8 de agosto de 2012

Os Sonhos de Grandeza

  A Luz da Alma Imortal Pode
Causar Tempestades em Copo D’Água

Carlos Cardoso Aveline 



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Nota Editorial:

Quando não há atenção ou
vigilância, a vida é como um pequeno
copo d’água colocado nas mãos incertas
de uma criança que não sabe o que faz.
Ao longo da existência, todo ser humano
busca quase instintivamente ampliar o
contato com aquilo que é eterno e infinito,
mas isso nem sempre é feito da maneira certa.

(CCA)

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Vale a pena observar a relação entre dois fatores centrais na vida de todo ser humano. De um lado, temos as tempestades em copo d’água, ou seja, aquelas lutas, crises e vitórias aparentemente intensas mas que, quando são vistas de modo correto, percebemos que não têm profundidade ou durabilidade em si mesmas. De outro lado, temos o despertar da verdadeira grandeza humana.

De uma forma ou de outra, todos os seres humanos têm sonhos de grandeza, ainda que nem sempre falem sobre eles. Qual é, porém, a fonte de tais sonhos? A questão merece um exame. O que é grande anda junto com o que é imortal.

O pensador francês Claude Aveline refletiu certa vez:

“O que é a morte? É um momento desagradável pelo qual devemos passar.”[1]

De fato, a “morte” é somente a passagem da vida para uma nova etapa. A teosofia ensina que a consciência interna não morre, mas apenas abandona a casca ou instrumento físico que lhe foi útil durante algum tempo. O passado, o presente e o futuro fazem parte do tempo cíclico de longo prazo, quase eterno e indivisível, em que existe a verdadeira alma.

No seu aspecto mais elevado, os sonhos grandiosos de cada indivíduo são, na verdade, uma recordação involuntária do chamado “Devachan”. Eles constituem uma tentativa quase sempre tosca de resgatar o longo período de bem-aventurança devachânica que - segundo a regra geral - o indivíduo vivenciou antes do início da atual encarnação. 

Mas o futuro não está separado do presente, e os sonhos de grandeza constituem também uma aspiração involuntária e uma antecipação do próximo Devachan. Ou talvez sejam uma busca indireta da felicidade interior que pode ser encontrada ainda durante a existência atual. O êxito da busca, naturalmente, dependerá da natureza da meta, da qualidade das aspirações, e da quantidade de discernimento.  

Os sonhos de grandeza são vivências, portanto, e não são meros sonhos. Eles são fatos mais profundos - e de certa forma mais verdadeiros - que as ações meramente físicas. Os sonhos grandiosos pertencem em última instância à alma espiritual do indivíduo, Buddhi, o eu superior iluminado pela luz universal. No entanto, eles estão frequentemente associados a Maya, Ilusão. Inúmeras vezes eles causam sofrimento, e isso ocorre por um motivo muito simples. Quando o raio de luz búdica universal desce até o pequeno copo d’água da alma mortal, há um processo chamado de “refração”. A luz muda de rumo e se altera devido ao novo meio, mais denso, em que está agora. A luz fica presa, e isso gera enganos e tempestades.    

Examinemos por um momento esta imagem simbólica. O corpo físico é representado pelo vidro do copo. 

A vitalidade e a alma mortal são a água, que assume a forma do copo enquanto o copo durar.

A mente é o oxigênio dissolvido na água. Buddhi, a alma imortal, é a luz que percorre o copo e dá vida à água e ao processo todo.

A vida, como se sabe, é um processo probatório. Ela é um aprendizado com lições, testes e exames a todo momento. Nem sempre os alunos prestam atenção às lições. Espiritualmente, eles adormecem com frequência no meio das explicações. Algumas das tempestades no copo d’água são modos que a vida tem de tentar acordá-los. 

A ideia da tempestade no copo d’água descreve corretamente, portanto, as “crises” do eu inferior. Elas parecem grandiosas, mas na realidade são insignificantes, exceto quando servem para tirar o eu inferior da rotina e fazer com que ele veja o que realmente interessa.   

Dito isso, retomemos o exame do que acontece com os sonhos de grandeza.

A verdadeira grandeza é, como vimos, universal, impessoal, e pertence a Buddhi, a alma imortal.

A partir do momento em que a luz búdica chega ao copo d’água do eu inferior e fica limitada pelo meio que a recebe, tudo vai depender do estado do copo. Cabe examinar se a água está limpa. Qual é o nível de turbidez? É preciso ver se o copo está situado sobre um plano estável da realidade, ou se ele oscila perigosamente nas mãos trêmulas e irresponsáveis da ignorância espiritual.

A impureza da água no copo se mostra no ser humano como uma deficiência auditiva. O eu inferior não escuta muito bem a voz sem palavras do eu superior.

