Sociedade de Adyar Deve Deixar de
Lado
As Ideias Pré-Nazistas de Besant
e Leadbeater
Carlos Cardoso Aveline
Carlos Cardoso Aveline
Uma mulher andina e sua criança,
no Peru
“A raça branca deve
ser a primeira a estender a
mão da fraternidade aos povos de cor
escura e a
chamar de irmão o
pobre ‘negro’ desprezado. Esta
perspectiva pode
não agradar a todos, mas não é
teosofista aquele
que se opõe a este princípio.”
[ Maha-Chohan, o Mestre dos
Mestres, em Carta de 1881.
Ver “Cartas dos Mestres de
Sabedoria”, Ed. Teosófica, p. 18.]
“Por fim, vem o
pior, os chamados mestiços, meio
sangue - raça
mesclada que parecia, como às vezes
acontece com este
tipo de raça, combinar todas as
piores qualidades
das raças de ambos os progenitores.”
[ Charles W. Leadbeater, ao
descrever a população do Brasil em
sua obra “Salvo por um Espírito”,
Ed. Pensamento, S.P., p. 110. ]
O povo
brasileiro tem uma alma mestiça e
multicultural. A miscigenação é o ponto forte da formação do país. Os
brasileiros sentem orgulho da sua origem negra, indígena, mulata, cabocla,
misturada. Com razão José Bonifácio, o patriarca da independência,
escreveu:
“Nós não
reconhecemos diferenças nem distinções na família humana: serão tratados por
nós como brasileiros o chinês e o
português, o egípcio e o haitiano, o adorador do Sol e o de Maomé.”[1]
O Brasil
é uma nação jovem. Gente de todos os povos da Terra foi e é bem-vinda. O país é
uma amostra ampla e continental da diversidade humana. O racismo constitui um
crime inafiançável conforme o artigo 5, inciso XLII, da Constituição Federal de
1988. Como, então, poderiam ser aceitas
por alguém, nesta terra indígena, negra e mulata, as teorias raciais antifraternas
defendidas por Charles W. Leadbeater e Annie Besant, e que ainda hoje circulam
em meios teosóficos?
Não há
nada mais democrático (no sentido de fraternidade entre todos os seres) do que
o movimento teosófico em sua concepção original. “A raça branca deve ser a
primeira a estender a mão aos povos de cor escura e a chamar de irmão o pobre
‘negro’ desprezado” , ensinou o Mestre.
O
primeiro objetivo do movimento teosófico,
criado em Nova Iorque em 1875, é formar o núcleo de uma fraternidade universal
que não leve em conta fatores como raça, credo, sexo, casta, ideologia ou
classe social. No entanto, após a morte
de Helena Blavatsky em 1891, a proposta original do movimento foi abandonada e
Annie Besant deixou-se levar por outras
influências.
Felizmente,
cada vez mais gente vem descobrindo a
verdadeira teosofia - mas ainda há muito
por fazer. Entre as tarefas que necessitam ser realizadas está a
de identificar, examinar e descartar as
concepções errôneas da doutrina de Besant e Leadbeater, ainda hoje amplamente
misturadas à filosofia autêntica.
Um dos pontos
mais lamentáveis da doutrina dessa dupla de autores é a ideia de que os líderes
espirituais devem ser vistos como seres
infalíveis, e devem concentrar
todo o poder em suas mãos. Este tipo de liderança surgiu no movimento esotérico logo após a
morte de Henry Olcott.
A
vergonhosa liderança “papal” de pessoas supostamente
infalíveis antecipou dentro do movimento esotérico o surgimento de doutrinas políticas como o fascismo de Benito
Mussolini e o “nacional-socialismo” de Adolf Hitler. Tais movimentos políticos
estavam baseados em falsas doutrinas sobre a existência de seres humanos
“superiores” e “inferiores”. Eles floresceram na década de 1920 com o apoio
discreto do Vaticano - a principal fonte de antissemitismo e de ataques contra
a Teosofia.
