
foi considerado herege, preso, e torturado até a morte.
Poucos séculos depois, os seguidores de Jesus se aliaram ao poder imperial
romano e começaram a torturar e a matar em nome de Deus.
Foi o cristianismo fanático que deu origem ao antissemitismo - um ódio sistemático
ao mesmo povo judeu em que nasceram tanto Jesus como os seus discípulos diretos, todos.
A tradição de rancor autoritário antijudaico foi radicalizada pelo
nazismo de Adolf Hitler, um líder político que cultuava a morte e contava com o
apoio das igrejas alemãs de seu tempo. Apesar de seus inúmeros crimes contra a
humanidade, Hitler jamais foi
excomungado ou mesmo criticado, enquanto viveu, pelo papa de Roma.
Sempre é possível renovar-se, e a religião que tem Jesus como Mestre não
é uma exceção. Para renascer em espírito, o cristianismo deve descartar no
século 21 o autoritarismo burocrático e optar pela sabedoria universal. Ainda
existe uma sabedoria cristã, que pode ser reavivada: e ela tem suas raízes no
mundo pagão. Entre as fontes do conhecimento ensinado no Novo Testamento estão,
além do judaísmo, o pitagorismo, o neoplatonismo, o budismo e o confucionismo.
A dimensão universal do cristianismo está viva e faz parte da teosofia.
Merece ser objeto de pesquisa. Irá passar por um renascimento. Neste contexto, fazemos
a seguir um estudo comparado em que enumeramos dez ligações centrais entre o
ensinamento de Confúcio e a mística cristã. Em alguns casos, nos referimos
também a outras tradições.
1. A Palavra e a Ação
Viver é perigoso. Os seres humanos enfrentam sérias tempestades pessoais
ao longo da existência, e em certas ocasiões a aprendizagem implica intenso
sofrimento.
Falando sobre o tema do caminho místico, Jesus ensina em Mateus, 7:
24-27:
“... Todo aquele que ouve estas palavras e as põe em prática será
comparado a um homem sensato que construiu a sua casa sobre a rocha. Caiu a
chuva, vieram as enxurradas, sopraram os ventos e deram contra a casa, mas ela
não caiu, porque estava alicerçada na rocha. Por outro lado, todo aquele que
ouve estas minhas palavras, mas não as
pratica, será comparado a um insensato que construiu a sua casa sobre a areia. Caiu
a chuva, vieram as enxurradas, sopraram os ventos e deram contra a casa, e ela
caiu.”
Para a tradição chinesa, dizer que alguma coisa é antiga implica sugerir
que é perfeita. Os homens do tempo antigo eram sábios. E Confúcio ensinou, em
“Analectos”:
“Os homens do tempo antigo eram reservados no falar, por receio de que
suas ações não estivessem à altura das suas palavras.” [1]
Dois parágrafos mais adiante, os Analectos (Lun-Yu em chinês) afirmam:
“O Mestre disse: ‘o homem sábio busca ser lento no falar mas rápido no
agir’.”
No parágrafo XIII do Livro V, Confúcio afirma:
“Quando Tzu Lu ouvia qualquer preceito e ainda não tinha sido capaz de
colocá-lo em prática, ele tinha receio de ouvir mais algum preceito.”
A unidade ou coerência entre a palavra e a ação é fundamental para a
sabedoria de todos os povos, assim como para cada ser humano. E este fato se
relaciona com a lei do carma.
Em Mateus, 7: 15, Jesus afirma:
“Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós disfarçados de ovelhas,
mas por dentro são lobos ferozes.”
A ideia do lobo vem da Grécia pagã. Em seu diálogo “Sofista”, do século
4 antes da era cristã, Platão escreve que um Sofista - isto é, um mistificador que
diz uma coisa e faz outra - se parece a um sábio “assim como um lobo, o mais
feroz dos animais, se parece a um cachorro, o mais manso deles”.[2]
Raramente é fácil enfrentar a hipocrisia. Jesus ensina como distinguir o
homem sincero do falso em Mateus 7: 16-20:
“Pelos seus frutos os conhecereis. Por acaso colhem-se uvas dos
espinheiros ou figos dos cardos? Do mesmo modo, toda árvore boa dá bons frutos,
mas a árvore ruim dá frutos ruins. Uma árvore boa não pode dar frutos ruins, nem
uma árvore má dar bons frutos. Toda árvore
que não produz bons frutos será cortada e lançada ao fogo. É pelos
frutos, portanto, que os conhecereis.”