Para alguns, os sonhos de grandeza são percebidos como sonhos de tornar-se milionário. O eu superior busca a bem-aventurança universal e o eu inferior interpreta este sentimento como o desejo de ganhar na loteria esportiva. 

Para outros, a grandeza do eu superior é traduzida para o plano material como o ato de ter um carro novo e melhor do que os carros dos vizinhos e colegas de trabalho. 

Certos políticos profissionais sonham com uma conta de banco na Suíça. Milhões de pessoas se contentam com o sonho de ver o seu time de futebol ganhar o campeonato.

E há os que ambicionam um telefone celular com mais mensagens e recursos online que os telefones dos seus amigos.

Mas isso não é tudo. Existem aqueles que desejam ser espiritualmente mais evoluídos que os outros. Surge então a esperança de ser um grande sábio, que deveria ser reverenciado e homenageado por todos. É deste modo que são produzidos os numerosos “líderes”, Avatares, os profetas que conversam com Cristo, com a Virgem Maria, com Maitreya, com São Francisco de Assis ou com o próprio deus monoteísta inventado pelos sacerdotes.

Para aqueles que evitam as armadilhas da autoilusão, pouco a pouco a água do copo vai-se decantando e purificando devido ao contato com o ar. Os sonhos de grandeza mais agitados vão-se acalmando, junto com o orgulho “espiritual” que os produz.

Surge o bom senso. A alma começa a perceber que ninguém é grande, mas que todos e cada um podem estar em contato consciente com o que é imenso.

O indivíduo percebe que a verdadeira identidade com o que é infinito só ocorre quando ele aceita em paz a realidade da sua insignificância pessoal, não só diante do universo, mas também diante do seu próprio eu superior.  

A vida do copo é breve. Alguns ficam surpresos quando algum copo se quebra antes de completar cem anos de idade. Quebrado o copo e queimados ou enterrados os seus cacos, o que ocorre? Acontece que a água cai no processo cármico aquecido do Kama-Loka, o primeiro estágio do pós-morte, até que evapora dali para a atmosfera superior do Devachan.

Entre mil e quatro mil anos depois, na média, a mesma água essencial da vida se derramará, pura, renovada, caindo do alto em outro pequeno copo novo, que será assoprado pelo eu superior e pela vida até adotar o tamanho físico de um ser adulto.

A alma espiritual é a fonte da essência da água no copo, e também a origem da felicidade do ser humano. É uma fonte que não se esgota. Ela ilumina primeiro a criança, depois o jovem, o adulto, e o velho. Ela ilumina a alma mortal, antes e depois da morte física. E quando ocorre a morte astral, ela leva o foco da consciência do indivíduo até o Devachan, e preside ali a longa bem-aventurança - antes de iluminar o parto e o nascimento de uma nova criança. Todo bom projeto de vida inclui, de uma forma ou de outra, a ideia de ampliar o contato com esta fonte.

De ciclo em ciclo, pouco a pouco, o eu superior ou alma imortal presente na água mutável percebe que é, na realidade, parte do grande Oceano da vida. Então ele já não se confunde com a forma externa do copo que ocupa nesta ou naquela “temporada”. 

Deste modo, o eu inferior ou água deixa gradualmente de ter sonhos cegos e involuntários de grandeza.

Ele passa a vivenciar diretamente a grandeza do universo porque esquece de si mesmo. Ele percebe que para viver a grandeza é necessário não tentar submeter o oceano da vida aos seus desejos pessoais. 

O correto para o estudante de teosofia é, pois, observar o processo de sonhos de grandeza onde este processo estiver, trazendo-o para o campo visível da mente; e então, calmamente, perceber a vacuidade ingênua e infantil, o caráter ilusório destes sonhos, quando são formulados pelo eu inferior.   

Assim o estudante descobre a sabedoria de só saber que nada sabe (enquanto eu inferior). 

Ele obterá o poder universal de compreender que ele não é “importante”, nem possui nada que tenha importância, na sua dimensão de copo d’água -; mas que pode partilhar diretamente da natureza da verdade universal. E que isso é bom, é verdadeiro, e é mais do que suficiente para a sua felicidade.

NOTA:

[1] A frase é do livro “Les Réflexions de Monsieur F.A.T.”. Claude Aveline é o pseudônimo cultural e literário usado pelo cidadão francês Evgen Avtsine (1901-1992). Claude nasceu na França, filho de pais russos, e lutou na resistência francesa durante a segunda guerra mundial. Foi marxista. Uma das suas obras mais conhecidas é uma narrativa da lenda de Buddha.

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Sobre o mistério do despertar individual para a sabedoria do universo, leia a edição luso-brasileira de “Luz no Caminho”, de M. C.


Com tradução, prólogo e notas de Carlos Cardoso Aveline, a obra tem sete capítulos, 85 páginas, e foi publicada em 2014 por “The Aquarian Theosophist”.

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