A teoria
autoritária da liderança “absolutista” é uma entre muitas distorções e
falsificações do ensinamento teosófico original. Outra moeda falsa que vem
circulando desde as primeiras décadas do século vinte são “teorias raciais”
expostas em obras de Charles W.
Leadbeater.
Falso
clarividente, considerado um crápula pelo líder da independência indiana Mahatma Gandhi[2], o sacerdote Charles Leadbeater
evitou habilmente as investigações policiais de que foi alvo na
Austrália. Expulso da Sociedade Teosófica por Henry Olcott em 1906, ele voltou a controlar a Sociedade de Adyar logo após a morte de Olcott, o
presidente-fundador, em fevereiro de
1907.
É
verdade que Radha Burnier (1923-2013), presidente internacional desta Sociedade
entre 1980 e 2013, não defendeu as obras de Leadbeater. Ela não o fez em público, e não o fez em conversas privadas. Na década de 1990, uma teosofista brasileira - pessoa sincera e experiente - disse à sra.
Radha em conversa pessoal que “não podia aceitar Leadbeater como autor
teosófico”. Explicou os seus motivos,
que eram sólidos. A sra. Radha limitou-se a responder:
“Está
bem, mas você não precisa fazer um escândalo por causa disso.”
Esta
política oficial de acobertamento - que já dura pouco mais de um século - vem perdendo a sua eficácia.
Não é
possível enganar a todos o tempo todo. A justiça e a verdade tardam, mas não
falham. Não se trata apenas de
esclarecer as falsidades de uma literatura que se apresenta como teosófica e
não é, porque defende pontos diametralmente opostos à filosofia esotérica. Há uma estrutura de poder e de movimento
teosófico que é inspirada pelas “visões” de Leadbeater e Besant e que dificulta
enormemente o trabalho do movimento e impede a sua livre renovação.
Em sua
obra “Salvo Por Um Espírito” (Ed.
Pensamento, SP, 167 pp.), o escritor Charles Leadbeater orgulha-se de haver
matado em sua juventude numerosos negros e índios brasileiros. Na verdade tais
“façanhas” jamais ocorreram, embora C.
W. Leadbeater e C. Jinarajadasa as
tenham apresentado - e seus seguidores no Brasil ainda as apresentem - como “eventos reais”. Mas o fato de que os relatos do livro “Salvo
Por Um Espírito” sejam apenas frutos
de uma imaginação febril não justifica o seu conteúdo, que está cheio de
preconceito racial, e carregado de elogios implícitos, ou explícitos, à
violência contra “as raças inferiores”. Ainda que fosse apresentado como uma
obra de ficção, o texto seria profundamente racista e antiteosófico.
O
livro “Salvo Por Um Espírito” é abordado
e discutido mais especialmente em outro
artigo, intitulado “Leadbeater Diz Que
Matou Brasileiros”.[3] Cabe-nos examinar aqui o que C. W.
Leadbeater escreveu sobre os povos
indígenas em outra obra pseudoclarividente,
um livro que ainda é lido por teosofistas desinformados. Trata-se do volume “O Homem Visível e Invisível”.