Os frutos de uma árvore são suas ações. Muitos séculos antes do
cristianismo, Confúcio ensinava:
“Tsai Yu estava na cama durante o dia. O Mestre disse: ‘Madeira podre
não pode ser esculpida, e uma parede de estrume seco não pode ser rebocada. Quanto
a Yu, de que adianta criticá-lo? No
passado, minha atitude em relação aos outros era ouvir o que diziam e ter
confiança em suas ações. Agora minha atitude é escutar o que eles dizem e
observar o que eles fazem. Foi através de Yu que fiz essa mudança’.” [3]
2. Onde Houver Três
O triângulo é a mais básica das formas geométricas, e uma das mais
harmoniosas. Como o número três, o triângulo é sagrado. Ele une céu e terra. Ele
integra tese, antítese, e síntese. Simboliza a Santíssima Trindade cristã, Pai,
Filho e Espírito Santo, e a trimurti
hindu: Brahma, Vishnu e Shiva. Ele é a grande tríade chinesa: Céu, Ser Humano e
Terra. Ele representa os três grandes níveis de consciência humana, como ensinavam
os gregos: Espírito, Alma e Corpo.
Em Mateus, 18: 18, vemos a relação entre o céu e a terra, ou seja entre
a consciência divina, transcendente, e a consciência terrestre, prática, que mantém
os pés no chão:
“Em verdade vos digo: tudo quanto ligardes na terra será ligado no céu e
tudo quanto desligardes na terra será desligado no céu.”
Na sequência, em Mateus 18: 19-20, surge a noção dos triângulos na
conexão entre céu e terra:
“Em verdade ainda vos digo: se dois de vós estiverem de acordo na terra sobre
qualquer coisa que quiserem pedir, isto lhes será concedido por meu Pai que
está no céu. Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou
eu no meio deles.”
O “Pai que está no céu” é uma personificação da Lei Universal. Na filosofia
esotérica de Helena Blavatsky, o triângulo é também Atma (Pai), Buddhi (Filho),
e Manas (Humanidade).
Nos Analectos ou Lun Yu da
China antiga, podemos ler:
“O Mestre disse: ‘Quando a caminhada é feita em um grupo de três, meus
instrutores estão sempre presentes. Eu posso selecionar as boas qualidades de
um e desenvolvê-las em mim, e as qualidades insatisfatórias de outro e
corrigi-las em mim mesmo’.” [4]
3. O Círculo Interno do Ensinamento
Esotérico
Desde Pitágoras, no Ocidente, o ensinamento esotérico é transmitido
entre aqueles que fizeram compromissos
profundos com o caminho do altruísmo. O motivo é simples: só eles podem
entender a filosofia universal. Por isso Helena Blavatsky escreveu nas páginas
de abertura de “A Voz do Silêncio”, um dos seus livros mais importantes:
“Esta obra é dedicada aos Poucos”.
De fato, não são muitos os que decidem dedicar suas vidas inteiras à
busca da sabedoria. Por isso é costume dos instrutores dar aos Poucos mais
informações que ao público amplo, cujo interesse é superficial.
