7 de junho de 2022

Orwell e o Movimento Teosófico

Messianismo, Duplipensar e
Fraudes no Movimento Esotérico 
 
Carlos Cardoso Aveline 
 
George Orwell (1903-1950)
 
 
 
É muito natural o desejo de alguém de concordar com as ideias dos outros e de estar em harmonia com os seus colegas. A atitude é sempre útil para quem quer ser aceito em um grupo. Em alguns casos, inclusive, concordar com tudo o que acontece no grupo parece ser necessário até para evitar represálias.  
 
Em grupos e em nações, chegar a um consenso reduz a liberdade individual em troca de um reforço na cooperação, na segurança e na eficiência. O processo é amplamente saudável, enquanto o altruísmo está presente, e na medida em que a mentalidade coletiva preserva um respeito fundamental pela verdade e pela diversidade de pontos de vista. Quando a raiva e o medo predominam, porém, pode surgir a uniformidade obrigatória de pensamento e ficam estabelecidos com frequência os consensos artificiais e autoritários.  
  
“A Verdade é a primeira vítima da guerra”, diz o ditado popular. E as lutas políticas exageradas produzem o mesmo resultado que a guerra.
 
Deste modo o pensamento autêntico é deixado de lado: parecer politicamente correto fica sendo mais importante do que ser sincero. A liderança política se torna sinônimo de dominação mental. No contexto das guerras militares ou psicológicas a fabricação de bodes expiatórios é necessária. As pessoas usam a expressão sistemática de raiva contra alguém ou contra alguma figura de adversário para evitar os sintomas da sua própria ansiedade crônica e da sua negatividade constante. Em seu profético romance intitulado “1984”, George Orwell chamou este processo de “duplipensar”.
 
Igrejas e Universidades

A verdade e o erro coexistem inevitavelmente na mente humana. No entanto, a falsidade deliberada pode e deve ser rejeitada.

A doença dos pensamentos falsos ou “duplipensar” é tanto interna quanto externa, e igualmente individual e coletiva.
 
É sobre a base fundamental do autoengano que ocorrem as ilusões coletivas. O movimento teosófico sofre da mesma enfermidade. O problema ocorre na maior parte das igrejas, das universidades, dos círculos científicos, e na opinião pública.
 
Os teosofistas e todas as pessoas de boa vontade devem olhar com atenção para o fenômeno. Helena Blavatsky, que fundou em 1875 o movimento esotérico moderno, alertou para o perigo do hipnotismo coletivo. Ela escreveu sobre a necessidade de pensamento independente, quando se aborda questões filosóficas:
 
“…Uma vez que um estudante abandona o velho e desgastado caminho da rotina e entra no caminho solitário do pensamento independente - em direção à divindade - ele é um teosofista. É um pensador original, um buscador da verdade eterna e que possui ‘uma inspiração própria’ para resolver os problemas universais. A teosofia é aliada de todo aquele que busca seriamente, da sua própria maneira, obter um conhecimento do Princípio Divino, da relação do homem com este Princípio e das manifestações deste Princípio na natureza.” [1]
 
Pouco depois da morte de Blavatsky, ocorrida em 1891, a maior parte dos teosofistas abandonou a proposta original do movimento teosófico. Sem grande interesse nos ensinamentos éticos e clássicos da filosofia esotérica, os principais líderes priorizaram então o aspecto meramente formal e ritualístico das coisas, deixando de lado o conteúdo. O movimento ficou parecido com uma igreja.
 
Em seu livro de 1936 “Is This Theosophy?” (“Será Isso Teosofia?”), Ernest Wood descreveu o momento em que viu a ideia de liberdade de pensamento tornar-se uma mera fachada na Sociedade de Adyar, a mais numerosa das associações teosóficas. A liberdade era agora um slogan vazio debaixo do qual todos tinham que obedecer e seguir as normas da crença cega, como na igreja católica romana.
 
Wood, teosofista experiente, havia sido secretário internacional da sociedade de Adyar durante muitos anos, e dava palestras ao redor do mundo.
 
Ele confessou:
 
“À medida que a nova tendência ganhava força no movimento teosófico, ela me desagradava cada vez mais. Meu objetivo tinha sido o tempo todo separar o ouro da areia preta, mas agora parecia que o minério sem valor ganhava mais presença e o ouro ficava mais raro.”
 
