Como Eliminar a Ilusão
Autoritária no Movimento Esotérico
Christmas
Humphreys
Nota Editorial:
O texto a seguir foi publicado originalmente na revista
“The Theosophist”, Adyar, Índia, em junho de 1925, e reproduzido na revista
“The Indian Theosophist”, em Varanasi, em agosto de 1986, pp. 184-189. Título
original: “Leadership and Loyalty”. No artigo, Humphreys levanta um dos
princípios fundamentais que inspiram a Loja Independente de Teosofistas e
outros setores do movimento esotérico: a necessidade de manter e preservar a
autonomia de cada buscador da verdade, evitando obediência cega.
Christmas
Humphreys (1901-1984) afastou-se da Sociedade Teosófica de Adyar em 1924, quando
viu que ela havia perdido o rumo e o bom senso. Humphreys fundou com seus
colegas a Sociedade Budista de Londres, uma das primeiras agrupações budistas
do Ocidente. Ao mesmo tempo, permaneceu unido ao movimento teosófico por laços
de amizade e cooperação.
Em 1962, com ajuda
de Elsie Benjamin, Humphreys organizou a terceira edição em inglês das Cartas
dos Mahatmas Para A. P. Sinnett (TPH,
Adyar, Índia). Entre as obras que escreveu estão O Budismo e o Caminho da Vida (Ed. Cultrix, SP, 210
pp.), An Approach to Zen, (Quest, TPH, Wheaton, EUA), The Search
Within, a course in meditation (TPH-Blavatsky Trust, 1977), The Wisdom of
Buddhism (Curzon-Humanities, London, 1987), e Concentration and
Meditation (Watkins Publishing, London, 1973).
(Carlos Cardoso
Aveline)
000
A Liderança e a
Lealdade
Christmas
Humphreys
Esta questão torna necessário um exame da
relação entre três conceitos associados, embora diferentes. O primeiro deles é
a diferença que existe entre um princípio e a sua aplicação, que é a mesma
diferença entre o abstrato e o concreto. O segundo conceito envolve a doutrina
do que nós chamaremos genericamente de autodependência ou autodeterminação, e o
terceiro é simbolizado pela mais desrespeitada das palavras: lealdade.
O Abstrato e o Concreto
A teosofia de hoje
está, infelizmente, tornando-se mais e mais materialista, e uma das causas
parece ser o fator seguinte. A Sociedade Teosófica oferece ao mundo um corpo de
princípios gerais que são considerados fragmentos da Sabedoria Eterna. O
estudante de teosofia aplica um destes princípios a um conjunto particular de
fatos, de acordo com a sua própria interpretação dele. Isso é o correto. Mas
este fragmento cristalizado de um princípio geral, colorido pela interpretação
individual do estudante, é placidamente aceito por aqueles que são demasiadamente
preguiçosos para pensar por si mesmos, e propagado por eles como sendo um
princípio da teosofia.
Disso surgem
fórmulas de conduta e dogmas sobre cada questão que são - para todos, exceto
para o estudante original - tão mortas e vazias de significado quanto qualquer
outra forma de dogma. Por exemplo, é um princípio da teosofia que existe uma só
vida. “Em consequência”, diz um estudante ao pensar profundamente sobre a
questão, “nós não devemos usar calçados de couro”. Esta é a aplicação do
conceito de unidade da vida à vestimenta pessoal. Mas isto não é teosofia no
sentido de que possa ser transmitido ao mundo como um fragmento da Lei. No
entanto, muitas pessoas asseguram que “a Teosofia estabelece que não devemos
usar calçados de couro”. Os princípios são claros: que cada estudante se embeba
deles e os aplique por si mesmo; mas que ele, ao mesmo tempo, deixe os outros
livres para fazer o mesmo.
Devemos sugerir
uns aos outros, sem dúvida, modos pelos quais qualquer princípio dado possa ser
aplicado, mas é recomendável não dogmatizar, porque cada um deve ser, em última
instância, seu próprio intérprete da lei. Em resumo, que a teosofia seja dada
ao mundo no nível mental superior, ou conceitual, e que a sua aplicação seja
adaptável às necessidades e aos pontos de vista particulares de todos os que
buscam a Verdade, seja por que linha de
trabalho for.
Autodeterminação
Havendo erguido a
discussão a um nível de princípios, prossigamos. Proponho agora a ideia de que
há uma só forma de lealdade, que é a lealdade a nós mesmos, ou ao eu superior.
Devemos, portanto, examinar primeiro a doutrina da autodeterminação, a qual,
para os efeitos deste artigo, pode ser citada como a afirmação críptica “eu sou
eu”, e tudo o que decorre dela. Isso equivale a uma identificação com o Eu
Superior, que pode ser considerado como a parte relativamente permanente do
nosso ser, em contraste com os seus veículos temporários de expressão, ou
personalidade.
