A Atenção Correta Permite Diferenciar o Joio do Trigo
Carlos Cardoso Aveline
A vida é como um campo de trigo, e, nela,
buscar a sabedoria é fazer escolhas conscientes
A vida é um grande teste para o discernimento
daquele que procura viver em paz consigo e com os outros. Luz e sombra, verdade
e mentira, joio e trigo se misturam a cada instante no agitado mundo humano. Em
consequência, a confiança cega raramente é uma boa base para as relações
humanas e sociais. A qualidade dos relacionamentos só tem a ganhar quando eles
se guiam por princípios como a transparência, o controle democrático e o livre
acesso à informação. A abertura ao diálogo e ao questionamento é um gesto
preventivo que impede o surgimento da hipocrisia, das maldades açucaradas e das
mentiras que parecem verdades.
Nenhum grupo ou instituição está livre de enfrentar o
desafio da desonestidade. Nem sempre há um grau absoluto de sinceridade na
relação de casal, entre amigos, irmãos ou colegas de trabalho. Em qualquer
profissão, país ou religião, há gente sincera mas, ao mesmo tempo, há outras
pessoas que se julgam muito espertas. A possibilidade de ação desonesta está
presente em todas as atividades humanas.
Há, também, ilusões e falsidades que envolvem a busca de
ideais, a prática espiritual e a vivência do sagrado. Elas afetam diretamente a
relação da pessoa com sua alma imortal. Por isso, os líderes comunitários ou
espirituais e todos os grupos voltados para o bem comum deveriam ser
especialmente cuidadosos com questões como a capacidade de aprender com os
próprios erros, a aceitação de opiniões divergentes, a liberdade de pensamento
e a coerência entre discurso e prática.
Sempre que a ilusão envolve mais de uma pessoa, a velha
lei da oferta e da demanda entra em vigor. Se alguém engana, é porque uma outra
pessoa está aceitando ser enganada, ou, às vezes, até buscando isto
inconscientemente. O cidadão que procura desesperadamente um alívio para os
seus sofrimentos mas prefere não assumir responsabilidade direta sobre sua vida
acaba criando uma grande oportunidade para ações desonestas. Uma tarefa dos
líderes do século 21 é eliminar da cultura humana aquele messianismo pelo qual
se cria a ilusão de que algum salvador providencial - político, religioso, etc. - fará, sozinho, a tarefa que é de
todos e de cada um. Não há muletas no processo da libertação, seja ela política,
social ou espiritual. O salvador todo-poderoso e o espertalhão são, quase
sempre, as duas faces da mesma moeda falsa, aceitada por aquele que pretende
alcançar a libertação sem esforço próprio.
O Rei Prasenajit
A escritora Helena Blavatsky conta que há cerca de 2500
anos o grande rei Prasenajit, amigo e protetor de Gautama Buda, sugeriu ao
mestre que ele fizesse milagres públicos. Assim, ele iria demonstrar a todos a
força da sua sabedoria. Gautama respondeu: “Grande rei, eu não ensino a Lei aos
meus discípulos dizendo-lhes que usem os seus poderes sobrenaturais para fazer,
diante dos brâmanes e dos notáveis, os maiores milagres que o homem já viu. Eu
lhes digo, quando ensino a Lei: ‘Vivam, ó santos, ocultando suas grandes obras e exibindo seus pecados’.” [1] Este ensinamento não é
exclusividade do budismo. No Novo Testamento, Jesus Cristo dá um exemplo de
completa humildade pessoal e, em momentos decisivos do evangelho, recusa-se a
fazer milagres ou demonstrar os seus poderes, mesmo sabendo que, por isso, será
torturado até a morte. São Francisco de Assis sempre falou de si como de um
pecador: os outros é que o reconheciam como santo. A vida dos grandes místicos
das várias religiões mostra atitude semelhante, e não por acaso.
