Okeidade Mútua: a Análise Transacional e a
Construção
de uma Psicologia da Fraternidade
Carlos Cardoso Aveline
A vida de um livro é
tão imprevisível como a de uma pessoa, e o seu valor interno não pode ser
medido pelo sucesso aparente.
Grande best-seller
nas décadas finais do século vinte, o livro “Eu Estou OK, Você Está OK” é uma
obra admirável e expressa o ideal teosófico da fraternidade e do equilíbrio.[1]
Vista por alguns
como um lema pessoal e um axioma, a ideia de “okeidade mútua” ressoa em
harmonia com a tradicional saudação “Namastê”, que significa:
“O que há de melhor
em mim saúda o que há de melhor em você.”
A saudação é dita geralmente
com as palmas das mãos unidas diante do peito e uma leve inclinação da cabeça.
As relações humanas
baseadas no princípio do equilíbrio e da reciprocidade são um ideal decisivo
para os teosofistas. Embora a prática da fraternidade seja desafiante e envolva
um profundo renascimento e a perda de um sentido prévio de identidade, ela é também
algo inevitável. Não há necessidade de postergar este ideal. A fantasia de um
sentido individualista de identidade, baseado na separação, já não funciona
mais como proteção diante da vida.
O primeiro objetivo
do movimento teosófico é a formação de um núcleo de fraternidade universal que
transcenda os atributos do eu inferior, tais como raça, classe social, sexo,
casta, nacionalidade, e apego pessoal a esta ou aquela religião e filosofia.
A fraternidade sem
fronteiras deve incluir em última instância os seres do mundo natural e os
seres do mundo divino. A construção da fraternidade é silenciosa e tem lugar no
coração de cada um. O indivíduo deve enfrentar os fantasmas todos do passado. É
preciso vencer o apego à ignorância e ao sofrimento, a soma dos receios e
raivas humanos, o medo de abandono e outras formas de “não-okeidade” que
dificultam o progresso na direção da sabedoria.
A frase “eu estou
OK, você está OK” significa que o eu superior em mim reconhece a existência de
um eu superior em você. A vida é
probatória, todos os seres são incompletos e a dor faz parte da existência; mas
a alma imortal em mim percebe a presença da alma imortal nos outros seres, e isso
é bom. A transcendência cura. A universalidade abençoa, a confiança protege, e a
coragem nos permite ser maiores que a dor.
Os Três Aspectos da Consciência Emocional
Evitando
teorizações excessivas, a Análise Transacional simplifica a equação das
relações humanas para trabalhar com o que é decisivo. Ela vê três níveis
fundamentais de autoconsciência na personalidade do indivíduo durante o
processo de interação com os outros:
PAI - A partir do
núcleo mais elevado de identidade emocional, o indivíduo se relaciona com os
outros desempenhando (em seu próprio mundo subjetivo) o papel de um pai, ou
mãe, uma autoridade, um conselheiro, protetor, aquele que sabe mais ou é mais
poderoso. No entanto ele pode ser um pai-mãe amável ou não, e pode ver coisas
boas nos outros ou talvez não veja.
ADULTO - O segundo nível
de autoconsciência na interação humana visa estabelecer relações baseadas no
respeito mútuo e na independência individual. A autonomia do aprendiz cumpre
neste caso um papel central. É a posição de equilíbrio. Há um “Adulto” a ser
respeitado no mundo psicológico de toda criança. É o Adulto interior que faz
com que a criança tenha autorrespeito e se relacione amigavelmente com os
outros. A criatividade é outra função do Adulto.
CRIANÇA - No
terceiro nível de autoconsciência, o ser humano vê a si mesmo como frágil, como
necessitado de ajuda, dependente, como alguém que absorve as situações e fatos
e não toma decisões, porque é incapaz de assumir responsabilidades.
Independentemente
da sua idade, todo ser humano vive ao mesmo tempo em seu próprio mundo
emocional os papéis de Pai, de Adulto e de Criança. Este é o chamado “esquema
PAC” da Análise Transacional, entre cujos pensadores estão Eric Berne e Thomas
A. Harris. Cabe ao indivíduo ser
um melhor Pai, um melhor Adulto, e uma melhor Criança. Isso começa pela
observação e pela decisão de melhorar.
Quatro Atitudes Básicas em Relação aos
Outros
Uma vez que a
natureza tríplice da autoconsciência emocional tenha sido compreendida, devemos
examinar os modos como a energia da “okeidade”
ou “capacidade de estar OK” é atribuída e distribuída pelo indivíduo nas
diferentes formas de interação.
Há quatro formas centrais
de postura nas interações. Elas funcionam como premissas e como estruturas:
* Eu não sou OK -
você é OK.
* Eu não sou OK -
você não é OK.
* Eu sou OK - você
não é OK.
* Eu sou OK - você
é OK.
Estas quatro
atitudes “espontâneas” são produzidas pelo carma e podem ser mudadas pelo
carma. As causas de sofrimento desnecessário estão subconscientemente presentes
nas quatro posturas. É preciso identificá-las e desmascará-las antes que possamos substituir a dor pela
sabedoria através da prática da ação
correta e do plantio de bom carma.