Entre outras
considerações que se seguem logicamente da nossa primeira premissa está a
rejeição de quaisquer disciplinas de qualquer fonte, exceto a disciplina do Eu
sobre o eu inferior, o não-eu ou personalidade. Em segundo lugar, e quase como
consequência da anterior, a necessidade de um perfeito controle da
personalidade por parte do eu superior. Finalmente, e para o nosso raciocínio
talvez seja o ponto mais importante, o direito intrínseco de adotar por nós
mesmos uma linha de conduta, e de segui-la firmemente, enquanto isto não ferir
o direito idêntico dos outros.
Lealdade
O ato de seguir o
eu superior adquire importância suprema, e todas as outras considerações devem
ceder a ele. Esta, pelo menos, parece ser a lei dos Grandes Seres. O Mestre
“M.”, escrevendo para A.P. Sinnett sobre o tema do discipulado, estabelece que
“só àqueles que provaram ser fiéis a si mesmos e à Verdade em todas as
situações será permitido contato futuro conosco”. [1] De fato, Polonius falou para toda a eternidade quando
aconselhou a Laertes:
Acima de tudo, isto: seja honesto com você mesmo
E em consequência, tão certamente como a noite segue o
dia,
Você não poderá ser falso para com homem algum. [2]
Mas, quando há
desonestidade com o Eu, surge um conflito interno em que o eu inferior mente
inutilmente para o eu superior e experimenta um considerável desconforto devido
a um fator que nunca pode ser completamente ignorado: a presença, na
consciência, da memória de um erro passado. Todo idealista compreende a
substância da lealdade a si mesmo. Suponhamos que eu tente ser leal em relação
a determinado ideal. Então, a quem devo ser leal, ao seguir aquele ideal? Devo
ser leal ao meu Eu. Porque é meu eu superior que é idealista, não a
personalidade. Não é uma consequência lógica que, ao ser leal a um ideal, eu
estou apenas sendo leal ou honesto comigo mesmo?
Vamos considerar
agora a natureza do que é considerado “lealdade pessoal”. Esta ocorre quando
uma pessoa decide ser leal a alguma outra pessoa, e “apoiá-la” em quaisquer
situações. Uma tal lealdade pessoal deveria ser o reflexo de uma causa oculta,
e não uma causa em si mesma. Deveria ser o resultado da cooperação harmoniosa
de dois eus superiores, e não a obediência cega a uma personalidade enquanto se
ignora totalmente a violação de princípios básicos. No entanto, é sabido que
mesmo grandes seres se deixaram cegar pela personalidade de outros.
Que as
personalidades sigam personalidades, se quiserem, mas quando Eu, o eu superior,
aceito dar minha lealdade a uma mera personalidade, por maior que seja aquela
personalidade, eu deixo, ao fazer isso, de confiar inteiramente em meu eu
superior, e consequentemente deixo de ser verdadeiro comigo mesmo. Ao colocar
assim minha confiança em outro, renuncio virtualmente ao trono do eu superior,
e portanto renuncio a meus poderes de percepção espiritual, isto é, ao poder de
entrar em contato com a Verdade.
O eu superior
segue princípios e leis inalteráveis, e só o eu inferior, o não-eu, segue
personalidades. Como, então, posso ser leal a outros e, ao mesmo tempo, “ser
honesto com meu próprio Eu”? Não será, a
resposta, que a melhor lealdade aos outros
é a constante lealdade ao nosso
eu superior? Quem examinar esta ideia
verá que é correta. Um homem que apenas segue personalidades não é confiável,
do ponto de vista do eu superior cuja personalidade ele decide seguir, porque
pode ser levado adiante para outra busca, em um momento crítico, por alguma
outra “personalidade mais atrativa”.
Por outro lado, um
pensador independente, que segue acima de tudo seus próprios ideais e
princípios, é sempre confiável. O líder pode contar com seu apoio leal porque
compreende que o seguidor está trabalhando com o mesmo objetivo que ele, e que
trabalha com igual fidelidade pelo ideal que ele representa aos seus olhos. Mas
o líder também sabe que se ele se mostrar desleal para com o ideal comum, com
toda certeza seu seguidor o abandonará. Assim, a própria autenticidade dos seus
apoios o mantém na linha determinada originalmente. A obediência cega pode ser
elogiável em um campo de batalha militar, mas tem pouca utilidade para a evolução
espiritual.
A única
contradição aparente a este princípio é, quando bem examinada, a sua melhor
ilustração. Pode ser alegado: “E onde
está a invariável devoção do discípulo por seu Mestre?” Mas será que neste caso
o discípulo segue uma personalidade? É claro que não. É uma relação pelo menos
tão elevada quanto a de um eu superior que segue um eu superior, e talvez algo
ainda mais alto. Os Mestres não definiram a si mesmos em Luz no Caminho como “símbolos do eu superior”? A conclusão é que ao
seguir o Mestre o discípulo está apenas sendo leal com seu próprio eu superior.