Referindo-se a Jesus e seus discípulos diretos, o Evangelho Segundo Marcos
(4: 10-12) afirma:
“E quando ficaram sozinhos, os que estavam junto dele com os Doze o
interrogaram sobre as parábolas. Disse-lhes: ‘A vós foi dado o mistério do
Reino de Deus; aos de fora, porém, tudo se passa em parábolas, a fim de que,
vendo, vejam e não percebam; e ouvindo, ouçam e não entendam; para que não se
convertam e não sejam perdoados’.” [5]
Na ausência de uma autêntica busca, ou quando não há discernimento por
parte do aprendiz, o Mestre não pode ensinar. Quando o discípulo não está
pronto, o Mestre não aparece. O lado interno do ensinamento só se revela para
quem decidiu pessoalmente trilhar o caminho da verdade maior. Desde uma perspectiva
oriental, os Analectos de Confúcio ensinam a mesma distinção entre o público
amplo e o estudante que assumiu um compromisso sério consigo mesmo:
“Tzu Kung disse: ‘A cultura e o refinamento do nosso Mestre podem ser
vistos por todos; mas a doutrina do
nosso Mestre sobre a natureza do homem e as leis do céu não foi feita para que
todos a ouçam’.” (Livro V, parágrafo
XII)
4. Não Dar Pérolas Aos Porcos
Há razões práticas para estabelecer uma diferença entre os ensinamentos
públicos e os ensinamentos privados. Uma delas é apontada em Mateus, 7: 6. Ali,
Jesus recomenda:
“Não deis aos cães o que é santo, nem atireis as vossas pérolas aos
porcos, para que não as pisem e, voltando-se contra vós, vos estraçalhem.”
E podemos ler no Livro VII, parágrafo VIII, do “Lun-Yu” ou “Analectos”:
“O Mestre disse: ‘Eu não ensino nada para aquele que não é atento, nem
ajudo a ninguém que não esteja ansioso por expressar-se. Quando eu demonstro um
ângulo e ele não me traz de volta os outros três, então eu não repito minha
lição’.”
Desde outra região do Oriente, o mestre Zen Budista Nyogen Senzaki
escreve:
“Rennyo, um abade Hongan-ji, perguntou a um mestre contemporâneo de Zen,
Ikkyu: ‘Ouvi dizer que você é uma pessoa iluminada. É verdade?’ ‘Nunca fiz essa
brincadeira de mau gosto’, respondeu Ikkyu. Provavelmente era desnecessário
mostrar ao abade todo o brilho do Zen (...). Um provérbio oriental afirma: ‘É inútil
mostrar uma peça de ouro a um gato’.” [6]
No Velho Testamento cristão e na Tanach (Bíblia) judaica, vemos, em
Provérbios, 23: 9, que o rei Salomão ensina:
“Não fales aos ouvidos do insensato, porque desprezará a sabedoria das
tuas palavras”.
Na tradição árabe, um ensinamento famoso das “1001 Noites” afirma:
“Quem faz bem a quem não o merece procede como aquele que abriga uma
hiena.” [7]
Como diz um ditado brasileiro, “para o bom entendedor, meia palavra
basta”. E, para o mau entendedor, nenhuma quantidade de palavras é suficiente.
O pior surdo é aquele que não quer ouvir; falar para ele é inútil.
No entanto, esse princípio se aplica especialmente aos aspectos mais
profundos da sabedoria. Em termos gerais o ensinamento, é dado a todos, sem
exceção. Na abertura dos seus Provérbios, Salomão afirma, e pergunta:
“Grita na rua a Sabedoria; nas praças, levanta a voz; do alto dos muros,
clama; à entrada das portas e nas cidades, profere as suas palavras; até
quando, oh, tolos, vocês irão amar a tolice?”
Ninguém deve sentir-se necessariamente como um vencedor diante de tal
desafio. Cabe a cada estudante sincero fazer um autoexame honesto ao
perguntar-se:
“Até que ponto eu mesmo não
sou um insensato que pisa em cima das
‘pérolas’ e despreza as oportunidades de que está rodeado? Talvez a vida já me tenha
dado inúmeras oportunidades, que eu aproveitei, ou não. E provavelmente será impossível
a um verdadeiro Mestre ensinar-me, se não for capaz sequer de aproveitar por completo o ensinamento que
já está ao meu alcance.”
Cada um deve responder estas e outras perguntas semelhantes no silêncio
do seu próprio coração. Podemos aprimorar nossa aprendizagem nas próximas
encarnações, mas nada nos impede de aproveitar melhor cada instante da vida
atual.