O
capítulo XIV da obra é dedicado aos
povos indígenas, que Leadbeater chama de “selvagens”. Defendendo a tese de que os indígenas são
todos maldosos e destituídos de sabedoria ou sentimentos nobres, Leadbeater
escreve:
“Ocupemo-nos
agora do corpo mental do selvagem, com apoio nestes ensinamentos que, à primeira vista, podemos
ver comprovados pelos fatos. Embora, no
conjunto, seja um corpo mesquinho e pouco desenvolvido, demonstra que o homem
realizou alguns progressos. O amarelo opaco, na parte superior, indica algo de
inteligência; mas seu tom sujo denota também que se dedica exclusivamente a
fins egoístas.” [4]
Ninguém
poderia apresentar isso como sendo teosófico. Compare-se estas palavras com a
profunda riqueza da tradição espiritual dos povos indígenas das três
Américas. H. P. Blavatsky escreveu
longamente sobre a sabedoria dos povos andinos, que ela visitou pessoalmente
nos anos 1850. H.P.B. também afirmou que
os Mestres e Discípulos dos Himalaias trabalham em
profunda sintonia com Mestres e Discípulos dos povos indígenas das três
Américas, e são, em muitos casos, seus amigos pessoais próximos, apesar da
distância geográfica. Tais iniciados
dispõem de meios sutis e telepáticos de comunicação. [5]
Leadbeater
prefere contrariar a ideia da fraternidade universal e atribui aos povos
indígenas uma inferioridade moral
intrínseca. Em sua desequilibrada descrição do que seria a aura dos
“selvagens”, ele prossegue:
“O
cinzento azulado denota devoção fetichista, temerosa e inspirada em
considerações de interesse pessoal, enquanto que o carmesim lodoso da esquerda
assinala os primeiros albores de um afeto eminentemente egoísta. A franja de
cor alaranjada opaca denota orgulho de ordem inferior. A grande mancha
escarlate expressa uma excessiva tendência à cólera, que evidentemente explode
à menor contrariedade.”
Como se
tais adjetivos fossem poucos, Leadbeater prossegue em seu delírio sobre a aura
dos nossos irmãos dos povos indígenas:
“A larga
franja verde-suja, que ocupa grande parte do corpo que estudamos, denota
trapaçaria, perfídia e avareza, indicada pelo tom moreno. Finalmente observamos na parte inferior do
oval uma espécie de depósito lodoso, que
demonstra egoísmo em geral e ausência de toda nobre qualidade. A ausência das
qualidades superiores neste corpo mental nos permite prever com certeza que, se
observarmos o corpo astral correspondente,
veremos que o seu possuidor não tem nenhum domínio próprio.”
Antecipando
as teorias raciais do nazi-fascismo, Leadbeater prossegue:
“Com
efeito, grande parte do corpo astral está exclusivamente ocupada pela
sensualidade, que se manifesta por um repulsivo vermelho terroso (...). A
trapaçaria, o egoísmo e a cobiça se acham evidentemente neste corpo, como era
de prever, e a feroz cólera se revela
nas manchas vermelho-escarlate-opacas. Dificilmente se encontra neste veículo
qualquer indício de afeto, e a pouca inteligência e devoção que aparecem são de
ínfima ordem.”
Na mesma
página Leadbeater refere-se aos cidadãos de pele branca pelo pronome “nós”,
logo depois de catalogar o indígena como desprezível:
“É um
ser muito repulsivo; contudo, todos nós passamos por esta fase, e as
experiências colhidas nos elevaram a uma condição algo mais pura e nobre.”
Durante
o período do escravismo e da dominação colonial, as teorias e ideias
racistas serviam como propaganda para
justificar a dominação e o massacre dos
povos indígenas, sob as armas dos “povos
superiores” e com frequência “em nome de Jesus Cristo”.
O que Leadbeater fez, na verdade,
não é novo. Escrevendo no período colonial, ele apenas adaptou os velhos preconceitos
racistas usados pelas grandes potências e os colocou sob uma roupagem espiritual e “teosófica”. Como resultado disso, é natural que a
Sociedade presidida por Annie Besant tenha se oposto à luta de Gandhi pela
independência da Índia, deixando de criticar as religiões dogmáticas e passando
a adotar os seus rituais destituídos de significado.
