A Arte de Perceber a Unidade na Diversidade
Carlos Cardoso Aveline
Carlos Cardoso Aveline

Tal como a teosofia, a filosofia
milenar da Ioga acelera o processo natural de autoaperfeiçoamento do ser
humano. Ela não é um dogma, mas uma ciência experimental. Embora seus
conhecimentos tenham sido pacientemente acumulados ao longo de eras quase
insondáveis, ela não oferece um único prato feito, e sim um leque de opções
práticas. Seus conhecimentos podem ser testados e verificados por qualquer
aprendiz ou cidadão curioso.
Ela ensina
que o indivíduo é capaz de unificar em sua vida o mundo divino ao mundo humano,
e também indica como isso pode ser feito.
A filosofia
da ioga tem profundidades oceânicas. Porém, todo mar profundo possui praias
onde uma criança pode banhar-se sem perigo [1].
Do mesmo modo, a sabedoria infinita pode ser experimentada em doses
homeopáticas. Trinta anos de dedicação intensa à ioga não são suficientes para
alcançar toda sua profundidade, mas bastam cinco minutos de respiração profunda
para mostrar a qualquer cidadão a eficiência da ioga na produção de paz interior.
Seu conhecimento é prático e útil independentemente da religião, da filosofia, da
classe social ou ideologia política de um indivíduo.
Há
vários tipos de ioga, e cada um deles é adequado para um temperamento humano.
Conforme sua experiência interior e sua preferência pessoal, o caminhante aplica
em sua vida o que encontra de mais interessante nas diversas iogas.
1) Um
homem de ação, preso ao mundo externo por intensos compromissos profissionais
ou familiares, pode colocar em prática os princípios da Carma Ioga e trilhar o caminho do cumprimento do dever, que lhe
ensinará a agir corretamente sem esperar alguma coisa em troca no plano pessoal.
Deixando de buscar ganhos de curto prazo, ele irá eliminando de si mesmo os
mecanismos da autoilusão, e verá que toda boa ação produz resultados a seu devido
tempo.
2) O
indivíduo com inclinação meditativa e filosófica pode praticar Jnana Ioga, o caminho do estudo e da contemplação
das verdades universais. Entre as ferramentas de trabalho de Jnana ioga estão o
estudo do cosmo e a reflexão sobre as leis universais. O indivíduo estudará os
aspectos filosóficos da astronomia, meditará na origem e no destino do universo,
investigará a natureza da alma eterna, entrará em comunhão com as inteligências
divinas. Perceberá que ele próprio é um minúsculo resumo do universo,
despertará em si a consciência do Todo - e alcançará a libertação. A obra “A
Doutrina Secreta”, de H. P. Blavatsky, opera no território de Jnana Ioga.
3) Para
alguns, é necessário começar o caminho espiritual conhecendo e controlando sua
própria mente. O autoconhecimento e o autodomínio são temas centrais para a Raja Ioga, que constitui um ponto de
encontro natural para as diversas formas de ioga. A Raja ioga também inclui a
prática de alguns ásanas, as posturas físicas, a “ginástica imóvel”. No caso da
Hatha Ioga, a ginástica física é vista como a única prioridade, porque sua meta
típica é controlar apenas o corpo. Tradicionalmente, a Hatha ioga é vista como
oposta à verdadeira ioga. Na verdade, a prática moderada de alguns ásanas faz
parte da Raja ioga.
4) Outra
opção não-excludente é Bhakti Ioga,
o aprendizado pelo amor devocional, a arte de sentir respeito pelo que é
sagrado e de querer o bem dos outros seres. Para muitos, essa via de contato
com o sagrado vem em primeiro lugar. Como toda ioga autêntica, Bhakti inclui a
arte de esquecer de si mesmo e alcançar a libertação, mas neste caso isso
ocorre através do amor ao mundo divino. Um aprendiz de Bhakti ioga não tem que
acreditar cegamente nisso ou naquilo. Não adora de modo servil essa ou aquela
figura. Nem faz complicados rituais visando obter favores de “Deus”. Para ele,
o poder do amor é uma força concreta que deve ser purificada. Deve ser focada
no que é mais elevado, e usada para o bem. Além disso, quando usada de modo
correto, a energia do amor anda junto com doses adequadas de rigor, severidade
e disciplina.
A
teosofia integra elementos de diferentes iogas, e mostra que os seus
aprendizados estão todos unidos entre si. O aprendiz necessita de um corpo
saudável e disciplinado. Ele também necessita de autoconhecimento e
autocontrole, de uma visão ampla e adequada do universo, e de sabedoria para
agir corretamente. Tudo isso, porém, seria inútil se ele não fosse capaz de
amar a vida do universo.