5. A Trave e o Cisco no Olho
do Aprendiz
Ao longo da busca da sabedoria, existe o perigo real de sermos demasiado
duros com os outros, e excessivamente brandos com nós mesmos. Diante disso, Mateus,
7: 1-5, afirma:
“Não julgues, para não seres julgado. Porque com o julgamento com que
julgas serás julgado, e com a medida com que medes, serás medido. Por que
reparas no cisco que está no olho do teu irmão, quando não percebes a trave que
está no teu? Ou como poderás dizer ao teu irmão: ‘Deixa-me tirar o cisco do teu
olho’, quando tu mesmo tens uma trave no teu?
Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então verás bem para
tirar o cisco do olho do teu irmão.”
E Confúcio aponta para a mesma solução nos Analectos:
“Aquele que exige muito de si mesmo e pouco dos outros evitará
ressentimento.” [8]
Esse princípio se relaciona com o princípio estoico, ensinado pelo
filósofo Epicteto, que manda fazer o que está ao nosso alcance e não perder
energia com o que está fora do nosso alcance, ou não depende de nós. E Gautama
Buda ensina, na grande escritura budista, o “Dhammapada”:
“Melhor que um homem que vence em batalhas mil vezes mil homens, é
aquele que vence a si mesmo. Ele é, na realidade, o maior dos guerreiros. A
vitória sobre si mesmo é de fato maior que a vitória sobre os outros. Nem
Brahma, nem Mara, e tampouco um deva (um deus) ou um gandharva (músico
celestial), nenhum deles pode transformar em derrota a vitória de alguém que
sempre pratica o autocontrole.” [9]
6. As Virtudes São
Inseparáveis Umas das Outras
Nenhuma qualidade positiva pode ser desenvolvida de modo isolado. Em seu
texto “Elogio das Virtudes”, São Francisco de Assis escreveu:
“Salve, rainha sabedoria, o Senhor te guarde por tua santa irmã, a pura
simplicidade! Salve, santa pobreza [10],
o Senhor te guarde por tua santa irmã, a humildade! Senhora santa caridade, o Senhor
te guarde por tua santa irmã, a obediência! Santíssimas virtudes todas,
guarde-vos o Senhor, de quem procedeis e vindes a nós! Não existe no mundo
inteiro homem algum em condições de possuir uma de vós, sem que ele morra
primeiro. Quem possuir a uma de vós e não ofender as demais, a todas possui; e
quem a uma ofender, nenhuma possui e a todas ofende!” [11]
Por sua parte, Confúcio já ensinava:
“A virtude nunca permanece sozinha; ela sempre tem vizinhos.” [12]
7. O Princípio da Moderação
A moderação nos assuntos mundanos permite ao buscador estar mais atento
às coisas da sabedoria, e o mantém livre de exageros perigosos. Eclesiástico,
37: 27-30, aconselha:
“Filho, durante tua vida prova o teu temperamento, vê o que te é nocivo
e não o concedas a ti mesmo. Porque nem tudo convém a todos, e nem todos se
comprazem com tudo. Não sejas ávido de toda delícia, nem te precipites sobre
iguarias, porque na alimentação
demasiada está a doença (...).”
A primeira epístola de Paulo aos
Coríntios reforça:
“Tudo me é permitido, mas nem tudo convém. Tudo me é permitido, mas não
me deixarei escravizar por coisa alguma.” (1 Cor 6: 12)
Em seu romance “O Horizonte Perdido”, James Hilton escreveu que um sábio
deve ser moderadamente moderado. Ou seja, não se deve exagerar nem
sequer na austeridade. A lição é budista, e aponta para o Caminho do Meio. E o
taoísmo ensina o mesmo através da união com o princípio universal do
equilíbrio, o Tao.
Conceitos recentes como desenvolvimento sustentável e preservação
ambiental dependem do mesmo princípio da simplicidade voluntária. Os
Analectos nos transmitem o seguinte ensinamento:
“O Mestre pescava com uma linha, e não com uma rede; quando caçava, ele
não fazia mira em um animal que estivesse descansando.” [13]
Confúcio ensinava moderação
pelo exemplo prático.
