6 de novembro de 2016

Os Filmes de Akira Kurosawa

As Obras do Diretor Japonês
São Lições de Respeito Pela Vida

Carlos Cardoso Aveline

Akira Kurosawa


O japonês Akira Kurosawa  não foi apenas um grande diretor de cinema.  Usando uma linguagem cinematográfica talentosa, ele transmitiu sabedoria e ética durante 50 anos a multidões de todas as idades. Kurosawa teve sucesso de bilheteria como poucos. Sua obra permanece e permanecerá viva. Mas ele era um samurai do mundo das ideias, um guerreiro, e atribuiu o seu sucesso precisamente ao fato de jamais fazer um filme priorizando o êxito comercial.   

Nascido em 23 de março de 1910, ele viveu 88 anos e pode ser considerado o  maior diretor e roteirista de cinema de todos os tempos, desde o ponto de vista da filosofia esotérica.

Sua influência sobre outros diretores de cinema é enorme. Ele produziu 35 boas obras cinematográficas ao longo de cinco décadas de trabalho - de 1943 a 1993. Vários dos seus filmes são adaptações diretas de obras de William Shakespeare e Fiódor Dostoievsky, mas ele também foi  influenciado por Leon Tolstoi, Máximo Gorki e outros grandes escritores. Apesar desse diálogo amplo com a literatura mundial,  Kurosawa tem uma voz extremamente própria. Mestre da compaixão e da fraternidade sem fronteiras, sua obra é ao mesmo tempo profundamente japonesa e zen-budista. Dono de uma visão universal e essencialmente teosófica,  ele resgata a tradição dos samurais. Marcado pelas tradições do Oriente,  ele reflete sobre a dor humana, a primeira nobre verdade de Gautama Buddha, enquanto luta pela ética e pela justiça nas relações sociais. A natureza, e a sua preservação,  são outra constante em sua obra.

Um Cinema que Ensina a Viver  

Cerca de 30 filmes de Kurosawa podem  hoje ser facilmente adquiridos no Brasil através das boas livrarias. Entre eles estão “Ikiru (“Viver”) , “Rapsódia em Agosto”, “O Barba Ruiva”, “Derzu Usala”, “Depois da Chuva” e “Madadayo”.

Em “Ikiru”, um burocrata de carreira - perto de aposentar-se - descobre que irá morrer em breve devido a uma doença incurável, mas consegue redimir-se através da solidariedade para com todos os seres. “Rapsódia em Agosto” é a história de uma família geograficamente dividida entre vários países, que revive a destruição causada pelas bombas atômicas no Japão em 1945. Em “O Barba Ruiva”, um grande médico defende a vida dos pacientes do hospital que dirige, enquanto luta com suas limitações e transmite coerência e sabedoria aos que o rodeiam. “Derzu Usala”, um dos filmes mais famosos de Kurosawa, é uma história de amizade, coragem e respeito pela natureza. “Depois da Chuva” conta a luta de um guerreiro budista e mostra como ele consegue vencer as dificuldades, mesmo enquanto segue princípios éticos em um mundo marcado pelo materialismo e pela ignorância. “Madadayo” é um dos filmes mais agradáveis e mais teosóficos de Akira Kurosawa. Através de uma  bela história humana,  o diretor faz uma reflexão poética e prática sobre o processo do envelhecimento e da morte, que ele descreve como uma feliz transcendência em direção ao mundo sutil e a uma nova vida. 

Outra obra-prima de Kurosawa é “O Idiota”, filme baseado no romance de Dostoievsky. O aspecto mais importante deste filme é a descrição vívida de como é tratada a alma espiritual - Buddhi, o Cristo interno - quando ela aparece com toda força na sociedade materialista.  Totalmente destituído de astúcia pessoal ou de mecanismos de autodefesa emocional, o príncipe que personaliza Cristo, ou Buddhi, é tratado como idiota e débil mental.  A narrativa contém um estudo  sobre a impossibilidade de um grande instrutor viver na atmosfera psíquica média da atual humanidade. É um filme de valor teosófico inestimável. No entanto, o final da narrativa tem um peso emocional excessivo, que arrasta para baixo o filme como obra de arte. Kurosawa não quis fazer no filme um final alternativo, que pudesse ser  menos infeliz que o modo como culmina o romance de Dostoievsky.   

