9 de fevereiro de 2016

Como Usamos o Conhecimento

Continua Sem Resposta Final
Um Desafio Formulado em 1750  

Carlos Cardoso Aveline

J.-J. Rousseau e a capa de uma das primeiras
edições do seu Discurso Sobre as Ciências e as Artes




Em Paris, no ano de 1750, a Academia de Dijon fez um concurso público que premiaria o melhor Discurso sobre o seguinte tema:

“Se o restabelecimento das ciências e das artes contribuiu para aperfeiçoar os costumes.”

A pergunta continha uma referência à Renascença dos dois séculos anteriores, durante os quais a sabedoria clássica grega e romana havia experimentado uma nova primavera. Devido ao renascimento das ciências e das artes, haviam melhorado os costumes, os hábitos as ações das pessoas? 

Essa era a questão colocada pela Academia.

O vencedor do concurso foi Jean-Jacques Rousseau com sua exposição “Sobre as Ciências e as Artes”. Sua abordagem constitui um dos pontos altos da filosofia de todos os tempos. E a resposta de Rousseau foi negativa. Ele achava que o conhecimento não estava sendo usado para o bem.[1]

Não seria sábio querer chegar a uma resposta rápida para a pergunta sobre se o conhecimento reunido pela humanidade está sendo usado corretamente. Melhor do que lançar  uma resposta pronta, é questionar-se a respeito.

O uso do conhecimento é contraditório. Ele é usado de modo construtivo e destrutivo,  conforme a situação. A luz e a sombra convivem. O papel evolutivo da ignorância organizada é garantir que a vitória da sabedoria, quando ocorrer, será merecida.

Cada vez que uma civilização vai além da fase útil do seu ciclo, ela é desconectada da Sabedoria e cai nas mãos da Ignorância, para que a destrua. Assim se abre espaço para uma outra forma melhor  de civilização.

O discurso fascinante de Rousseau em 1750 transmite uma bondade imensa, uma grande sabedoria. Ao ouvi-lo, vemos as culpas e os fracassos da humanidade. Rousseau quase descrê da busca do conhecimento. E no entanto ele dedicou sua vida conscientemente à busca da verdade. [2] A questão diante de nós, como a questão diante de Rousseau, não consiste em ter ou não ter conhecimento. A tarefa é examinar o que se deseja saber, quando se busca conhecimento; com que objetivo se faz isso, e que uso prático se dá ao saber, uma vez que ele é obtido.  

Culpar a humanidade é inútil. Desde os primeiros séculos da era cristã os profetas têm o hábito de condenar a humanidade e discursar sobre a sua decadência. Falar mal dos tempos atuais é um modo fácil de colocar-se acima da sociedade que nos rodeia. Lamentações servem para justificar o desânimo e as atitudes irresponsáveis. Cabe ser rigoroso. Mas é igualmente necessário apontar um futuro saudável que possa ser construído desde já, passo a passo, e cuja construção leve à felicidade, geração após geração.

A questão levantada por Rousseau deve ser vista como um problema prático.

Considerando que o movimento teosófico autêntico lida no século 21 com uma filosofia universal e que estimula os níveis superiores de consciência, cabe perguntar se os teosofistas em geral têm usado de modo correto o conhecimento que lhes foi confiado, e o conhecimento que obtiveram.

A resposta deve ser individual. É preferível que cada um fale por si. Mais do que condenar os outros, ou criticar a civilização atual, é útil que perguntemos a nós próprios até que ponto usamos para o bem o nosso conhecimento em cada aspecto da vida. Em que situações devemos melhorar?

Se um certo número de teosofistas autorresponsáveis diante do Carma usarem corretamente o conhecimento, obterão sabedoria. A percepção da ética divina nascida da prática filosófica passará por osmose a permear o resto da civilização. Isso ocorrerá de modo silencioso, de dentro para fora. Assim, o conhecimento humano passará a ser usado a cada século de  modo mais benigno do que no século anterior, dentro das possibilidades dos ciclos cármicos evolutivos. 

Para isso será preciso que cada um enfrente por si mesmo o peso da ignorância acumulada do mundo.

Não importa quanto “conhecimento” alguém pensa que tem. O significado do conhecimento está no que nós fazemos com ele. A sabedoria divina é não-verbal e só pode ser realmente obtida por aqueles que a merecem, e enquanto a merecem. Os outros só conseguem alcançar as palavras relativas à espiritualidade; e, com frequência, eles não sabem diferenciar as palavras corretas das palavras distorcidas. Terão de desenvolver o discernimento.