8. Procura e Acharás
Em Mateus, 7: 7-8, o Jesus do Novo Testamento afirma:
“Peçam e lhes será dado: busquem e irão achar; batam, e a porta lhes
será aberta. Pois todo aquele que pede recebe; quem busca encontra; e a quem
bate, a porta lhe será aberta.”
Esse antigo princípio se refere à lei do Carma: quem planta, colhe. E
diz respeito, naturalmente, à sabedoria. Se alguém fizer pedidos egoístas
dificilmente será atendido de modo satisfatório. Se pedir sabedoria em seu
coração, será gradualmente atendido conforme seu merecimento, e para isso não
haverá limite além do estabelecido pelo plantio que realizou.
“Os Analectos” abordam a questão:
“O Mestre disse; ‘Será que a virtude está longe? Sinto um desejo pela
virtude e veja! - a virtude está presente’.” [14]
Ou seja, estamos o tempo todo rodeados de oportunidades ilimitadas. Quem
tiver olhos para ver as verá, e as aproveitará.
9. A Ética Diante dos Inimigos
Há um tema em que Confúcio e o NT aparentemente divergem. Diz respeito à Ética que se deve ter diante dos
inimigos. A contradição, porém, está mais no nível da letra morta que no plano do
conteúdo. Nos Analectos, temos:
“Alguém perguntou; ‘O que você
pensa sobre o princípio de responder à inimizade com amabilidade?’ E o mestre
respondeu: ‘E com o que, então, você responderia à amabilidade? Responda à
inimizade com um tratamento justo, e responda à amabilidade com amabilidade’.” [15]
Cabe examinar com calma o motivo prático pelo qual devemos agir desse
modo. Alguém perguntou a Confúcio como governar bem. O Mestre respondeu:
“Se você promover as pessoas corretas e demitir quem se comporta mal, o
povo ficará contente; mas se você promover quem se comporta mal e demitir as
pessoas corretas, o povo ficará descontente.” [16]
No tempo de Confúcio, portanto, a ideia incluída no Evangelho sobre reagir
passivamente a uma agressão já era conhecida.
Em Mateus, 5: 38-40, Jesus afirma:
“Ouviste o que foi dito: ‘Olho por olho, dente por dente’. Eu, porém, te
digo: ‘não resistas ao perverso, mas, a qualquer um que te ferir na face
direita, volta-lhe também a outra; e ao que quer demandar contigo e tirar-te a
túnica, deixa-lhe também a capa’.”
Aparentemente, há uma contradição sem saída e uma discordância sem
remédio entre Jesus e Confúcio.
A ideia central de Jesus está na proibição da vingança, que o
Confucionismo não aprova. O próprio judaísmo não recomenda a vingança. A Lei do
Talião ou “Olho por Olho” visa na verdade evitar a escalada nos conflitos e
afirma a necessidade de uma resposta ou defesa que seja moderada, proporcional ao ataque.
O Jesus do Novo Testamento reconhece a complexidade da vida. Sua afirmativa
radicalmente pacifista ao recomendar “oferecer a outra face” aos agressores é
paradoxal e contraria o ensinamento dele próprio em Mateus 10: 34-39:
“Não pensem que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada.
Pois vim causar divisão entre o homem e seu pai; entre a filha e sua mãe e
entre a nora e sua sogra. Assim, os inimigos do homem serão os da sua própria
casa. Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim não é digno de mim; quem
ama seu filho ou sua filha mais do que a
mim não é digno de mim; e quem não toma a sua cruz e vem após mim não é digno
de mim. Quem acha a sua vida a perderá; quem, todavia, perde a vida por minha
causa a achará.”
