10 de janeiro de 2014

A Arte de Cuidar de Alguém

O Caminho da Felicidade
Requer Renúncia e Discernimento

Carlos Cardoso Aveline

A vida merece atenção e cuidado 



A vida é feita de paradoxos. Para trilhar o caminho da bem-aventurança, o primeiro passo é querer o bem de todos os seres. O passo seguinte consiste em trabalhar de modo prático, durante muito tempo, para que os outros sejam felizes. O auto-esquecimento abrirá as portas do bem-estar durável.  

A substância da vida é feita de solidariedade. Cada criança é resultado da interação amorosa dos seus pais. Alguém cuida do indivíduo humano quando ele nasce, e alguém cuida dele quando morre.

Logo no início da vida, o ser humano começa a aprender a arte de cuidar de si mesmo. Esta arte tem limitações, porque mesmo na fase mais “independente” da sua vida haverá sempre alguém cuidando da pessoa. Seus amigos, os colegas, o chefe no trabalho, os professores, pais, dentistas, médicos, motoristas de táxi, filhos e irmãos ou mesmo netos, todos cuidam de algum modo de cada ser humano. A sociedade inteira protege e ajuda o cidadão individual, dando-lhe ruas calçadas para caminhar e outros tantos benefícios da vida em comunidade.

O fato de ser objeto de cuidados é agradável, mas cuidar dos outros é melhor ainda. O caminho da paz requer que pensemos no bem-estar interior daqueles a quem queremos bem, e devemos querer o bem de todos os seres. A atitude altruísta é benéfica para nós próprios. Aquilo que fazemos aos outros é o que retornará, cedo ou tarde, para nós. 

Cuidar Requer Lucidez e Desapego

Embora trabalhar para o benefício dos outros seja a fonte do verdadeiro bem-estar, isso não significa que a tarefa seja fácil. Cuidar de modo eficiente é uma arte, e também um mistério que implica boa dose de auto-sacrifício.

Coragem, renúncia, desapego e discernimento são necessários para cuidar dos outros seres como devem ser cuidados.  Ajudar não é fazer sempre o que a pessoa deseja. Atender a todas as vontades daqueles com quem nos relacionamos é um caminho seguro para a infelicidade. Firmeza e um determinado rigor nas relações interpessoais são fatores úteis. Saber ceder é tão importante quanto saber dizer não. O uso do discernimento permitirá tomar a decisão correta a cada instante. Os erros trarão as lições que devemos aprender.  A meta é não cuidar das pessoas buscando o caminho mais cômodo, mas fazendo aquilo que estimulará seu crescimento e seu sentido de responsabilidade.

Seja adulto ou criança, o ser humano precisa saber que há limites. A ausência da aceitação de obstáculos é uma fonte de dor e violência psicológicas. A moderação deve ser cultivada.  Embora os limites possam ser transcendidos através do amor e da compreensão, eles não devem ser necessariamente eliminados. A diferença entre transcender e eliminar é fundamental: a transcendência não é destruição, e a destruição não é transcendência.

O estabelecimento de limites nas relações solidárias faz com que o fortalecimento da vontade individual ocorra sobre canais adequados.  A administração correta do desejo é uma ciência em si. Uma vontade forte, usada sem discernimento, cria uma quantidade apreciável de dor. A mesma vontade, usada com eficiência em função de uma meta correta, tem diversos efeitos positivos. Ela transcende o impulso cego, produz uma compreensão ampla e lúcida da vida, e faz com que surja a felicidade incondicional.

Cada um deve aprender a administrar corretamente a sua vontade, dotando-a de força solidária e discernimento. Esta meta pode ser ensinada a crianças e adultos, e o indivíduo deve buscá-la por esforço próprio. Os limites nos relacionamentos são linhas de respeito mútuo. Eles sustentam e protegem as relações solidárias, e devem ser estabelecidos mutuamente. É correto aceitar os limites que os outros nos colocam, a menos que haja sérios motivos para fazer o contrário. 