Wood acrescenta:
 
“Teoricamente havia liberdade de pensamento e opinião, e a Sociedade era uma corporação que buscava a verdade, e a nossa busca da verdade devia ser feita como uma coletividade fraterna, sem distinção de raça, credo ou cor. Neste espírito devíamos estudar e investigar buscando promover o conhecimento da verdade, especialmente sobre o ser humano, a sua relação com o seu meio ambiente e o seu destino. Mas na prática havia mais que uma tendência de dar posições de destaque ao crente e empurrar para longe o crítico ou o pensador independente. Em vez de sujeitar todas as doutrinas a uma pesquisa feita em cooperação, dizia-se: ‘Você deve respeitar a fé dos seus colegas’.”
 
Foi durante a década de 1920 que esta “ditadura fraternal” chegou ao auge. Wood prossegue:
 
“Em 1925 as preces de todas as religiões materialmente poderosas foram introduzidas na plataforma oficial da Sociedade Teosófica, e o movimento degenerou definitivamente na direção de uma fraternidade de crenças. A crítica a ideias de outras pessoas tornou-se ‘antifraterna’! E além disso, criticar ‘estragava o trabalho’, e o trabalho era em grande parte uma transmissão de bênçãos e energias por parte daqueles que eram admitidos nos sistemas de acesso organizado a este tipo de coisa. Era com base nisso que os cargos eram distribuídos, e com base nisso eram mandados os convites a líderes para presidirem e darem palestras nos encontros da Sociedade em praticamente todos os lugares ao redor do mundo. (…)”. [2]
 
Doze anos antes da publicação de “1984”, Ernest Wood antecipou - sem saber - o falso “duplipensar” de George Orwell, que via acontecer no movimento esotérico.  
 
Ele explica a ambivalência deliberada e os padrões paralelos usados pelos servidores do poder central:
 
“O Bispo [Charles] Leadbeater e os seus agentes tinham grande destaque quando entrava em ação a fraqueza teosófica de querer duas coisas contraditórias ao mesmo tempo, embora isso fosse bastante ilógico. A Sociedade precisava estar livre de qualquer dogma, e no entanto os seus conselhos e as suas plataformas de palestras públicas deviam ser dominados por aqueles que estivessem decididos a promover certas crenças, certas lideranças e determinados objetivos, e os membros que se opusessem deviam ser mantidos afastados.”
 
Com esta técnica de dominação mental coletiva baseada em “dizer duas coisas opostas ao mesmo tempo”, Annie Besant e Charles Leadbeater foram precursores da ordem política baseada em dominação mental que surgiu nas décadas de 1920 e 1930.
 
Como foi possível uma coisa destas?
 
Um Número Limitado de Justos
 
“Assim no céu como na Terra”, afirma o axioma filosófico.  
 
A história humana se desenvolve simultaneamente em vários níveis de consciência, e os fatos interiores são as causas principais dos acontecimentos externos. Aquilo que acontece nos reinos superiores de consciência tende a ocorrer também nos níveis inferiores. A civilização é sustentada por um número limitado de Seres Justos e Sábios, diz a tradição judaica. Se estes Poucos ou os seus discípulos fracassarem, o mundo inteiro fracassará.
 
Obedecendo a boas intenções distorcidas por vaidade pessoal e orgulho, Annie Besant anunciou ingenuamente ao mundo que o próprio Senhor Cristo voltaria em breve para viver entre os seres humanos, em um evento coordenado por ela própria[3], e a volta do Cristo ocorreria junto com o surgimento de um grande “líder e estadista” mundial, que seria acatado supostamente por todos os povos.  
 
Oradora eloquente, mulher carismática, Annie Besant tornou-se todo-poderosa em círculos esotéricos. Vários pseudoclarividentes forneceram a ela grande quantidade de fantasias sobre o imaginário acontecimento messiânico.
 
Todos os fatores da vida estão interligados, e ao espalhar a sua variante oficial de pensamento distorcido pelo desejo - entre dezenas de milhares de mentes místicas e almas idealistas -, a sra. Besant inconscientemente preparou o caminho para uma política mais ampla de dominação mental e propaganda hipnótica, dominada por líderes carismáticos supostamente infalíveis.
 
O teatro messiânico da pseudoteosofia besantiana começou em torno de 1910. Desdobrou-se então um vasto fracasso espiritual coletivo, através da combinação de falso messianismo com apego cego a meros rituais. Isso ocorreu exatamente ali onde antes havia um ensinamento autêntico, de verdadeiros Raja-Iogues. A partir de então, não foi necessário muito tempo para que as ilusões pseudoesotéricas chegassem ao plano da realidade sociológica. Quando o falso “avatar” de Besant fracassou, a fantasia distorcida permaneceu no ar.
 
Em breve Adolf Hitler tornou-se um ditador “infalível” na Alemanha. Benito Mussolini surgiu na Itália, e Josef Stálin na Rússia. Os três líderes carismáticos usaram modos autoritários de pensamento em grande parte semelhantes. Impuseram uma uniformidade de pensamento e de linguagem que era controlada pelo estado, com apoio de uma intensa propaganda. Eram usados os processos chamados por Orwell de “duplipensar” e de “novilíngua”. Surgiram os “crimes de pensamento”.
 
