Um Diálogo Sobre a Lei da Vida
Carlos Cardoso Aveline
Carlos Cardoso Aveline
Estudante A:
Qual é a relação entre a lei do carma e a lei da
solidariedade?
Estudante B:
A relação nem sempre é fácil de ver. Mas é profunda e fundamental. Há uma
ilusão perigosa na ideia de que “se uma pessoa sofre, é porque ela merece”.
Esta crença leva à omissão de solidariedade e, em última instância, à
hipocrisia. A pessoa pode não merecer o sofrimento, e isso ocorre em grande
parte dos casos. Ainda quando ela o merece, é uma ingenuidade alguém que
observa o sofrimento pensar simplesmente que “o carma não é meu, portanto não tenho
nada com isso”. Um erro não justifica o outro, e a lei do carma não favorece o
egoísmo. De que maneira se deve ajudar o próximo, porém? Esta é uma questão
complexa. O mero sentimento de simpatia sincera pode ajudar muito. O melhor
modo de ser altruísta não é ajudar materialmente este ou aquele indivíduo, e
sim trabalhar pelo progresso espiritual da humanidade toda.
Deixemos isso de lado, por enquanto, e examinemos mais de perto a ideia
de que a injustiça
e o sofrimento são, frequentemente, imerecidos. Quero mencionar cinco exemplos
práticos a respeito.
1) Na valiosa lenda dos Evangelhos,
Jesus, evidentemente, não merecia ser
morto.
2) Nos últimos dois mil anos, a perseguição dos judeus
não foi merecida, e nada justifica o massacre promovido no século 20 pelo
nazi-fascismo.
3) O genocídio dos indígenas das três Américas nos
últimos 500 anos - embora abençoado pelo clero cristão - foi um crime contra a
humanidade, evidentemente imerecido e injustificável.
4) As crianças que morrem atualmente por falta de
recursos e de médicos nos hospitais públicos brasileiros não merecem a morte.
5) As vítimas inocentes das guerras e do terrorismo nos
últimos anos nada fizeram que justifique a violência contra elas.
A responsabilidade cármica por atos de injustiça não é
das vítimas, mas de quem comete as injustiças.
A valente defesa dos que são injustamente atacados
constitui um preceito central em filosofia e em teosofia.
Por algum motivo, a pseudoteosofia e um certo semiesoterismo
frequentemente esquecem deste fato. Esta grave distorção da lei do carma deve
ser apontada e esclarecida.
Estudante A:
Você está dizendo que os acontecimentos lamentáveis do
tempo presente não são uma consequência mecânica do passado. Eles têm uma
componente de carma novo, e a repetição cega do passado pode, e deve, ser
interrompida. Nada nos impede de criar a cada instante um presente e um futuro
melhores.
Estudante B:
Exatamente: existe uma coisa chamada carma novo.
Todo novo carma depende de quem age e não de quem sofre a
ação. Mas quem recebe a ação também age, ao decidir como receberá a ação do
outro. Para nós, é mais importante ver o presente como semente de futuro do que
fruto do passado. Interessa saber que decisões tomamos a cada momento.
Os Aforismos de Ioga de Patañjali ensinam que o mal que
ainda não ocorreu pode ser evitado.
A legislação brasileira estabelece que todo cidadão tem o
dever e o direito de interromper e impedir qualquer crime que esteja ocorrendo
perto de si. A legislação brasileira não diz em momento algum que a
responsabilidade cármica pelos atos de violência é das vítimas. Crimes não
devem ser fantasiosamente imaginados como “atos de justiça cármica”.
As “Cartas dos Mahatmas” mostram que tanto a natureza
como as pessoas cometem erros e injustiças, inclusive erros graves, que
serão dinamicamente corrigidos pela lei do carma.
É verdade que, nos níveis inferiores de consciência, o
carma é pesado e funciona de um lado como uma colheita mecânica do que se plantou,
e de outro lado como um plantio cego que causará ainda mais sofrimento no
futuro. Mas nos níveis superiores, os erros são corrigidos, ao invés de
“castigados”; e o carma novo é criado conscientemente na direção correta. É
para isso que aponta a teosofia.
O objetivo da lei do carma não é de modo algum punir, mas
ensinar a lei da harmonia. Não há ética alguma que justifique cruzar os
braços e lavar as mãos diante das injustiças cometidas.