É a ação correta que faz com que mereçamos alcançar verdadeiro conhecimento. Quando usamos o nosso saber com intenção nobre e de modo acertado, ele se amplia. Assim cresce a capacidade de ver o que é verdadeiro e o que é falso.

Cabe lembrar que a sabedoria passa frequentemente desapercebida. Ela parece invisível, porque o verdadeiro saber tem mais afinidade com o silêncio do que com o barulho.

J.-J. Rousseau escreveu:

“Como seria bom para aqueles que vivem entre nós, se a nossa aparência externa fosse sempre um espelho dos nossos corações, se boas maneiras fossem também virtude, se os preceitos que nós recitamos fossem as normas da nossa conduta, se a verdadeira filosofia fosse inseparável do título de filósofo! [3] Mas estas boas qualidades raramente andam juntas, e a virtude dificilmente tem tanta pompa, ou tanta pose.” [4]

O autoconhecimento abre espaço para o autoesquecimento. Este último faz surgir uma simplicidade essencial diante da vida e dos testes que ela traz.

As armadilhas são inevitáveis. A vitória é certa quando há perseverança. O texto “O Dilema Ético de S. Paulo” [5] discute o processo de busca da ação correta.

O movimento teosófico autêntico é um refúgio para os que buscam a verdade e transcendem o apego a aparências. Nele cada estudante aprende com todos os outros na medida exata da sua capacidade de aprender; e a observação de si mesmo, feita com a intenção definida de melhorar,  expande a aptidão para alcançar a sabedoria.

Ao final de cada dia, assim como no fim de um ano ou de um mês, podemos perguntar-nos:

*Em que agi acertadamente neste período de tempo que agora termina? 
*Em que usei para o bem o conhecimento que penso que tenho?
*Como posso melhorar no ano que vem, ou a partir do mês que agora começa?

Quando os buscadores da verdade estão harmonizados interiormente entre si, cada um pode reunir-se melhor com sua própria alma. O conceito russo de sobornost significa “comunhão, comum-união, fraterna-unidade”, e é teosófico. Implica unidade com liberdade. Diz respeito às verdadeiras escolas esotéricas.

Para a filosofia dos eslavófilos, o real conhecimento só surge em conjunto com o sentimento de solidariedade incondicional para com todos os seres. 

Numa associação teosófica, o erro de cada um prejudica a todos. O acerto de um estudante beneficia os outros. A felicidade interior de um só indivíduo atrai bênçãos para o conjunto. O ponto fraco do meu colega é o meu ponto fraco. A vitória do meu irmão aumenta a força da luz no meu caminho.

NOTAS:

[1] “Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, Precedido de Discurso sobre as Ciências e as Artes”, J.-J. Rousseau, Martins Fontes,  SP, 1993, 280 pp.;  ver pp. 1-117, especialmente as pp. 9 a 36, que contêm o discurso em si.

[2] Rousseau assumiu este compromisso consigo mesmo adotando uma máxima do pensador  clássico Juvenal. (“Os Devaneios do Caminhante Solitário”, Ed. UnB, Brasília, copyright 1986, 135 pp., Quarta Caminhada, p. 55, primeiro parágrafo e nota de rodapé do editor.)

[3] Ou da palavra “teosofista”.

[4] Trecho traduzido da edição em inglês do ensaio de Rousseau, “Discourse on the Sciences and Arts” (“Discurso Sobre as Ciências e Artes”), publicada no livro “Jean-Jacques Rousseau”, Susan Dunn, editor; Yale University Press, 2002, ver p. 49. Na edição brasileira de Martins Fontes, citada acima, veja as páginas 12-13.

[5] “O Dilema Ético de S. Paulo” está disponível em nossos websites associados. Veja também “A Sabedoria é Só Teórica?” e “A Diferença Entre a Teoria e o Discurso”.  Os três artigos são de Carlos Cardoso Aveline.

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Uma versão anterior do texto “Como Usamos o Conhecimento” foi divulgada na edição de dezembro de 2015 de “O Teosofista”. A sua presente versão, inclui o conteúdo da nota “Olhando Para o Coração Humano”, que  o leitor encontrará publicada sem nome de autor na edição de maio de 2014 do “Teosofista” (p. 04).

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Para conhecer a teosofia original desde o ângulo da vivência direta, leia o livro “Três Caminhos Para a Paz Interior”, de Carlos Cardoso Aveline.


Com 19 capítulos e 191 páginas, a obra foi publicada em 2002 pela Editora Teosófica de Brasília.   

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