Um certo padrão mental foi compartilhado pelos três ditadores e por outros ditadores de menos importância internacional. Um aspecto básico do que há de comum entre tais dirigentes está no fato de que se apresentavam como “quase sobre-humanos” e infalíveis.  
 
A partir dos anos 1930, Adolf Hitler e Josef Stálin, dois falsos messias, oprimiram nações e lutaram pelo poder em escala planetária enquanto usavam formas grotescas de dominação mental.
 
Orwell define o “duplipensar” como o processo de doutrinação através do qual um indivíduo passa a adotar como verdadeiras ideias que são evidentemente absurdas, e adere a duas ideias mutuamente excludentes. Este é o mesmo processo descrito por Ernest Wood. No duplipensar, os slogans substituem os pensamentos originais. Orwell afirma:
 
“Escrever sobre política nos tempos atuais consiste quase inteiramente de frases pré-fabricadas e emendadas como as peças de um jogo de montar feito para crianças. É o resultado inevitável da autocensura.” [4]
 
Os Argumentos Contra a Liberdade
 
Em um dos seus textos sobre liberdade de pensamento, Orwell escreveu:
 
“A liberdade de pensamento e a liberdade jornalística são normalmente atacadas com argumentos que nem merecem uma discussão. Qualquer um que tenha experiência em matéria de dar palestras e debater conhece tais argumentos de memória. Aqui não estou lidando com a alegação familiar de que a liberdade é uma ilusão, nem com o argumento de que há mais liberdade nos países totalitários do que nos democráticos. Estou lidando com a proposição muito mais defensável e perigosa de que a liberdade é indesejável e a honestidade intelectual é uma forma de egoísmo antissocial.”
 
Pensar por si mesmo pode ser visto como uma atitude egoísta e como uma forma de boicotar as metas comuns. O argumento é usado com frequência em todos os grupos sociais, inclusive o movimento teosófico.
 
Orwell prossegue:  
 
“Os inimigos da liberdade intelectual tratam sempre de argumentar que estão defendendo a disciplina contra o individualismo. A questão da verdade-contra-a-falsidade é mantida fora da agenda, tanto quanto possível. Embora o ponto enfatizado possa variar, o redator ou pensador que se recusa a vender suas opiniões é sempre rotulado como um mero egoísta. Ele é acusado seja de querer fechar-se numa torre de marfim, ou de fazer uma propaganda exibicionista da sua própria personalidade, ou de se resistir ao curso inevitável da história enquanto tenta agarrar-se a privilégios injustificados. O católico e o comunista são parecidos ao suporem que um adversário não pode ser ao mesmo tempo honesto e inteligente.” [5]
 
A partir disso, o indivíduo começa a pensar que é seu dever esconder os fatos desagradáveis. Só as ideias mais convenientes devem ser mencionadas, mesmo que elas às vezes sejam falsas:
 
“O argumento de que dizer a verdade seria ‘inoportuno’ ou iria ‘fazer o jogo’ deste ou daquele é visto como irrespondível…” [6]
 
No entanto, a negação de realidades bem conhecidas e a imposição de um pensamento artificial são apenas sintomas do verdadeiro processo:  
 
“Mais do que prometer uma era de fé, o totalitarismo (…) promete uma era de esquizofrenia. Uma sociedade se torna totalitária quando a sua estrutura passa a ser flagrantemente artificial: isto é, quando a sua classe governante perdeu a sua função mas consegue manter-se no poder pela força, ou pela fraude. Uma sociedade assim, dure muito ou dure pouco, nunca pode dar-se ao luxo de ser tolerante, nem intelectualmente estável. (…) Ela não pode permitir nem o registro verdadeiro dos fatos nem a sinceridade emocional - duas exigências da criação literária.” [7]
 
Formas adocicadas de chantagem permitem manipular as melhores esperanças de cidadãos de boa vontade para que alguns obtenham metas terrestres como poder pessoal. 
 