A cura da alma humana é um processo natural: a boa
cicatrização ocorre de dentro para fora e só é possível quando a ferida está em
contato com o ar livre da verdade. O hipócrita pensa que é esperto e tapa suas
feridas, mas isto o faz apodrecer por dentro. Os sentimentos negativos têm o
mau costume de esconder sua face, e quanto mais disfarçado estiver o egoísmo
na alma do praticante religioso, maior é o perigo que o ameaça.
Ao abordar o tema da sinceridade em seu livro “Meditação
Taoísta”, Thomas Cleary cita uma antiga escritura chinesa:
“Não há nada no mundo que não tenha duas versões, a
verdadeira e a falsa. A prática do Caminho também pode ser verdadeira ou falsa,
portanto, os estudantes devem, primeiro, distinguir as diferenças. (...) A
verdadeira prática é a sinceridade total. Não é evitar o mundo ou recitar as
escrituras.(...) O falso é antagônico ao verdadeiro, assim, se não for
eliminado, prejudicará o verdadeiro. Mas você deve achar a maneira adequada de
livrar-se dele. Se não achar esta maneira (...) o falso não poderá ser
eliminado e o verdadeiro certamente ficará prejudicado.” [2]
Para o taoismo, o indivíduo deve se purificar por dentro antes
de se purificar por fora. As religiões autênticas ensinam o desprezo pelas
aparências. Armado de bom senso, discernimento e resistência à dor, o estudante
da sabedoria divina percebe que não existe uma linha divisória clara separando
o mundo espiritual do mundo material. Fazer algo “em nome de Deus” não lhe dá
garantia alguma de que sua ação seja boa ou correta: a história humana está cheia
de comprovações deste fato. Também não basta crer em alguma coisa divina para
que as causas da dor desapareçam. É necessário que o indivíduo compreenda
gradualmente o modo como funciona o egoísmo em sua vida cotidiana, para que ele
possa eliminar aos poucos o egoísmo da sua prática religiosa, da sua militância
social ou atividade espiritualista.
A purificação das
motivações pessoais é um processo fascinante e sagrado. Tudo depende das
intenções, porque elas é que definem o nosso rumo. Mas a mudança para melhor é
gradual. Durante muito tempo uma forte devoção espiritual pode servir de fachada
para propósitos inconscientemente egoístas. Há pessoas que adoram o objeto da
sua devoção com o objetivo de obter algo em troca. Muitas vezes, depois de
algum tempo se decepcionam e repetem a tentativa com outro objeto de devoção.
Este tipo de praticante existe em todas as grandes religiões do mundo, e também
nos círculos esotéricos e espiritualistas. O ingênuo e o desinformado buscam
estabelecer uma relação de troca comercial com a divindade. Eles desejam um
investimento seguro. Querem garantir vantagens materiais, ou lucros espirituais como êxtase,
santidade e prestígio. Assim, abrem as portas para os desonestos tirarem
proveito da sua ignorância. O sábio indiano Ramana Maharshi (1879-1950)
discutiu esta questão com muita franqueza.
Considerado um dos maiores sábios que conviveram com a
humanidade no século vinte, Ramana atingiu a iluminação aos 17 anos de idade.
Algum tempo depois, ele passou a viver no seu ashram ou comunidade espiritual em Tiruvanamalai, no sul da Índia.
Ele se mantinha em um estado permanente de contemplação mística. Durante
algumas horas por dia, no entanto, ele aceitava responder perguntas. Certa vez
um discípulo mencionou as dezenas de presentes que ele recebia, e dos quais não
parecia tomar sequer conhecimento. Os numerosos visitantes do ashram lhe traziam lembranças e
oferendas com o objetivo de obter a graça divina. Sri Ramana Maharshi respondeu
perguntando:
“Por que eles trazem presentes? Eu os quero? Mesmo que eu
os recusasse, eles lançariam os presentes sobre mim! Para quê? Não é o mesmo
que lançar a isca para fisgar o peixe? O pescador está ansioso para
alimentar-se do peixe!”
Ramana via este tipo de devoção pessoal como uma
tentativa de suborno, e uma forma de fuga daquilo que realmente interessa.
