O Caminho da Felicidade
Requer Renúncia e Discernimento
Carlos Cardoso Aveline

A vida
é feita de paradoxos. Para trilhar o caminho da bem-aventurança, o primeiro
passo é querer o bem de todos os seres. O passo seguinte consiste em trabalhar de
modo prático, durante muito tempo, para que os outros sejam felizes. O auto-esquecimento abrirá as portas do
bem-estar durável.
A
substância da vida é feita de solidariedade. Cada criança é resultado da
interação amorosa dos seus pais. Alguém cuida do indivíduo humano quando ele
nasce, e alguém cuida dele quando morre.
Logo
no início da vida, o ser humano começa a aprender a arte de cuidar de si mesmo.
Esta arte tem limitações, porque mesmo na fase mais “independente” da sua vida haverá
sempre alguém cuidando da pessoa. Seus amigos, os colegas, o chefe no trabalho,
os professores, pais, dentistas, médicos, motoristas de táxi, filhos e irmãos
ou mesmo netos, todos cuidam de algum modo de cada ser humano. A sociedade
inteira protege e ajuda o cidadão individual, dando-lhe ruas calçadas para
caminhar e outros tantos benefícios da vida em comunidade.
O
fato de ser objeto de cuidados é agradável, mas cuidar dos outros é melhor
ainda. O caminho da paz requer que pensemos no bem-estar interior daqueles a
quem queremos bem, e devemos querer o bem de todos os seres. A atitude altruísta
é benéfica para nós próprios. Aquilo que fazemos aos outros é o que retornará,
cedo ou tarde, para nós.
Cuidar Requer Lucidez
e Desapego
Embora
trabalhar para o benefício dos outros seja a fonte do verdadeiro bem-estar, isso
não significa que a tarefa seja fácil. Cuidar de modo eficiente é uma arte, e também
um mistério que implica boa dose de auto-sacrifício.
Coragem,
renúncia, desapego e discernimento são necessários para cuidar dos outros seres
como devem ser cuidados. Ajudar não é
fazer sempre o que a pessoa deseja. Atender a todas as vontades daqueles com
quem nos relacionamos é um caminho seguro para a infelicidade. Firmeza e um determinado
rigor nas relações interpessoais são fatores úteis. Saber ceder é tão
importante quanto saber dizer não. O uso do discernimento permitirá tomar a
decisão correta a cada instante. Os erros trarão as lições que devemos
aprender. A meta é não cuidar das
pessoas buscando o caminho mais cômodo, mas fazendo aquilo que estimulará seu
crescimento e seu sentido de responsabilidade.
Seja
adulto ou criança, o ser humano precisa saber que há limites. A ausência da
aceitação de obstáculos é uma fonte de dor e violência psicológicas. A
moderação deve ser cultivada. Embora os limites
possam ser transcendidos através do amor e da compreensão, eles não devem ser
necessariamente eliminados. A diferença entre transcender e eliminar é
fundamental: a transcendência não é destruição, e a destruição não é
transcendência.
O
estabelecimento de limites nas relações solidárias faz com que o fortalecimento
da vontade individual ocorra sobre canais adequados. A administração correta do desejo é uma
ciência em si. Uma vontade forte, usada sem discernimento, cria uma quantidade
apreciável de dor. A mesma vontade, usada com eficiência em função de uma meta
correta, tem diversos efeitos positivos. Ela transcende o impulso cego, produz
uma compreensão ampla e lúcida da vida, e faz com que surja a felicidade
incondicional.
Cada
um deve aprender a administrar corretamente a sua vontade, dotando-a de força
solidária e discernimento. Esta meta pode ser ensinada a crianças e adultos, e o
indivíduo deve buscá-la por esforço próprio. Os limites nos relacionamentos são
linhas de respeito mútuo. Eles sustentam e protegem as relações solidárias, e devem
ser estabelecidos mutuamente. É correto aceitar os limites que os outros nos
colocam, a menos que haja sérios motivos para fazer o contrário.