Por outro lado, o fenômeno da hipnose coletiva foi diagnosticado por Orwell na década de 1940:
 
“No que se refere às massas populares, as mudanças extraordinárias da opinião pública que ocorrem hoje em dia, com emoções que podem ser ligadas e desligadas como se dependessem de uma torneira que se abre e fecha, são resultado da hipnose do jornal e do rádio. Na classe intelectualizada, eu devo dizer que elas resultam principalmente do dinheiro e da simples busca de segurança física. (…) Acredita-se ou não se acredita em denúncias de atrocidades conforme as predileções políticas de cada um. Todos acreditam nas atrocidades [ou nos erros, C.C.A.] do inimigo, e duvidam das atrocidades cometidas pelo seu próprio lado, sem querer examinar provas em nenhum dos casos.” [8]
 
O mesmo método de controle político é usado em mais de uma organização mística ou esotérica, em grupos religiosos convencionais e na política nacional e internacional. No entanto, sistemas artificiais de liderança, baseados em técnicas de controle mental coletivo, não têm alicerce firme e raramente duram muito.
 
Ensinando pelo Exemplo
 
Para construir um futuro saudável, as pessoas que pensam com independência devem desmascarar, discutir, compreender  completamente e abandonar  os métodos  manipuladores de  liderança social.[9] 
 
Ensinar sinceridade pelo exemplo, como fez Orwell, é uma boa ideia.
 
O privilégio dos cidadãos honestos consiste em usar a razão e dizer o que pensam. Fingir que se é infalível constitui uma fraude, mesmo que se dê a este fingimento uma aparência religiosa. Aprender com a observação dos nossos erros, individuais e coletivos, é inevitável. Ninguém é perfeitamente coerente. Todos cometem erros, e será mais fácil corrigir as nossas falhas se nós pararmos de ver toda e qualquer crítica como um ataque inaceitável. O ansioso policiamento dos pensamentos e das palavras dos outros é inútil. 
 
Orwell escreveu:
 
“Nenhum discurso indignado contra o ‘individualismo’ ou a ‘torre de marfim’, nenhum lugar-comum piedoso afirmando que ‘a verdadeira individualidade só se obtém através da identificação com a comunidade’ pode superar o fato de que uma mente que se vende é uma mente distorcida. A menos que a espontaneidade seja em algum momento permitida, a criação literária é impossível, e o próprio idioma fica ossificado.” [10]
 
O bom senso recomenda abandonar as chantagens emocionais que proíbem o pensamento independente. As falsidades bem-intencionadas são piores que inúteis. Uma verdade feia é muito melhor do que uma falsidade bonita, mas todo diálogo honesto produz bênçãos.
 
NOTAS:
 
[1] Do artigo “O Que é um Teosofista?”, de Helena P. Blavatsky.
 
[2] “Is This Theosophy?”, de Ernest Egerton Wood, London: Rider & Co., Paternoster House, E.C., 1936, 318 pp., edição fac-similar de Kessinger Publishing, LLC, Kila, MT, EUA, pp. 300-301.
 
[3] Veja “Fabricando um Avatar” e “O Movimento Teosófico, 1875-2075”.
 
[4] “Essays”, George Orwell, Penguin Books, UK, ano 2000, 466 pp., ver p. 335. Texto “The Prevention of Literature”.
 
[5] “The Prevention of Literature”, no livro “Essays”, de George Orwell, Penguin Books, UK, 466 pp., ver p. 330.
 
[6] “Essays”, George Orwell, Penguin Books, p. 332.
 
[7] “Essays”, George Orwell, Penguin Books, p. 336.
 
[8] “Looking Back on the Spanish War”, no livro “Essays”, George Orwell, Penguin Books, p. 218.
 
[9] Em relação à comunidade teosófica, veja por exemplo “O Racismo em Nome da Teosofia”, “Besant Anuncia Que é Mahatma”, “Bispo Católico Visita Plantações em Marte” e “A Fraude da Escola Esotérica”. Erros graves como estes não anulam os aspectos positivos da Sociedade de Adyar. A vida é contraditória: a Sociedade conseguiu alguns acertos significativos e tem sido útil à humanidade. Mas examine também os fatos documentados no texto “Leadbeater Diz Que Matou Brasileiros”.
 
[10] “The Prevention of Literature”, em “Essays”, de George Orwell, Penguin Books, p. 340.
 
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Orwell e o Movimento Teosófico” foi publicado nos websites associados dia 07 de junho de 2022. Uma versão anterior do artigo faz parte da edição de janeiro de 2021 de “O Teosofista”. O texto está publicado também em inglês, sob o título “A Few Lessons from George Orwell”, e pode ser lido no blogue teosófico em “The Times of Israel”.  
 
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Leia mais:
 
* A Palavra Correta.

* As Palavras Verdadeiras.
 
* A Palavra e o Pensamento.
 
* Orwell e o Poder do Altruísmo.
 
* A Teosofia e a Segunda Guerra Mundial.
 
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Sobre verdades e falsidades no movimento teosófico, leia “Correspondência Com Joy Mills”.
 
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Helena Blavatsky (foto) escreveu estas palavras: “Antes de desejar, faça por merecer”. 
 
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