A ioga
da devoção ensina que quando estamos em contato intenso com nossa alma imortal queremos
o bem de todos os seres, e nisso não há apego. O apego é o oposto do amor. O
amor autêntico consiste em querer o bem de outros seres de modo duradouro e
como meta válida em si mesma, independentemente de quaisquer benefícios
pessoais.
A
energia da devoção é tão antiga quanto o ser humano, e está presente em todas
as religiões. Do ponto de vista convencional, porém, um devoto - seja ele hindu,
muçulmano ou cristão - é alguém que ama o Deus da sua religião. Ele venera um
santo ou estuda uma escritura sagrada. Esse nível inicial de Bhakti traz
consigo um perigo: se não houver uma visão universal da vida, a devoção a uma
religião particular irá inspirar desprezo ou até ódio pelas outras religiões e
filosofias.
Durante
milênios, essa tem sido uma armadilha mortal. Enganados por falsas devoções, muçulmanos
e cristãos têm odiado e matado judeus em nome de Deus. Cristãos protestantes
massacraram e foram massacrados por católicos, em nome de Jesus Cristo. Durante
séculos, o Vaticano promoveu, através da Inquisição, a tortura e o massacre de
milhares de pessoas, em nome do Mestre do Amor. Tradicionalmente, hindus e
muçulmanos praticaram o assassinato recíproco para maior glória de Brahma e Alá.
Prevenindo
o fanatismo provocado por devoções equivocadas, a Jnana Ioga e todas as
filosofias autênticas ensinam a ver o processo humano de evolução como uma realidade
planetária e universal integrada, cujo único inimigo é a ignorância espiritual,
da qual ninguém está inteiramente livre. A Raja Ioga, por sua vez, mostra que o
caminho espiritual verdadeiro consiste em melhorar a si mesmo e dar aos outros tempo
para que aprendam a sabedoria por si mesmos e à sua própria maneira. Ajudar os
outros é algo que só pode ser feito quando se respeita a autonomia fundamental
de cada um.
A verdadeira
Bhakti Ioga se baseia na devoção por aquilo que é sagrado para nós, mas é
inseparável do respeito por todos os seres, sem exclusões. E esse respeito brota
do fato de que percebemos, em cada um deles, algo da alma de todo o universo. A
sabedoria universal está em combinar adequadamente os princípios e os preceitos
das diferentes iogas e campos de conhecimento, de modo a despertar o potencial
divino do indivíduo.
Para obter
uma compreensão correta de Bhakti Ioga é indispensável lembrar que o sentimento
de reverência é um estado de alma. O respeito pelo que é sagrado é uma luz que
se abre em todas as direções, e não um sentimento exclusivo por um único objeto
externo de adoração. A devoção
significa uma dedicação a um ideal, a algo que prezamos e consideramos imensamente
maior do que nós. E esse sentimento é universal. Todo ser humano ativo é
devotado a alguma coisa. O cético ou o ateu pode ser, durante muito tempo,
sinceramente devotado à sua empresa, à sua profissão, sua família, ou mesmo à
busca de poder e dinheiro. O dólar pode ser um deus ao qual se sacrificam
honestamente muitas coisas. Outros cidadãos desenvolvem um sentimento de
devoção por ideais de justiça social, de preservação do meio ambiente ou talvez
de ética na política.
Assim, a
devoção está dissolvida em nossa vida cotidiana. Poucos são os que nada realizam
na vida com dedicação e desprendimento sinceros. Os pais sentem devoção pelos
filhos. Os filhos sentem admiração pelos pais. No casal, cada um sente profunda
devoção pelo outro. A amizade pode ser um sentimento sagrado. Os amigos leais têm
devoção uns pelos outros. E quanto à natureza? Separe cinco minutos para olhar
o céu ao final do dia. Verifique se a visão de um belo pôr-do-sol não desperta
em você a emoção do sagrado, e se não surge uma gratidão por estar vivo nesse pequeno
planeta. Os cachorros, nossos irmãos mais novos, têm uma certa adoração por seus
donos. Confira, quando puder, a energia que ilumina os olhos do seu melhor
amigo.
Se a
devoção é a reverência do pequeno pelo grande, a compaixão é a solidariedade do
grande pelo pequeno. E os dois sentimentos andam juntos. O grande sábio sente
devoção pelo ideal do progresso evolutivo dos seres menores. Muitos optam por uma
dedicação sagrada à causa da fraternidade humana sem fronteiras, e ela é
prioritária para a filosofia esotérica. O chamado “Compromisso de Kwan Yin” afirma:
“Jamais
irei buscar ou receberei uma salvação particular e individual; nunca entrarei
sozinho na paz final; mas sempre e em toda parte viverei e me esforçarei pela
libertação de cada criatura em todo o mundo”. [2]
A base
dos sentimentos solidários é a percepção da unidade interna daquilo que é
externamente diverso. A devoção é a atitude prática decorrente desta percepção.