A arte de cuidar de alguém é inseparável do processo do autoconhecimento e da arte de cuidar de si mesmo. Cuidamos dos outros como cuidamos de nós. Descuidar dos outros é descuidar de si, e o egoísmo constitui sobretudo uma falta de atenção e vigilância diante da vida. Nosso eu emocional é nossa criança interna. Ele merece ser tratado com paz-ciência, estabilidade e respeito, porque a auto-estima emocional é indispensável no caminho do altruísmo. A generosidade começa no modo como vemos a nós próprios, e isso não significa indulgência ou falta de auto-crítica. Os erros devem ser olhados com rigor, mas desde o ponto de vista do nosso potencial sagrado.

Um Planeta Solidário   

A importância das descobertas de Charles Darwin não deve ser exagerada. O apoio mútuo, e não a competição, constitui a lei da vida. Todos os seres progridem através da ajuda recíproca. Animais, e até vegetais, ajudam uns aos outros. É falsa a ideia de que a lei da selva é a lei da competição.  Na verdade, reina a harmonia nas florestas. Já no mundo humano, o sábio ajuda o inexperiente, e o novato auxilia seu irmão mais velho.  Cada família e cada nação é sustentada pelo amor de uns pelos outros e pela prática do respeito e da cooperação.

O planeta Terra inteiro é um círculo multidimensional de laços de afeto que se desdobram em diversos níveis de ação e percepção. Há dor e violência no planeta, seguramente.  Mas isso se deve à presença provisória da ignorância, cujo final podemos acelerar em tudo aquilo que depende de nós.

Aquele que é apto para cuidar do outro sente prazer em não provocar dor, e sofre quando causa sofrimento para alguém. Todo ser consciente sabe que o outro é seu espelho. Só o desinformado bate no espelho e imagina que assim obterá alguma vitória.

Todos São Mestres, o Tempo Inteiro

Os relacionamentos humanos são todos recíprocos e se alimentam de padrões repetitivos estáveis, em torno dos quais surge a base instintiva sobre a qual a vida se desenvolve.  

Em consequência disso, cuidar da vida é criar bons hábitos, primeiro para si mesmo, e em seguida na relação com os outros. Cuidar é também abandonar os hábitos nocivos, e entre estes ocupam lugar de destaque o desperdício de tempo e o desperdício de energia.

“Devemos fazer aquilo que é correto e, com o tempo a ação se tornará agradável”, ensina a tradição pitagórica.

Os hábitos criam o caráter, e o caráter é um fator importante na determinação do carma ou “destino” de alguém.  A pessoa deve primeiro estabelecer metas claras, e em seguida criar padrões de comportamento que sejam coerentes com suas metas.

Lições não nos faltam. Elas estão por todo lado ao nosso redor: o desafio é prestar atenção a elas.  Todos os seres educam uns aos outros ao interagir. Todos são professores, e devem ter um sentido de responsabilidade por aquilo que ensinam o tempo inteiro através de cada ação, cada palavra, sentimento e mesmo pensamento articulado em silêncio.    

Cuidar ou educar seres de qualquer idade implica estimular a sua independência solidária. Ajudar é também ensinar a combater as causas, e não só os efeitos do sofrimento. Aquele que é auxiliado deve fazer por merecer, erguendo-se por força própria em tudo que as circunstâncias permitem.   

Cuidar Inclui o Bom Combate

Assim como há conflitos na alma humana, há combates no mundo. O bom guerreiro é um cuidador e um protetor da vida e sabe agir com severidade. O policial civil e o policial militar protegem a população. A Polícia Rodoviária atua na defesa da vida.  O soldado protege o povo.  

Aquilo que ocorre fora é uma exteriorização do mundo interno. No organismo físico do ser humano, o sistema imunológico combate num estilo verdadeiramente  policial-militar  as infecções, intoxicações, agentes nocivos e todo tipo de perigo para a saúde.  
 
No plano emocional e psicológico, quando alguém trata de disfarçar e suprimir conflitos, imaginando que são desnecessários, a situação fica em geral mais difícil.  Os combates disfarçados se travam ocultamente e passam a ser desnecessariamente violentos. Esconder o conflito provoca traições e punhaladas emocionais que seriam desnecessárias se houvesse coragem, confiança mútua e bom senso suficientes para estabelecer uma transparência na relação.