Estudante A:
Como funciona o conceito de fraternidade, na prática?
Estudante B:
A fraternidade universal é dinâmica. O carma é a lei que
preside a interação entre todos os seres. Ele regula os mais diferentes níveis
de realidade do universo e do planeta. Os mestres de sabedoria não estão acima
da lei do carma. Eles são mestres precisamente porque se identificaram com a
lei do carma no que ela tem de mais elevado. Estão a serviço da Lei. Por esse
motivo, não fazem favores pessoais a ninguém. Este é outro fato que a pseudoteosofia
esquece.
O carma é a lei da ética e da harmonização constante. E
podemos deduzir que, se existe necessidade de uma constante harmonização, é
porque, em Kali Yuga - a era de longo prazo em que estamos - nem todas as ações
ou situações são justas, corretas e
harmoniosas. Quem pensa que “o sofrimento é sempre merecido” talvez queira dizer
a alguém que tenha perdido uma pessoa amada:
“Parabéns, amigo. Seu filho de cinco anos de idade morreu
ontem, por falta de socorro em um hospital público. Isso é muito merecido. O
carma não falha. Parabéns por corrigir desta forma seus graves erros do
passado. Sorria e fique feliz.”
Quem pensa isso não conhece o funcionamento da lei do
carma. Existem milhares de maneiras possíveis de compensar os erros do passado.
Algumas são construtivas e curam as feridas. Outras são tão brutais que
compensam, mas não corrigem, e apenas afundam as almas ainda mais na
ignorância, o que levará a mais compensações, que, por sua vez, corrigirão ou
não a situação.
Estudante A:
Qual é, então, a alternativa?
Estudante B:
O axioma budista esclarece: “O ódio não se extingue pelo
ódio, o ódio só se extingue pelo amor.” Assim, também, o sofrimento não se
extingue pelo sofrimento, mas pela compreensão e pela ação correta. A função do
movimento teosófico é elevar o nível do funcionamento da lei do carma, para que
ela saia do círculo vicioso do ódio e da frustração que se realimentam.
A lei do carma precisa ser compreendida do ponto de vista
da compaixão e da alma espiritual, ou não será compreendida. Não há lei do
carma que justifique a injustiça praticada no instante presente. Não há carma
que legitime a violência e o roubo praticados hoje. Não há carma que justifique
a falta de piedade ou solidariedade. Se milhares de pessoas estão morrendo de
fome neste momento na África, não há carma que justifique esta situação. Há
explicações, seguramente. Nenhuma delas nos exime de agir solidariamente em
relação à humanidade. O fato de que somos imperfeitos e de que nossa ação
solidária será necessariamente falha tampouco justifica a indiferença ou a
inação.
Estudante A:
Observo que os erros obedecem a um movimento pendular,
compensando carmicamente uns aos outros. Mas você menciona que nem toda
compensação serve para libertar a alma do erro.
Estudante B:
Erros diferentes compensam uns aos outros. Mas este
“pêndulo de compensações” não é suficiente para corrigi-los. Na realidade, um
erro não pode corrigir outro erro. Um erro só se corrige pela ação correta. Por
isso devemos combater a fonte comum de todos os equívocos, e não apenas esta ou
aquela ação errada isoladamente. E sem uma solidariedade profunda com quem
sofre, não há nem pode haver uma compreensão autêntica da lei do carma. Quando
observamos o processo vivo da interação entre Ignorância, Ilusão e Sofrimento,
percebemos que é mais eficaz atuar a longo prazo, combatendo as CAUSAS do
sofrimento coletivo, e plantando um Bom Carma de Sabedoria para Todos.
Estudante A:
Normalmente se pensa que o carma é uma relação com o
passado. Nos diálogos do e-grupo SerAtento,
porém, o carma é visto sobretudo como uma relação com o futuro.
Estudante B:
De fato, o carma mais importante é aquele que está sendo
plantado a cada momento. Este é o leme que dá direção à vida. Por outro lado, uma
parte fundamental do carma do momento presente consiste em saber como colhemos
o carma maduro do passado.
A luz astral é sutil e não funciona mecanicamente. O modo
como o carma maduro “aterrissará” na terceira dimensão do espaço-tempo
convencional está em ABERTO, até o momento em que ele toca o chão do plano
concreto. Se houver frustração e ódio ao colhê-lo, ele tomará forma de um
modo. Se houver humildade, sabedoria e flexibilidade, será um processo
diferente. A solidariedade no sofrimento faz uma diferença cármica decisiva para
quem sofre, e também para quem é solidário. Solidariedade é uma energia búdica.