A percepção da unidade na diversidade produz tanto um sentimento quanto uma
visão e uma compreensão. A devoção à causa da humanidade surge quando se
compreende a origem e o destino comum de todos os seres. Para explicar o que é
a fraternidade universal, Helena Blavatsky usou a imagem simbólica de uma árvore.
Em seu livro “A Chave da Teosofia” - estruturado em forma de diálogo entre um
pesquisador e um teosofista - ela escreveu:
“Teosofista:
(....) Uma planta consiste de uma raiz,
um caule, e muitos galhos e folhas. A humanidade, como um todo, é o caule que
cresce a partir da raiz espiritual, e o caule significa também a unidade da
planta. Quando se fere o caule, é óbvio que cada galho e cada folha irá sofrer.
O mesmo ocorre com a humanidade.”
“Pesquisador:
Sim, mas se você fere uma folha ou um galho, você não fere toda a planta.”
“Teosofista:
E por isso você pensa que, ao ferir um
homem, você não fere a humanidade? Mas como você
sabe? Você tem consciência de que, segundo até mesmo a ciência materialista,
qualquer ferimento em uma planta, mesmo leve, afetará toda a trajetória do seu
crescimento e do seu desenvolvimento futuros? Portanto, você está errado, e a
analogia é perfeita. Se, no entanto, você deixar de lado o fato de que um corte
em um dedo pode frequentemente fazer com que todo o corpo sofra, provocando
reações em todo o sistema nervoso, eu terei de lembrá-lo de que talvez haja
ainda outras leis espirituais, operando sobre as plantas, os animais e a
humanidade, embora, como você não reconhece a ação delas sobre as plantas e os
animais, você possa negar a sua existência.”
“Pesquisador:
A que leis você se refere?”
“Teosofista:
Nós as chamamos de leis cármicas, mas você não entenderá todo o significado da
expressão a menos que estude Ocultismo. No entanto, o meu argumento não se apoia
sobre a premissa destas leis, mas na analogia da planta. Expanda a ideia,
leve-a até uma aplicação universal, e você em breve descobrirá que, na
verdadeira filosofia, cada ação física tem o seu efeito moral e eterno. Se você
fere um homem causando-lhe um ferimento físico, você talvez pense que a dor e o
sofrimento dele não podem espalhar-se aos que lhe são próximos, e muito menos a
todos os homens das outras nações. Nós afirmamos que isso ocorrerá, no devido tempo. Portanto, dizemos nós, a menos que
cada ser humano seja levado a compreender como
uma verdade axiomática que ao prejudicar um homem nós prejudicamos não só a
nós próprios, mas a longo prazo também ao conjunto da humanidade, o sentimento
fraternal tal como foi ensinado pelos grandes reformadores, principalmente por
Buddha e Jesus, não será possível na terra.” [3]
Os
teosofistas são levados a agir no mundo por devoção à causa da humanidade. Eles
incorporam em suas vidas práticas não só a Jnana
Ioga da contemplação das verdades universais, mas a Raja Ioga do autoconhecimento e do autocontrole, a Carma Ioga do cumprimento do dever, e a Bhakti
Ioga da devoção interior pelo que é supremo.
Nenhum
sábio ou cientista encontrou na consciência humana algo mais forte ou duradouro
que o sentimento altruísta. Gerações de buscadores comprovaram: a felicidade
surge naturalmente à medida que aprendemos a amar de fato aquilo que merece ser
amado, porque transcende o pequeno eu inferior. Essa ideia básica foi inscrita
no próprio berço da civilização ocidental por Pitágoras de Samos - o primeiro
sábio a chamar a si mesmo de filósofo.
A palavra “filosofia” significa, precisamente, “amor à sabedoria”.
Conhecimento
e amor são, de fato, inseparáveis. Quando a verdade está colocada no plano
emocional, ela se chama amor. Quando o amor está colocado no plano
mental, ele se chama verdade. Os pensamentos e os sentimentos autênticos
não se separam uns dos outros. O estudante de filosofia esotérica compreende o
que é Bhakti Ioga quando reconhece a
presença da mesma devoção na essência de todos os afetos particulares.
A
energia divina dá um contexto mais amplo a cada uma das afeições. Para explicar
o mistério do amor universal, o “Brihadaranyaka Upanixade” do hinduísmo conta
uma história com palavras simples.