A
arte de cuidar de alguém é inseparável do processo do autoconhecimento e da arte
de cuidar de si mesmo. Cuidamos dos outros como cuidamos de nós. Descuidar dos
outros é descuidar de si, e o egoísmo constitui sobretudo uma falta de atenção
e vigilância diante da vida. Nosso eu
emocional é nossa criança interna. Ele merece ser tratado com paz-ciência, estabilidade
e respeito, porque a auto-estima
emocional é indispensável no caminho do altruísmo. A generosidade começa no
modo como vemos a nós próprios, e isso não significa indulgência ou falta de
auto-crítica. Os erros devem ser olhados com rigor, mas desde o ponto de vista
do nosso potencial sagrado.
Um Planeta
Solidário
A
importância das descobertas de Charles Darwin não deve ser exagerada. O apoio mútuo,
e não a competição, constitui a lei da vida. Todos os seres progridem através da
ajuda recíproca. Animais, e até vegetais, ajudam uns aos outros. É falsa a
ideia de que a lei da selva é a lei da competição. Na verdade, reina a harmonia nas florestas. Já
no mundo humano, o sábio ajuda o inexperiente, e o novato auxilia seu irmão mais
velho. Cada família e cada nação é
sustentada pelo amor de uns pelos outros e pela prática do respeito e da
cooperação.
O
planeta Terra inteiro é um círculo multidimensional de laços de afeto que se
desdobram em diversos níveis de ação e percepção. Há dor e violência no
planeta, seguramente. Mas isso se deve à
presença provisória da ignorância, cujo final podemos acelerar em tudo aquilo
que depende de nós.
Aquele
que é apto para cuidar do outro sente prazer em não provocar dor, e sofre quando
causa sofrimento para alguém. Todo ser consciente sabe que o outro é seu
espelho. Só o desinformado bate no espelho e imagina que assim obterá alguma
vitória.
Todos São
Mestres, o Tempo Inteiro
Os
relacionamentos humanos são todos recíprocos e se alimentam de padrões
repetitivos estáveis, em torno dos quais surge a base instintiva sobre a qual a vida se desenvolve.
Em
consequência disso, cuidar da vida é criar
bons hábitos, primeiro para si mesmo, e em seguida na relação com os outros. Cuidar é também abandonar os hábitos
nocivos, e entre estes ocupam lugar de destaque o desperdício de tempo e o desperdício
de energia.
“Devemos
fazer aquilo que é correto e, com o tempo a ação se tornará agradável”, ensina
a tradição pitagórica.
Os
hábitos criam o caráter, e o caráter é um fator importante na determinação do
carma ou “destino” de alguém. A pessoa
deve primeiro estabelecer metas claras, e em seguida criar padrões de
comportamento que sejam coerentes com suas metas.
Lições
não nos faltam. Elas estão por todo lado ao nosso redor: o desafio é prestar
atenção a elas. Todos os seres educam
uns aos outros ao interagir. Todos são professores, e devem ter um sentido de responsabilidade por aquilo
que ensinam o tempo inteiro através de cada ação, cada palavra, sentimento e mesmo
pensamento articulado em silêncio.
Cuidar
ou educar seres de qualquer idade implica estimular a sua independência
solidária. Ajudar é também ensinar a combater as causas, e não só os efeitos do
sofrimento. Aquele que é auxiliado deve fazer por merecer, erguendo-se por força
própria em tudo que as circunstâncias permitem.
Cuidar Inclui o
Bom Combate
Assim
como há conflitos na alma humana, há combates no mundo. O bom guerreiro é um
cuidador e um protetor da vida e sabe agir com severidade. O policial civil e o
policial militar protegem a população. A Polícia Rodoviária atua na defesa da
vida. O soldado protege o povo.
Aquilo
que ocorre fora é uma exteriorização do mundo interno. No organismo físico do ser
humano, o sistema imunológico combate num estilo verdadeiramente policial-militar as infecções, intoxicações, agentes nocivos e todo
tipo de perigo para a saúde.
No
plano emocional e psicológico, quando alguém trata de disfarçar e suprimir conflitos,
imaginando que são desnecessários, a situação fica em geral mais difícil. Os combates disfarçados se travam ocultamente
e passam a ser desnecessariamente violentos. Esconder o conflito provoca
traições e punhaladas emocionais que seriam desnecessárias se houvesse coragem,
confiança mútua e bom senso suficientes para estabelecer uma transparência na
relação.