Esta passagem de Jesus contém uma dura lição sobre impessoalidade. É
preciso olhar com desapego para nossos vínculos pessoais mais íntimos. É aí que
se dá um combate em que a espada da verdade é indispensável, um combate contra
a falsa paz da rotina e da acomodação. Não se trata de buscar entrar em
conflito com as pessoas mais próximas a nós. Trata-se, isso sim, de combater
nosso próprio apego ou rejeição a elas. Assim,
o clássico teosófico “Luz no Caminho” afirma na sua segunda série de regras
para o discípulo: “...
Ninguém é teu inimigo; ninguém é teu
amigo. Todos são teus instrutores.”
Entre o extremo da brandura total e o extremo da bravura total, há o amplo terreno de
experimentação do aprendiz, até que despertem sua sabedoria e seu bom senso.
A ideia da justiça ou do perdão para os inimigos depende, também, da
correlação de forças, e das intenções existentes em cada momento. A vida é dinâmica.
Em “Upasakasilasutra” ou “The Sutra on Upasaka Precepts” [17], há um trecho em que se recomenda,
diante dos inimigos, não exatamente dar a outra face, mas “retribuir com o bem”
de modo ativo e não passivo. Essa atitude parece combinar Justiça, Compaixão e
Discernimento. O “bem” com o qual se deve responder ao mal é a justiça. E
justiça é inseparável da verdade, do rigor, e da compaixão.
Há uma narrativa budista que aborda este ponto.[18]
Um discípulo budista viajava por uma floresta quando surgiu diante dele um
assaltante. Enquanto o ladrão se preparava para matar o religioso, este pensou
apenas no carma terrível que o criminoso estava atraindo para si mesmo.
Deste exemplo podemos concluir que se quisermos beneficiar um criminoso -
seja ele um ladrão de galinhas ou o presidente da república -, o melhor a fazer
é tomar providências para que ele não repita o crime.
Se pudermos evitar que ele cometa seu primeiro crime, essa será a melhor
opção. Mas jamais devemos convidá-lo a continuar no caminho da injustiça.
10. O Caráter Pagão da Regra
de Ouro
O décimo exemplo é a famosa regra
de ouro. Suas origens também são pagãs, mas ela é considerada uma das
recomendações mais importantes dos Evangelhos, e constitui uma chave ética para
a libertação humana da dor. Ao
formulá-la, o Jesus do Novo Testamento afirma:
“Tudo aquilo que vocês quiserem que os homens lhes façam, façam vocês a
eles, porque essa é a Lei.” (Mt 7:12).
Cinco séculos antes da lendária vida de Jesus, Confúcio já ensinava na
velha China:
“O que não desejo que me façam os outros, tampouco desejo fazê-lo, eu,
aos outros.” [19]
A mesma ideia sagrada consta da filosofia de Pitágoras, que viveu meio
milênio antes do cristianismo.
Sexto, o pitagórico, escreveu em suas Sentenças:
“Do modo como você deseja que o seu próximo seja com você, do mesmo modo
você deve ser para com o seu próximo.” [20]
Diógenes Laércio conta que certa vez perguntaram a Aristóteles (382 a.C.
- 322 a.C.), como devemos comportar-nos em relação aos nossos amigos. E Aristóteles
respondeu:
“Como gostaríamos que eles se comportassem conosco.” [21]
O Velho Testamento da Bíblia de
Jerusalém inclui o livro de Tobias, que segundo os pesquisadores cristãos
foi escrito provavelmente no século 2 antes da era cristã.
Ali encontramos o mesmo princípio:
“Não faças a ninguém o que não queres que te façam.” (Tb, 4: 15)
Nada disso, é claro, impediu o irreverente Bernard Shaw de advertir
contra a interpretação literal das escrituras. Shaw prefere dar um conselho
diferente:
“Não faças aos outros o que queres que te façam: os gostos deles podem
ser diferentes dos teus.”[22]
Embora seja válida essa advertência irônica contra a obediência cega, a
regra de ouro é de uma importância inquestionável. Ao ensinar esse preceito, o Jesus do Novo Testamento valoriza e preserva
a sabedoria oriental, e a traz para o Ocidente.