Quando seus seguidores quiseram comemorar seu aniversário com uma grande festa,
ele escreveu um protesto: “Vocês, que querem comemorar aniversários, procurem
compreender, primeiro, seus próprios nascimentos. O verdadeiro dia do
nascimento de alguém é quando ele entra Naquilo que transcende o nascimento e a
morte – o Ser Eterno. Pelo menos, em seus aniversários, vocês deveriam lamentar
seu ingresso neste mundo ilusório (samsara).
Glorificar-se nele e celebrá-lo é como enfeitar e dar grande importância a um
corpo sem vida. Buscar o seu verdadeiro Ser e mergulhar nele – isto é
sabedoria.” [3]
O Êxtase de João
da Cruz
Alguns dos melhores instrutores preferem usar a linguagem
direta. Discutindo a questão da falsidade, o místico espanhol São João da Cruz
(1542-1591) escreveu:
“Não há mentira tão disfarçada e artificiosa que, se a
examinarmos bem, não venhamos a descobri-la, de um jeito ou de outro. Nem
existe demônio transfigurado em anjo de luz que, bem observado, não dê a
perceber quem é. Nem há hipócrita tão esperto, dissimulado e fingido que,
depois de poucas diligências e exames, não venhamos a descobrir.” [4]
Para isso, porém, é preciso eliminar o processo de autoilusão.
Só a honestidade consigo mesmo dá a alguém o discernimento necessário para
identificar corretamente a falsidade no mundo externo. Portanto, uma das
principais tarefas do guerreiro da verdade é destruir as sementes da ilusão e
da hipocrisia dentro de si. É claro que ele só pode fazer isto observando
serenamente os seus erros. Mas para manter a serenidade há uma condição prévia
central. Todos os sábios tiveram que passar pelo desafio. Ele deve ser
indiferente em relação à dor e ao prazer pessoais.
Conta-se que certo dia, ao escutar a declamação de uns
poucos versos durante uma reunião, São João da Cruz teve uma súbita expansão de
consciência, imobilizou seu corpo físico e ficou durante um longo tempo em
completo êxtase. Os cinco versos ouvidos por ele, de grande simplicidade,
abordavam o princípio estoico da indiferença à dor. Eles estão publicados atualmente
em suas Obras Completas, e são os seguintes:
“Quem não provou amarguras,
No vale humano da dor,
Nada entende de doçuras,
E desconhece o que é o amor;
Amarguras são o manto dos que amam com ardor.”
[ “Obras Completas”, p. 78 ]
A fuga automática e instintiva do sofrimento leva muitos
a falsear a verdade, a aceitar a mentira e a abrir espaço para diferentes
formas de desonestidade, consciente e inconsciente. Por este motivo, os grandes
sábios e filósofos de todos os tempos têm sido indiferentes à dor pessoal. Eles
sabem que a graça divina surge de dentro para fora na alma que renuncia a
manipular a vida. A bem-aventurança procura fielmente aquele que não foge da
dor ou da verdade.
Como Detectar a Desonestidade
Em qualquer movimento comunitário ou espiritualista,
quanto mais espírito crítico houver em relação aos processos de liderança,
menor será o perigo da vaidade e do amor pelo poder. Os padrões de liderança
corretos surgem junto com toda uma nova cultura da solidariedade. Não existe um
método infalível para detectar desonestidade. No entanto, aqui estão alguns
pontos básicos que permitem avaliar melhor um líder espiritual e aumentar a
autenticidade de nossos movimentos e instituições.
1) O uso da transparência.
O bom líder faz da sua vida um processo aberto e
transforma os outros em fiscais do que faz. Ele nunca considera como inimigo
quem o questiona de modo sério e leal. Ele aprende, com as críticas, a
melhorar-se cada vez mais. O desonesto, por outro lado, é escravo da sua
própria esperteza. Ele abusa da astúcia, constrói uma imagem falsa de si e é um
manipulador de aparências – até que o feitiço se volta contra ele.
2) Os mecanismos de poder.