A
desarmonia disfarçada ou “suprimida” atua de modo mais perigoso no plano
subconsciente, enquanto que o conflito honesto, tornado consciente, é colocado
sobre a mesa e pode ser resolvido com mais facilidade, porque está sujeito a um
exame lúcido e equilibrado. O conflito honesto preserva o respeito e permite a
construção de uma paz durável. A
transparência é fonte de paz em todas as esferas da vida.
O Cuidado Como Função
da Alma
Para
viver corretamente, não basta querer cuidar de si e cuidar dos outros. A eficácia
de um indivíduo diante destes dois desafios práticos depende da sua capacidade
de ouvir o inaudível. Ele deve ser capaz
de escutar a voz sem palavras da sua própria
alma imortal. Nela existe um reservatório ilimitado de energia, conhecimento e vocação de vitória.
A
voz do silêncio transcende respeitosamente as variadas marés de pensamentos,
sentimentos, ações e reações. Ela vê a unidade dinâmica da vida sem negar ou
lamentar a diversidade e o contraste, a alegria e a dor. Ela ensina que a consciência interna do ser
humano não nasce com o nascimento do seu corpo físico, e não morre quando o
corpo é abandonado ao final de uma encarnação.
A
consciência profunda atua como uma Testemunha Sagrada. Ela possui a substância
da serenidade. Ela constitui a fonte de paz no interior de cada um.
Quando
amplia a conexão com sua alma imortal, o indivíduo passa a enxergar a vida como
uma rede ilimitada de reciprocidades em ação: nossa Terra é uma grande cooperativa de crescimento espiritual, e
tudo o que ocorre nela leva à iluminação ou esclarecimento dos seus habitantes.
O
bom Carma escreve certo por linhas tortas. A vida converte cada limão em
limonada. Ao perceber que a transformação de ignorância em Sabedoria e de sofrimento
em Felicidade é a Lei inevitável da evolução, diminuímos a taxa de desperdício
da nossa energia vital. Então compreendemos as implicações do fato de que
trabalhar para o bem dos outros é o modo mais eficaz de trabalhar para o nosso
próprio bem. Qualquer indivíduo que sofre pode fazer a experiência prática e verificar
por si mesmo este princípio básico da filosofia teosófica: é cuidando dos outros, com perseverança, que alguém cura do modo mais definitivo as
suas próprias feridas. Ao pensar
continuamente em seu próprio sofrimento,
o desinformado usa mal a força do
pensamento e torna a dor mais profunda sem necessidade.
A
teosofia aponta para uma cura natural, de dentro para fora, a partir do contato
individual e silencioso com a alma
espiritual, a essência sagrada do nosso ser. A consciência desta alma é
universal e por isso é abençoada. Ela
ensina que os seres humanos devem cuidar de si próprios, e que também devem
cuidar uns dos outros, do planeta Terra, e do futuro da humanidade como um
todo.
Aquele
que percebe estas verdades simples compreende que o egoísmo é uma ilusão. Os sonhos
egocêntricos estão situados fora da realidade.
O fato de os desinformados serem numerosos não os torna sábios, nem lhes
dá bom senso ou eficácia. Ao contrário. Quando
a ignorância materialista parece dominar, a sabedoria e o realismo da lei da
causa e efeito se tornam ainda mais necessários.
São
os poucos que fazem a diferença. É a filosofia do altruísmo auto-responsável, ensinada pela teosofia das diferentes
religiões e tradições filosóficas, que nos permite estar em contato com a
Realidade.
A
visão solidária da vida vem sendo ensinada a todos os povos e nações pelos
sábios de todos os tempos. A expansão dos horizontes liberta o indivíduo do
pesadelo doloroso criado pelas formas erradas de busca da felicidade. A filosofia da solidariedade universal abre diante
de cada ser humano o antigo caminho, morro acima, estreito e difícil, mas verdadeiro,
que conduz à bênção interior e incondicional.