Pertence ao eu superior. E, onde entra a inteligência da alma imortal, tudo se
cura e todos se libertam interiormente, mesmo em meio a grandes dificuldades.
Estudante A:
Os omissos erram ao adotar a pose de sábios, como se
fossem “demasiados santos para sujar as suas mãos com a defesa da ética”.
Estudante B:
Sem dúvida. Ao lavar as mãos com o ambíguo sabonete da
omissão, eles sujam suas almas. É frio, e falso, o raciocínio segundo o qual “o
carma dos outros não é meu carma”. É verdade que o carma tem uma forte dimensão
individual, mas todos os carmas individuais interagem entre si o tempo todo.
Acreditar na separação, pensando que não é preciso ser solidário, impede a ação
da alma imortal, cuja inteligência é destituída da ideia ilusória de separação
entre “meus interesses” e “interesses dos outros”.
“Tudo que é humano me diz respeito”, escreveu o pensador
clássico Terêncio. Os numerosos exemplos de autossacrifício individual por uma
causa nobre, presentes ao longo da história da humanidade, não surgem por
acaso. Eles ocorrem porque o foco de consciência do indivíduo sábio está em sua
alma espiritual e, portanto, o indivíduo já não vê distinção entre o que
é bom para si mesmo e o que é bom para os outros.
Assim, quando a teosofia afirma que o passo inicial na
caminhada é querer o bem da humanidade, ela está dizendo que a meta primeira de
quem busca a sabedoria é erguer o foco da sua própria consciência até a alma
espiritual. A alma superior busca a felicidade de todos os seres porque
obedece, como por instinto, à Lei (cármica) da fraternidade universal.
Estudante A:
Esta visão parece exigir uma certa dose de ética e de
coragem.
Estudante B:
Talvez. A atitude com que vivenciamos o sofrimento e a
alegria é um fator decisivo. Vale a pena ter coragem diante do sofrimento
próprio, solidariedade diante do sofrimento alheio, e humildade e moderação
diante das nossas vitórias.
Estudante A:
Deste ponto de vista, a lei do carma é uma lei da ética e
da solidariedade.
Estudante B:
Sem dúvida. Os aspectos individuais do carma perdem
importância, à medida que a compaixão é reconhecida como a Grande Lição a ser
aprendida com ajuda da Lei do Carma. Ao agir movido pela boa vontade, o
indivíduo ainda errará, sem dúvida. Mas, errando, ele aprenderá; enquanto que
aquele que se omite comete um erro do qual não se tira facilmente lição
alguma.
O cidadão planetário sabe, por exemplo, que a devastação
das florestas não é “um problema cármico das árvores, que devem ter cometido
algum erro no passado”.
Estudando filosofia esotérica, o cidadão percebe que a
teosofia original faz despertar nele um sentimento de corresponsabilidade
universal. E ele compreende que este sentimento estará na base das próximas
civilizações.
Estudante A:
Sabemos que além de boa vontade é preciso discernimento.
Em que condições a ação solidária é eficaz?
Estudante B:
Em sua obra “Sobre o Dever” (Livro I, item XIV), o
pensador clássico romano Marco Túlio Cícero estabelece três condições para uma
ação generosa.
Em primeiro lugar, diz ele, a ação deve ser justa e não
deve prejudicar ninguém. Em segundo lugar, ela deve ser proporcional aos meios
e à possibilidade da pessoa que fará o bem. Finalmente, aquele que é objeto da
generosidade deve merecer a ajuda. E é fácil ver que, do ponto de vista
teosófico, ninguém merece mais ajuda do que o eu superior ou a alma imortal dos
nossos semelhantes. O despertar da inteligência espiritual é a grande meta e
também a necessidade histórica da evolução humana no século 21.
000
Uma versão inicial do texto acima foi publicada de modo anônimo na edição de
junho de 2009 de “O Teosofista”.
000
Em setembro de 2016, depois de cuidadosa análise da situação
do movimento esotérico internacional, um grupo de estudantes decidiu formar a Loja
Independente de Teosofistas, que tem como uma das suas prioridades a construção de um futuro melhor nas
diversas dimensões da vida.
000