Certo
dia, na velha Índia, o sábio Yagnavalkia anuncia a sua esposa Maitreyi que irá
renunciar ao mundo. Ele avisa que passará a ela todas as suas propriedades
materiais, e viverá daquele dia em diante uma vida dedicada exclusivamente à meditação.
Maitreyi responde que se as posses não lhe darão imortalidade, ela tampouco
precisará delas. E pede a Yagnavalkia que lhe ensine o que sabe sobre a
sabedoria eterna.
Ele diz:
“Tens
sido muito querida para mim, Maitreyi, e agora me pedes para aprender a verdade
que está mais próxima do meu coração.”
“Vem,
senta-te ao meu lado. Medita sobre o que vou falar.”
“Não é
por causa do marido, minha amada, que o marido é querido, e sim por causa da
presença do Ser universal nele.”
“Não é
por causa da esposa, minha amada, que a esposa é querida, e sim por causa da
presença do Ser universal na esposa, que ela é querida.”
“Não é
por causa dos filhos, minha amada, que os filhos são queridos, mas é pela
presença do Ser universal nos filhos que eles são queridos.”
“Não é
por causa da riqueza que a riqueza é querida, minha amada, mas é pela presença
do Ser universal na riqueza, que ela é querida.”
“Não é
por causa das criaturas, minha amada, que as criaturas são queridas, mas é pela
presença do Ser universal nas criaturas, que elas são queridas.”
“Não é
por causa de si própria, minha amada, que qualquer coisa é estimada, mas é pela
presença do Ser universal nela, que alguma coisa pode ser estimada.” [4]
Tampouco
é por causa da sua pessoa externa que um mestre espiritual é amado, ou que cada
ser humano tem autoestima e autorrespeito. É por causa da presença do ser
universal no mestre espiritual e em cada indivíduo.
Quando o
amor ao mundo espiritual é profundo e verdadeiro, ele se irradia em direção a
todos os seres, e isso é devoção.
A Bhakti
mais elevada, que Swami Vivekananda chama de Para-Bhakti ou Devoção Suprema [5], é a prática do amor universal e
impessoal. O processo da devoção pode ter várias fontes de estímulo, entre elas
um ensinamento sagrado, um instrutor divino, o ambiente natural ou um ideal
elevado e humanitário.
Esta percepção
da unidade de tudo o que há está presente em todos os seres, embora nem sempre
esteja desperta, e frequentemente seja distorcida e transformada em sentimentos
de apego ou de rejeição - que são formas de sofrimento.
Nas
culturas tradicionais do Oriente, há mais consciência da unidade de todos os
seres. Na Índia, por exemplo, é comum as pessoas que se despedem
cumprimentarem-se unindo silenciosamente as palmas das mãos junto ao peito, e
fazendo uma breve e respeitosa inclinação da cabeça e do dorso.
O gesto é
famoso. Seu nome é “namastê”, e significa -
“A
consciência divina em mim saúda a consciência divina em você”.
NOTAS:
[1] A imagem é usada por William Q.
Judge no primeiro parágrafo do primeiro capítulo da sua obra “O Oceano da Teosofia”,
que está publicada em nossos websites associados.
[2] “Notes on the Bhagavad Gita”,
William Q. Judge and A Student Taught By Him, The Theosophy Company, Los
Angeles, California, 1986, 237 pp., ver p. 152.
[3] “The Key to Theosophy”, H.P.
Blavatsky, Theosophy Co., Los Angeles, 1987, 310 pp., ver pp. 46-47.
[4] “Os Upanishads, Sopro Vital do
Eterno”, versão de Swami Prabhavananda
e Frederick Manchester, Ed. Pensamento, SP, ver pp. 113 e 114. Faço a citação
levando em conta o original em inglês, edição de Mentor Books/Penguin, Londres.
[5] Veja a obra “Quatro Yogas de
Auto-Realização”, de Swami Vivekananda, Ed. Pensamento, SP, 156 pp.,
especialmente a parte terceira do texto sobre Bhakti, pp. 137-144.
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Uma versão inicial do texto acima
foi publicada na revista “Planeta”, de São Paulo, em agosto de 2003. O artigo foi
revisado e ampliado pelo autor em dezembro de 2009.
Sobre a missão do movimento
teosófico autêntico, que envolve o despertar da humanidade para a lei da
fraternidade universal, veja o livro “The
Fire and Light of Theosophical Literature”, de Carlos Cardoso Aveline.

A obra tem 255 páginas e foi
publicada em outubro de 2013 por “The
Aquarian Theosophist”. O volume pode ser comprado através de Amazon Books.
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