O Caminho da Ética

É desnecessário dizer da beleza visual dos filmes de Kurosawa. Em filmes preto-e-branco ou coloridos, ele foi um mestre e um gênio das artes visuais. Seus retratos dinâmicos da paisagem natural são únicos e têm um forte valor espiritual e meditativo. Por isso os diálogos em seus filmes  podem ser calmos, lentos e reflexivos.

As lealdades e traições entre generais e líderes políticos são analisadas em “Trono Manchado de Sangue”, um filme que recria o clima dos dramas de Shakespeare.  Cabe registrar o fato de que a luta entre traição e lealdade em Shakespeare e Kurosawa serve para simbolizar o conflito que ocorre em cada alma humana. Todo aprendiz da Sabedoria necessita optar constantemente entre a Verdade e a Comodidade, e a escolha nem sempre é fácil. Este mesmo tema geral inspira o filme “Homem Mau Dorme Bem”, uma adaptação livre de “Hamlet”. “Ran”, do mesmo grupo de filmes, é uma adaptação de “O Rei Lear”, de Shakespeare. Como no caso de “O Idiota”, “Ran” parece ser excessivamente sombrio no seu clima geral, mas Kurosawa apenas mantém o tom da obra original do dramaturgo inglês.

Os Sete Samurais” e “Depois da Chuva - ao lado de Kagemusha”, “Yojimbo”, “Sanjuro”, “A Fortaleza Escondida”, “A Espada da Maldição e Os Homens que Pisaram na Cauda do Tigre” - formam o grupo de filmes sobre samurais. Todos eles são obras reflexivas que  transmitem profundas lições de ética e sabedoria.

* Em Céu e Inferno”, um pai tem de defender seu filho pequeno em condições dramáticas. O fato de que ele não abandona a ética faz com que passe a ver a vida com outros olhos.  

* “O Escândalo” discute a manipulação da opinião pública por parte de uma imprensa irresponsável. 

* “Rashomon foi um grande sucesso em seu tempo, e pode ser descrito como profundo, mas talvez não mereça ser considerado um dos melhores filmes de Kurosawa. 

* Em “Cão Danado”, um jovem detetive da polícia civil aprende muito mais do que o método correto para investigar um pequeno delito.

* “Duelo Silencioso” é a história de um médico que deve fazer um supremo sacrifício para seguir fiel a seu juramento de defender a vida - e para proteger a mulher que ama.

* Em “O Anjo Embriagado”, um médico que sofre de dependência alcoólica enfrenta com bravura o crime organizado,  e pretende permanecer leal até o fim à sua consciência e ao ideal da sua profissão.

* “Juventude Sem Arrependimento” é a história de jovens militantes com ideias progressistas. 

* “Um Domingo Maravilhoso” descreve um dia de lazer de um jovem casal pobre, durante o Japão do pós-guerra. 

* “Anatomia do Medo” conta o drama de um empresário rico e chefe de família que, durante a guerra fria, é tomado pelo medo de uma guerra nuclear e deseja emigrar para o Brasil.  

* Em “A Mais Bela”, Kurosawa conta uma história de sacrifício e solidariedade humana em tempos de guerra.

* “Donzoko” descreve a vida dos mais pobres e miseráveis, e pode ser descrito como um estudo sobre o sofrimento humano. 

Dodes’ka-den, Fora do Comum  

O  filme  “Dodes’Ka-den (“O Caminho da Vida”) é  estranho, não-linear, fora do comum. Com seus personagens  pobres, ingênuos e profundos,  constitui  um poema visual sobre o estado humano do ser. No contexto de uma viva  compaixão universal, este filme de 1970 mostra um painel poético-realista de seres  do povo, cada um com seu mundo próprio de sonhos e seu universo particular.  O filme é uma metáfora da vida humana, em que cada um vive a atmosfera sonhadora da  sua própria aura.