Os
mecanismos de tomada de decisão do grupo ou instituição que você quer avaliar
são abertos, ou fechados? A comunhão espiritual significa, entre outras coisas,
confiança na assembleia, livre acesso à informação, avaliação crítica e
autocrítica, escolha democrática dos rumos a seguir. O verdadeiro líder saberá
apontar o melhor caminho de modo que todos o reconheçam como legítimo. Já o desonesto
fará segredo de muitas coisas, alegará que está em contato direto com alguma
inteligência divina e inventará desculpas variadas para decidir tudo sozinho.
3) A administração do dinheiro.
Para manter a boa saúde ética e espiritual de um grupo
humano as questões materiais e que envolvem dinheiro devem ser abertamente
discutidas, anotadas e resolvidas com toda clareza. As eventuais doações contribuições
à instituição ou ao grupo devem ser feitas de modo claro e impessoal. Mesmo
quando há uma liderança fortemente estabelecida, deve haver transparência e
controle democrático em relação a tudo o que envolve dinheiro e poder de
decisão.
4) A relação entre palavra e ação.
Observe se o líder tenta honestamente vivenciar o ideal
que ele colocou diante de si. O líder maduro luta consigo mesmo. Ele cai e
levanta inúmeras vezes até unir sentimento, pensamento, ação e palavras com o
fio sólido da coerência e da lealdade a si próprio. Como confia em si, não teme
o aparecimento dos seus erros. O desonesto não acredita no seu próprio coração
e, por isso, procura viver das aparências. Em alguns casos ele diz uma coisa, pensa outra, deseja uma
terceira coisa e faz algo que nada
tem a ver com os itens anteriores. Ou então diz uma coisa para cada pessoa,
tentando agradar a todos e causando, assim, grande confusão.
5) O método de tentativa e erro.
Se o líder se comportar como se fosse infalível ou
superior aos demais, mau sinal. Caso a instituição se coloque como única portadora
da luz e da sabedoria, o caso é grave. O bom líder se protege das suas próprias
ilusões estimulando o espírito crítico nos demais. Assim ele testa os possíveis
pontos fracos da sua estratégia.
6) A questão pedagógica.
Para os esquemas desonestos, é fundamental vender a
ilusão de que alguns sabem e outros não sabem. Assim os falsos professores transformam
os cidadãos em meros consumidores e ouvintes. O fato é que ninguém sabe
tanto que necessite falar o tempo todo, e ninguém sabe tão pouco que não tenha
nada de importante a ensinar. O instrutor é apenas um auxiliar do processo
autônomo de aprendizagem. Ele se coloca a serviço do aprendiz. Não pretende
colocar o aprendiz a seu serviço.
NOTAS:
[1] “Ísis Sem Véu”, de Helena P.
Blavatsky, Ed. Pensamento, SP, edição em 4 volumes. Ver o volume II, p. 272.
[2] “Meditação
Taoísta”, coletânea organizada por Thomas Cleary, Editora Teosófica, Brasília,
2001, 130 pp., ver p. 123.
[3] Sobre o tema dos presentes, veja
a p. 95 da obra “Ensinamentos Espirituais”, Ramana Maharshi, Ed. Cultrix, SP,
148 pp. Sobre o aniversário, veja a p. 134 de “The Collected Works of Ramana
Maharshi”, edited by Arthur Osborne, Sri Ramanasraman, Tiruvannamalai, South
India, 1979, 293 pp.
[4] “São João da Cruz, Obras
Completas”, Editora Vozes, Petrópolis, RJ, 1996, edição em um volume de 1.149
pp. Ver pp. 76-77.
000
O texto acima foi publicado inicialmente com o título “Combatendo a Picaretagem Espiritual”.
000
Em setembro de 2016, depois de cuidadosa análise da situação
do movimento esotérico internacional, um grupo de estudantes decidiu formar a Loja
Independente de Teosofistas, que tem como uma das suas prioridades a construção de um futuro melhor nas
diversas dimensões da vida.
000