NOTAS:
[1] “The Analects”, Confucius, Dover Publications Inc.,
New York, 1995, 128 pp., ver p. 20. Há também a edição portuguesa, Publicações Europa-América, 128 pp. Em qualquer edição,
veja o Livro
IV, parágrafo XXII.
[2] Fólio 231. Veja,
por exemplo, “Sophist”, in “The Dialogues of Plato”, Great
Books of the Western World, Encyclopaedia Britannica, Inc., 1952, 814 pp., ver
p. 559.
[3] “Os Analectos”, Livro V. Na edição em inglês, citada acima, parágrafo
nove. Na edição portuguesa, também
citada acima, parágrafo dez.
[4] “The Analects”, Confucius, Dover Publications Inc.,
New York, 1995, 128 pp., Livro VII,
parágrafo XXI.
[5] Vale a pena ver
também Mateus 13: 10-17.
[6] “The Iron Flute,
100 Zen Koan”, translated and edited by Nyogen Sensaki and Ruth Strout
McCandless, Charles E. Tuttle Company, Rutland, Vermont, USA, and Tokyo, Japan,
second printing, 1985, impresso no Japão, 175 pp., ver p. 23.
[7] “A Sabedoria dos Árabes”, seleção de Ary de Mesquita,
Ediouro/Tecnoprint, RJ, 114 pp., 1986, ver p. 80.
[8] “The Analects”,
Confucius, Dover Publications Inc., New
York, 1995, 128 pp., Livro XV, parágrafo XIV.
[9] “O Dhammapada”, Capítulo 8, edição luso-brasileira disponível
em nossos websites associados. Esta é a
tradução da única versão conhecida do Dhammapada que contém um enfoque
teosófico da obra.
[10] “Pobreza” - a tradição oriental diria: “desapego,
despojamento”.
[11] “São Francisco de Assis - Escritos e Biografias”,
Crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano, Ed. Vozes, Petrópolis, RJ, 1991, 1.372 pp., ver p. 166.
[12] “The Analects”, obra citada, Livro IV,
parágrafo XXV.
[13] “The Analects”, Confucius, Dover Publications, Livro VII, parágrafo
XXVI.
[14] “The Analects”, obra citada, Livro VII, parágrafo
XXIX.
[15] “The Analects”,
obra citada, Livro XIV, parágrafo XXXVI,
p. 88.
[16] “The Analects”, obra citada, Livro II, parágrafo XIX,
p. 08.
[17] “The Sutra on
Upasaka Precepts”, Bukkyo Dendo Kyokai, Numata Center for
Buddhist Translation, Berkeley, California,
1994, 225 pp., ver p. 60.
[18] Ver o artigo intitulado “Perfect Patience”, de autor
anônimo, na revista mensal indiana “The Theosophical Movement”, agosto de 2006,
p. 328. A revista é publicada por associados da Loja Unida de Teosofistas, LUT.
[19]
“Lun-Yu”,
ou “Conversas Filosóficas”, de Confúcio, capítulo 5, versículo 11. Ver “Los Grandes Libros”, Confúcio, Ed.
Siglo Veinte, Buenos Aires, 1943, p. 94. Veja o mesmo ensinamento na
versão de Thomas Cleary dos Analectos, em “O Essencial de Confúcio”, Ed. Best Seller, SP, 1992, 197 pp., p.
99.
[20] “The Pythagorean Sourcebook and Library”,
compilação e tradução de Kenneth
Sylvan Guthrie, Phanes Press, Michigan, EUA, 1987, 361 pp., ver p. 268, frase
número 20 das “Sentenças de Sexto, o Pitagórico”.
[21] “Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres”, Diógenes
Laércio, Editora UnB, Brasília, 1987, segunda edição, 357 pp., ver p. 134.
[22] “Socialismo Para Milionários”, George Bernard Shaw,
Ed. Ediouro, RJ, 138 pp., ver pp. 120-121.
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O texto “O Evangelho Segundo Confúcio” foi publicado pela primeira vez em 06
de maio de 2014, depois de permanecer inédito durante cerca de dez anos.
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