De fato, em geral, o que é realidade para um ser humano é sonho para o outro. Este sonha com um emprego melhor,  aquele outro com a loteria esportiva. O cético “materialista” coloca toda a sua fé na ilusão material, assim como o espiritualista vive o seu sonho, que nem sempre é muito sensato. O mesmo fazem o torcedor de futebol,  o ativista político, o pássaro livre e o cachorro doméstico.  Cada ser vive os seus sonhos, tanto durante o estado de vigília quanto durante o sono propriamente dito.

O idealismo universalista da doutrina teosófica é como um sonho superior no qual, paradoxalmente, adquirimos consciência do estado de sonho em que estamos. É neste sentido que a ciência teosófica ou esotérica é objetiva: porque, através dela, podemos adquirir consciência do sonho em que vive a nossa humanidade, e no qual nós mesmos estamos incluídos.

Neste grande Sonhar coletivo que se chama de Realidade, há níveis e níveis. E quando alguém decide buscar o estado de Plena Atenção e deixar de lado as inúmeras camadas de ilusão, a cada passo adiante ocorrem pressões para que seja dado um passo atrás.

Após ver “Dodes’Ka-den”, um estudante de teosofia  pode ter uma visão mais nítida e uma aceitação mais humana da ilusão em que vivem imersas as pessoas supostamente objetivas que pensam somente nos seus “problemas pessoais” e suas “metas individuais”. O sonho da suposta objetividade nem sempre é realista, porque costuma ignorar as grandes questões da vida, que são inevitáveis.  

O silêncio meditativo é uma prática que leva a parar o sonho. Na ausência de ruído mental ou emocional, tomamos um caminho do meio entre o sonho e a vigília e  alcançamos algo da verdadeira contemplação. Durante este processo, descobrimos, no plano livre e abstrato da mente, algo muito mais objetivo do que os sonhos materialistas ou de ordem pessoal.

A Utopia da Aldeia Sem Nome  

Sonhos” (de 1990) é uma das obras mais otimistas e mais famosas de Kurosawa e um filme que faz pensar.  Trata-se de uma coleção de contos,  ou poemas orientais em forma visual. Todos os episódios de “Sonhos” são excelentes. Vale a pena olhar um ou dois e fazer uma pausa,  para que a visão de um episódio não apague demasiado rapidamente a impressão causada pelo anterior. E é recomendável olhar mais de uma vez o filme.  

Os contos de “Sonhos”  têm uma dimensão iniciática, e o último deles pinta a Utopia de Kurosawa. 

Um personagem do final do século vinte, caminhando com uma mochila às costas, chega a uma aldeia ideal, um pequeno paraíso ecológico situado fora da geografia conhecida. 

O visitante senta para conversar com um velho habitante da vila, já com 103 anos de idade.  O ancião faz uma crítica extremamente lúcida da sociedade industrial. Ele mostra a ausência de significado no “progresso” materialista e sem alma.  Ele formula uma proposta tão simples como clara e profunda para a civilização do futuro. Ele faz uma exaltação sem igual do amor à vida como algo que transcende a forma, mas que, por isso mesmo, sabe respeitar a forma. O velho fala com poucas palavras de um amor universal e sem limites que é maior que a vida física, mas que ao mesmo tempo tira  o melhor proveito da vida e conhece bem o seu imenso valor. 

Os habitantes da Aldeia vivem todos com saúde,  até uma idade avançada. E quando morrem, os funerais são felizes celebrações da vida que se completou. Em meio ao paraíso ecológico, o visitante conversa com o velho sábio:  

“Qual é o nome desta vila?”

“Não tem nome”, é a resposta. “Nós a chamamos apenas de ‘A Vila’. Algumas pessoas a chamam de ‘Vila dos Moinhos’.”