A desarmonia disfarçada ou “suprimida” atua de modo mais perigoso no plano subconsciente, enquanto que o conflito honesto, tornado consciente, é colocado sobre a mesa e pode ser resolvido com mais facilidade, porque está sujeito a um exame lúcido e equilibrado. O conflito honesto preserva o respeito e permite a construção de uma paz durável.  A transparência é fonte de paz em todas as esferas da vida.     

O Cuidado Como Função da Alma

Para viver corretamente, não basta querer cuidar de si e cuidar dos outros. A eficácia de um indivíduo diante destes dois desafios práticos depende da sua capacidade de ouvir o inaudível.  Ele deve ser capaz de escutar a voz sem palavras da sua própria alma imortal. Nela existe um reservatório ilimitado de energia, conhecimento e vocação de vitória.

A voz do silêncio transcende respeitosamente as variadas marés de pensamentos, sentimentos, ações e reações. Ela vê a unidade dinâmica da vida sem negar ou lamentar a diversidade e o contraste, a alegria e a dor.  Ela ensina que a consciência interna do ser humano não nasce com o nascimento do seu corpo físico, e não morre quando o corpo é abandonado ao final de uma encarnação.

A consciência profunda atua como uma Testemunha Sagrada. Ela possui a substância da serenidade. Ela constitui a fonte de paz no interior de cada um.   

Quando amplia a conexão com sua alma imortal, o indivíduo passa a enxergar a vida como uma rede ilimitada de reciprocidades em ação: nossa Terra é uma grande cooperativa de crescimento espiritual, e tudo o que ocorre nela leva à iluminação ou esclarecimento dos seus habitantes.  

O bom Carma escreve certo por linhas tortas. A vida converte cada limão em limonada. Ao perceber que a transformação de ignorância em Sabedoria e de sofrimento em Felicidade é a Lei inevitável da evolução, diminuímos a taxa de desperdício da nossa energia vital. Então compreendemos as implicações do fato de que trabalhar para o bem dos outros é o modo mais eficaz de trabalhar para o nosso próprio bem. Qualquer indivíduo que sofre pode fazer a experiência prática e verificar por si mesmo este princípio básico da filosofia teosófica: é cuidando dos outros, com perseverança,  que alguém cura do modo mais definitivo as suas próprias feridas.  Ao pensar continuamente  em seu próprio sofrimento,  o desinformado usa mal a força do pensamento e torna a dor mais profunda sem necessidade.

A teosofia aponta para uma cura natural, de dentro para fora, a partir do contato individual e silencioso com a alma espiritual, a essência sagrada do nosso ser. A consciência desta alma é universal e por isso é abençoada.  Ela ensina que os seres humanos devem cuidar de si próprios, e que também devem cuidar uns dos outros, do planeta Terra, e do futuro da humanidade como um todo.

Aquele que percebe estas verdades simples compreende que o egoísmo é uma ilusão. Os sonhos egocêntricos estão situados fora da realidade.  O fato de os desinformados serem numerosos não os torna sábios, nem lhes dá bom senso ou eficácia. Ao contrário.  Quando a ignorância materialista parece dominar, a sabedoria e o realismo da lei da causa e efeito se tornam ainda mais necessários.

São os poucos que fazem a diferença.  É a filosofia do altruísmo auto-responsável, ensinada pela teosofia das diferentes religiões e tradições filosóficas, que nos permite estar em contato com a Realidade. 

A visão solidária da vida vem sendo ensinada a todos os povos e nações pelos sábios de todos os tempos. A expansão dos horizontes liberta o indivíduo do pesadelo doloroso criado pelas formas erradas de busca da felicidade.  A filosofia da solidariedade universal abre diante de cada ser humano o antigo caminho, morro acima, estreito e difícil, mas verdadeiro, que conduz à bênção interior e incondicional.  
 
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Para conhecer a teosofia original desde o ângulo da vivência direta, leia o livro “Três Caminhos Para a Paz Interior”, de Carlos Cardoso Aveline.


Com 19 capítulos e 191 páginas, a obra foi publicada em 2002 pela Editora Teosófica de Brasília.   

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