Façamos agora um
breve exame das quatro premissas básicas na interação humana, segundo o esquema
proposto pela Análise Transacional.
1) Eu não sou OK - você é OK.
Se opto por ver
qualidades no outro e não ver qualidades em mim, é porque alguém me ensinou a
não ter autoconfiança. Provavelmente
tive que ouvir ou fizeram com que eu sentisse muitas vezes na infância que sou
errado, faço coisas erradas, e que este ou aquele é muito melhor e “mais poderoso”
que eu. Penso então que só posso pedir ajuda, solicitar perdão, conseguir que
alguém tenha piedade de mim, fazer-me de vítima para mim próprio e para os
outros. Limito-me a invejar o outro ou pedir seu apoio, ou faço as duas coisas.
A cura desta
premissa subconsciente está no autoconhecimento e na autotranscendência. Cabe
observar o padrão cego e repetitivo da falta de autoestima. Quando cansarmos
deste jogo de cartas marcadas, passaremos a construir um padrão correto de
relacionamento com nós mesmos e com os outros.
2) Eu não sou OK - você não é OK.
Um falso começo de
autoconfiança consiste em desconfiar dos outros tanto quanto de si mesmo. O indivíduo
desinformado pensa que “o mundo é todo mau”. Desenvolvendo uma forte fé cega no
ceticismo, ele afirma:
“Eu não presto e os
outros não prestam. Ninguém é melhor do que eu. Todos estão errados e ninguém
está certo.”
Com esta atitude,
pode surgir grande quantidade de ações negativas e carregadas de rancor. A cura está em abrir os olhos e perceber a
mentira e a ilusão presentes na ideia de que “Eu não estou OK e os outros não
estão OK”. A verdade é outra. A natureza
cura a si mesma.
Posso estar sentindo que “não sou OK e você não é OK”.
Devo investigar a origem desta sensação. Nem todas as minhas avaliações da vida
são necessariamente verdadeiras. Cabe perguntar qual é o desejo absurdo que, sendo contrariado pelos fatos, me levou a adotar
uma atitude desanimada ou de desrespeito pela vida.
O realismo
impessoal é um bálsamo para as feridas da alma. Curo a mim mesmo através da
modéstia. A humildade me permite desenvolver autoestima, e da autoestima surge
a confiança nos outros.
3) Eu sou OK - você não é OK.
A terceira forma de
cegueira emocional na interação com as pessoas leva a um egoísmo ativo e a uma
vontade definida de dominar os outros como forma de supostamente gostar de mim
mesmo. No entanto, o orgulho e a arrogância não conseguem substituir o
autorrespeito. A terceira atitude faz com que eu crie um carma difícil para mim
mesmo e avance por um beco sem saída, do qual (se não abrir os olhos) acabarei
tendo que voltar para um dos modos de cegueira descritos mais acima.
4) Eu sou OK - você é OK.
A quarta forma
básica de postura emocional estabelece um equilíbrio criativo e permite ver
tanto no outro como em mim mesmo a presença da alma espiritual.
À medida que
percebo a legitimidade da vida fora de mim, permaneço em contato com a minha
própria legitimidade. O outro é quase sempre um espelho psicológico do meu ser.
Um contato mais forte
com a sabedoria esotérica demonstra a ilusão dos sentimentos que tornam difícil
para mim reconhecer a okeidade fundamental dos outros. Eles são humanos
e cometem erros. Posso inclusive pensar que fazem mais erros que eu; mas eles
são espelhos de diferentes aspectos do meu ser, e têm um eu superior assim como
eu tenho. São secundariamente falhos, e fundamentalmente OK. São aprendizes.
Quando a quarta
atitude diante de nós mesmos e dos outros surge como algo natural, passamos a
compreender melhor o aforismo presente em Marco, 12, 31:
“Amarás o teu
próximo como a ti mesmo.”
Um realismo saudável
nos faz reconhecer que os seres humanos são essencialmente bons. Suas almas
espirituais são divinas; os seus eus inferiores têm muito por aprender.
O “instinto” de
fraternidade universal está presente em todas as situações e faixas etárias e
não tem fronteiras limitadas ao mundo humano. Piotr Kropotkin e outros
mostraram que entre os habitantes do mundo vegetal e do mundo animal a ajuda
mútua ou fraternidade é o princípio orientador central da evolução das
espécies. A competição é um fator secundário.
Para quem busca a
sabedoria, as críticas devem ser bem-vindas como ferramentas para o autoaprimoramento
e o aperfeiçoamento recíproco. Sendo espelho, o outro produz imagens de potencialidades
sagradas. Ele mostra os erros que devo evitar, as lições que posso aprender e a
sabedoria que existe em meu interior.
NOTA:
[1] “Eu Estou OK, Você Está OK”, de Dr. Thomas A. Harris,
Ed. Artenova, Rio de Janeiro, 307 pp., 1977. A obra é dedicada à Análise
Transacional.
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