Procurando dar legitimidade a
velhas ilusões, Leadbeater fez um “trabalho pioneiro” em relação às teorias
raciais nazistas. Ele fingiu comparar a aura ou “oval” do membro médio dos
povos indígenas com a aura do “homem
branco comum”:
“No oval
do selvagem temos observado um verde vicioso, que indica trapaçaria aliada à
avareza e ao egoísmo. As vibrações
produtoras desta cor só se levantam numa matéria mais densa e grosseira do que
a do escarlate, que indica cólera. Pelo contrário, o verde notoriamente mais
agradável do corpo mental do homem comum transmite as suas vibrações a uma
matéria um pouco menos densa que a da
cor escarlate. (...) O verde melhorou de tal maneira, que indica certo grau de
versatilidade e adaptabilidade, mais bem do que trapaçaria e astúcia.” [6]
Estas ideias
de superioridade racial são inaceitáveis em si mesmas, e são também ilegais, desde
a proibição do Nazismo durante os anos 1940. Elas são antifraternas: atacam a essência
do movimento teosófico, que tem como ponto de partida e meta central a ideia da
fraternidade entre todos os povos.
Em uma
das Cartas dos Mestres, podemos ler:
“Sob a
dominação e a influência dos credos exotéricos, sombras gigantescas e
distorcidas de realidades teosóficas, sempre haverá a mesma opressão dos fracos
e dos pobres e a mesma luta tempestuosa dos ricos e poderosos entre si
mesmos... É somente a filosofia esotérica,
a harmonização espiritual e psíquica do homem com a natureza, que, através da
revelação de verdades fundamentais, pode trazer aquele tão desejado estado
intermediário entre os dois extremos do Egoísmo humano e do Altruísmo divino e,
finalmente, conduzir ao alívio do
sofrimento humano.” [7]
Os dois mestres
de sabedoria que participaram mais diretamente da criação do movimento
teosófico no século 19 eram indianos de pele escura, então chamados de “negros”,
“sujos” e “inferiores” pelos
colonizadores europeus.
No mundo
globalmente integrado do século 21, as ideias racistas e pré-nazistas de Besant
e Leadbeater devem ser repudiadas junto com as outras ilusões “esotéricas” colocadas
em circulação por estes autores. Os ensinamentos originais da teosofia ganham
força. É uma bênção que haja sinais crescentes de um novo
despertar para o movimento teosófico no Brasil como em Portugal e no mundo
todo.
NOTAS:
[1] “Projetos Para o Brasil”, José Bonifácio de Andrada e Silva, obra
organizada por Miriam Dolhnikoff, Cia. das Letras, SP, 1998, 371 pp., ver p.
176.
[2] Veja o artigo “Mahatma Gandhi e a
Teosofia”, de Carlos Cardoso Aveline. O texto está disponível em nossos
websites associados.
[3] Disponível em nossos
websites.
[4] “O Homem Visível e Invisível”,
de Charles Leadbeater, Ed. Pensamento,
São Paulo, 1967, trad. de Joaquim
Gervásio de Figueiredo, 132 pp., ver p. 87.
[5] Veja “Letters of H. P. Blavatsky
to A.P. Sinnett”, TUP, 1973, 404 pp., p. 85, Letter XXXV.
[6] “O Homem Visível e Invisível”,
obra citada, pp. 92-93.
[7] “Cartas dos Mestres de Sabedoria”, editadas por C.
Jinarajadasa, Editora Teosófica, Brasília, 1996, 296 pp., ver Carta 82 da
segunda série, pp. 265-266.
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Uma versão inicial do texto acima
foi publicada no boletim mensal “O
Teosofista”, edição de dezembro de 2007, sem indicação de nome de
autor. Título original: “Racismo em Literatura ‘Teosófica’?”.
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Veja
também em nossos websites associados os textos “Bispo Católico Visita Plantações em Marte”, de Carlos Cardoso
Aveline, e “Besant Anuncia Que é Mahatma”, de Mary Lutyens.
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Sobre o
mistério do despertar individual para a sabedoria do universo, leia a edição
luso-brasileira de “Luz no Caminho”,
de M. C.
Com
tradução, prólogo e notas de Carlos Cardoso Aveline, a obra tem sete capítulos,
85 páginas, e foi publicada em 2014 por “The
Aquarian Theosophist”.
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