Aqui Kurosawa faz uma dupla alusão. Uma vila sem nome é uma utopia, um não-lugar, o lugar ideal.  Mas esta vila sem nome também pode ser chamada de Vila dos Moinhos, ou Vila das Rodas D’Água.  Esta é a imagem simbólica da Roda da Vida, o Samsara budista, que, sendo um moinho, mói incessantemente a ignorância humana e a transforma o tempo todo em lições de sabedoria, em alimento espiritual.   

O visitante pergunta: “Não há eletricidade aqui?”

“Não é necessário”, responde o velho. “As pessoas ficam muito habituadas à comodidade. Elas pensam que a comodidade é melhor. Elas jogam fora o que é verdadeiramente bom.”

“Mas e a iluminação?”

“Nós temos velas e óleo de linhaça”.

“Mas a noite é muito escura”.

“Sim. E isso é  natural. Por que haveria a noite de ser tão clara quanto o dia? Eu não gostaria de noites claras, pois não conseguiria ver as estrelas.”

“Vocês têm arrozais. Não usam tratores para cultivá-los?”

“Não precisamos disso. Temos cavalos e vacas.”

“O que usam como combustível?”

“Lenha, principalmente. Nós não nos sentimos bem derrubando árvores. Bastam aquelas que caem por si mesmas. Nós as cortamos e as usamos como lenha. E se você fizer carvão a partir da lenha, algumas poucas árvores lhe darão tanto calor quanto uma floresta inteira. Sim, e esterco de vaca dá também um bom combustível. Tentamos viver da maneira como o homem vivia antes. Esse é o caminho natural da vida. As pessoas hoje esqueceram; mas elas são na verdade apenas uma parte da natureza. No entanto, elas destroem o meio ambiente, do qual a nossa vida depende. Elas sempre pensam que conseguem fazer algo melhor. Especialmente os cientistas. Eles podem ser espertos, mas a maior parte deles não compreende o coração da natureza. Só inventam coisas que no final tornam as pessoas mais infelizes. No entanto, ficam muito orgulhosos de suas invenções. O pior é que as pessoas também se orgulham. Elas as veem como se fossem milagres. Idolatram-nas. As pessoas não sabem, mas estão perdendo a natureza. Elas não veem que caminham para a destruição. As coisas mais importantes para os seres humanos são ar limpo, água limpa, as árvores e vegetação. Tudo isso está sendo sujado e poluído para sempre. Ar sujo, água suja. Estão sujando os corações dos homens.”

Além do filme “Sonhos”, o  tema da utopia comunitária está presente  naquele que é provavelmente o mais famoso dos filmes de Kurosawa - “Os Sete Samurais”.  Nesta obra,  o diretor conta a história de um pequeno número de guerreiros que decidem ajudar os moradores de uma aldeia pobre a se defenderem de grupos de bandidos armados.  

A presença do sábio, a possibilidade da paz, a vivência da compaixão universal e os dramas shakespeareanos sobre traição e lealdade e a influência budista são marcas registradas de muitos filmes do pensador japonês. Cada obra de cinema era para ele um novo desafio, e raramente era fácil. Em seu livro autobiográfico, ele conta:

“Sempre, em determinado ponto, ao escrever meus roteiros, sinto vontade de desistir de tudo. Com minhas várias experiências, no entanto, aprendi uma coisa: se encaro com firmeza esse vazio e desespero, adotando a tática de Bodhidharma, o fundador do budismo Zen, que olhou fixamente o muro existente em seu caminho até que suas pernas se tornassem inúteis -, um caminho se abrirá.” [1]

Essa mesma experiência de Kurosawa é válida para muitas situações na vida.  

NOTA:

[1] “Relato Autobiográfico”, Akira Kurosawa, Editora Estação Liberdade, SP,  terceira edição, 1993, 293 pp., ver p. 230.

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Em setembro de 2016, depois de cuidadosa análise da situação do movimento esotérico internacional, um grupo de estudantes decidiu formar a Loja Independente de Teosofistas, que tem como uma das suas prioridades a construção de um futuro melhor nas diversas dimensões da vida.

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