Tampouco a explicação metafísica desta doutrina da lealdade é difícil de
entender. Há apenas um Eu, e como poderia, aquele que é leal a um fragmento
deste Eu dentro de si mesmo, ser desleal a qualquer outro fragmento instalado
em outro ser humano? E, ao contrário,
como é que um homem que seja leal a algo que é não-Eu, como uma personalidade,
pode permanecer fiel ao Eu Uno? Seja leal ao Eu, e o problema da lealdade
estará automaticamente resolvido.
Tipos de Liderança
Há três tipos
principais de liderança. Em primeiro lugar, a liderança espiritual, ou a
devoção do irmão mais novo pelo irmão mais velho na evolução. Isto, como vimos,
é apenas o fato de seguir fielmente o Eu interior. Em segundo lugar, a
liderança no que se pode chamar de aspecto-forma. Estes líderes são
simplesmente trabalhadores administrativos, peças dentro da engrenagem de uma
organização. Estes dois tipos são os dois extremos. Mas entre eles há um
terceiro.
Na maior parte dos
casos, as pessoas que se unem para formar uma nova unidade elegem alguns dos
seus membros para que ocupem uma posição dual. Estas pessoas têm um cargo no
aspecto-forma, e ao mesmo tempo são respeitadas em maior ou menor grau como
líderes espirituais. Lideram ao mesmo tempo o aspecto formal ou administrativo
e o aspecto vital do qual a organização retira sua força. Bem, é um axioma do
mundo administrativo que os dirigentes executivos são encarregados de trabalhar
dentro de certos limites, e que serão obedecidos enquanto se mantiverem dentro
daqueles limites. De outro modo não haveria por que nomeá-los. Isso assegura o
bom funcionamento da organização. Portanto, na medida em que qualquer líder é
um funcionário administrativo atuando dentro dos limites, você obedece a ele.
Mas, na medida em que ele é um líder administrativo, você, seu eu superior,
está disposto a seguir tal líder apenas enquanto o caminho dele e o seu forem o
mesmo. Porque você, seu verdadeiro eu, está comprometido primariamente com os
seus princípios.
Mantenha clara a
função dual deste líder e o problema da lealdade está resolvido. E aquela
função dupla se resolve a longo prazo como uma questão de eu superior e de
personalidade. No aspecto-forma você obedece a um dirigente eleito, porque só
assim a administração pode ser realizada; mas no aspecto-vida você segue
princípios, segue seu eu superior, e só segue pessoas na medida em que elas
corporificam aqueles princípios.
Esta distinção
leva a uma organização disciplinada e de funcionamento eficaz, composta de unidades
livres e independentes - o que certamente é o ideal. Porque quanto mais
independentes forem as unidades, mais fielmente elas seguirão os dois aspectos
dos seus líderes. Trabalhando apenas para o bem do conjunto, eles obedecem a
seus dirigentes no aspecto-forma, enquanto conservam sua independência no
aspecto-vida.
Estes princípios
parecem claros e inquestionáveis, mas sua aplicação não é nem um pouco fácil. A
linha da lealdade a si mesmo raramente, ou nunca é, o caminho de menor
resistência. Mas, embora este seja um caminho difícil, há quem prefira os seus
rigores do que as “agulhadas internas” de uma consciência sempre atenta.
Porque, ao seguir o caminho mais difícil, você só tem o mundo para enfrentar,
mas se desviar deste rumo entrará em conflito com o Eu superior. Escolha, então
- porque cedo ou tarde a decisão tem de ser tomada. A lealdade a si mesmo é
algo muito maior do que apenas um “último recurso”. É o princípio fundamental
da conduta. O caminho que ele abre é o único Caminho Correto na evolução, e um
caminho que, seja como for, deve, em última instância, ser trilhado por toda
alma que evolui.
NOTAS:
[1] Veja “Cartas dos Mahatmas Para A.P. Sinnett”, Ed.
Teosófica, volume I, Carta 45, p. 208. Em inglês, na edição da TUP, Pasadena,
veja a p. 264. Há neste ponto um erro na edição brasileira das Cartas dos
Mahatmas, que diz: “Só àqueles que provaram ser fiéis a nós e à verdade em
todos os momentos...”. A lealdade que o Mestre exige é de cada um para sua
própria consciência. (CCA)
[2] Sem dar-se ao trabalho de citar em detalhe, C.
Humphreys menciona aqui a cena III da peça “Hamlet”, de William Shakespeare.
Polonius e Laertes são personagens da peça. (CCA)
000
Veja também o texto “Quatro Ideias Para um Poder Solidário”, de Carlos Cardoso Aveline.
O artigo está disponível em nossos websites associados.
Sobre o mistério do despertar individual
para a sabedoria do universo, leia a edição luso-brasileira de “Luz no Caminho”, de M. C.
Com
tradução, prólogo e notas de Carlos Cardoso Aveline, a obra tem sete capítulos,
85 páginas, e foi publicada em 2014 por “The
Aquarian Theosophist”.
000