As Leis Podem
Caducar, Mas o
Princípio da
Equidade Permanece
Visconde de
Figanière
Nota Editorial de 2020:
Um Mestre de
Sabedoria escreveu em 1884:
“Todo
teosofista ocidental deveria saber e lembrar - especialmente aqueles que quiserem
ser nossos seguidores - que em nossa Fraternidade todas as personalidades
submergem em uma ideia - o direito abstrato e a justiça prática absoluta para
todos.” [1]
O notável
texto A Justiça e a Equidade, do
Visconde de Figanière, é a primeira parte do Memorando ou “Memória” enviado dia
7 de abril de 1881 ao Conselheiro Miguel Martins d’Antas, Ministro e Secretário
de Estado dos Negócios Estrangeiros, em Lisboa.
A
Loja Independente de Teosofistas possui cópia fac-similar do documento manuscrito,
assim como do processo administrativo de aposentação do Visconde, do qual o
texto faz parte. [2]
Miguel
d’Antas fora nomeado Ministro de Estado em 25 de março daquele ano.
Sendo
um experiente diplomata de carreira, como o Visconde, o novo ministro
partilhava até certo ponto a mesma visão de mundo de Figanière. É significativo,
e pode não ser coincidência, o fato de que o Memorando de Figanière foi submetido ao ministro poucos dias depois
de este assumir o cargo. No entanto, a permanência de Miguel d’Antas no ministério
foi breve. Em novembro de 1881, o governo foi dissolvido e d’Antas voltou ao
posto que ocupara na representação diplomática de Portugal em Londres.
As circunstâncias
históricas são sempre mutáveis, mas permanece indelével o valor filosófico do
texto do Visconde sobre o princípio universal da equidade. O estudo é agora
publicado pela primeira vez desde que foi redigido em 1881.
(Carlos
Cardoso Aveline)
A
Justiça e a Equidade
Visconde
de Figanière
Imperfeição de toda a lei humana
O bem conhecido
princípio dos Legistas “summum jus, summa
injuria” (“muita lei, muita injustiça”) [3], ou, segundo a variante de um poeta, “jus summum saepe summa est malitia” (“a suprema justiça é com
frequência a suprema maldade”) [4], enuncia
uma verdade confessada por todos; se não expressamente desde a remota
antiguidade, ao menos implicitamente, visto que, resolvendo-se no conceito da injustiça, é esta intuitiva no homem,
despertando-se espontaneamente até nos indivíduos de menor idade, como bem
observa um dos mais estimados publicistas [5]
contemporâneos. (Bluntschli, Das Moderne
Volkerrecht, Einleit., p. 1)
É
uma consequência da imperfeição a que se acham sujeitas as leis humanas, a
qualquer ramo que pertençam, internacional, político, civil ou criminal; que,
tendo por objetivo a generalidade, não podem prever todos os casos particulares
que estão na esfera da sua ação, o que é uma prerrogativa, um condão, uma
excelência exclusiva da Lei Natural, da Lei Divina.
Recurso à Equidade
como princípio corretivo
O
princípio corretivo chamado de epikeia
pelos teólogos, que conservaram o termo grego, é chamado pelos juristas de equidade. Sua virtude é mitigar o rigor
da lei quando, pela sua universalidade, ela se torna, por circunstâncias
imprevistas, defeituosa ou deficiente na sua aplicação a casos particulares. O
princípio é reconhecido tanto pelos publicistas - que, desde Grócio, têm
escrito sobre o direito convencional das nações e concretamente quanto à
interpretação dos Tratados - como pelos legisladores, teólogos e jurisconsultos
desde tempos antigos.
Princípio reconhecido
na prática, desde a remota antiguidade
A
ideia da equidade é tão ingênita no homem que, como sempre sucede em tais
casos, os seus efeitos apareceram muito antes de se lhe ter achado a fórmula. Se
Aristóteles a definiu, a ideia contudo tinha já, havia tempo, de certo modo uma
manifestação positiva nas leis civis dos atenienses, pois que estas reconheciam
a arbitragem como meio extrajudicial
de resolver pleitos, ou, pode mesmo dizer-se, quase judicial, porque os
árbitros estavam sujeitos a determinadas regras e condições.
O
fato deu-se de um modo mais completo em Roma. Muito antes da criação do cargo
de Pretor, cujos decretos tinham ou deviam ter por base a equidade, esta, já
nos começos da República, adquirira certa força pela confirmação que obtinham,
em casos de unanimidade, os responsa
prudentium [6]; e uma vez que estes sábios ou peritos interpretavam o direito, o ofício
fundava-se forçosamente na ideia da equidade; embora em sentido menos amplo [7] do que subsequentemente, quando o
Pretor veio suavizar o rigor da própria lei por virtude de “ficções legais”,
antecipando assim a máxima dos juristas ingleses: Lex fingit ubi subsistit aequitas (“A lei finge, onde
a equidade subsiste”).
Particularidade
significativa
Uma
circunstância que dá certo relevo a essas primitivas manifestações da equidade
na legislação romana é que, naqueles primeiros tempos, a interpretação das leis
cabia ao Colégio dos Pontífices (Just.
Digest., L.1,T.2, C.6) [8],
sendo digno de reparo que, em Inglaterra, única nação, exceto a romana, na qual
a equidade mereceu a importância de uma prática forense independente (porque
sem dúvida o direito individual e as
suas consequências lógicas na ação das leis tomaram no povo romano e no inglês
um desenvolvimento e um rigor de princípios muito além de quanto se tenha visto
em outros povos); em Inglaterra, dizíamos, o cargo de Chanceler-mor do Reino,
de cuja alçada, abaixo do poder régio, se originaram mais tarde os diversos
recursos em equidade, foi igualmente sempre desempenhado por um eclesiástico,
até o século XVI. Se tal circunstância se pode atribuir à necessidade que havia
de habilitações literárias para o exercício de tão alto cargo (as quais, nos primeiros
séculos, eram raras fora do sacerdócio), nem por isso se destrói a importância do
fato devido ao maior respeito que aquela ordem de pessoas merecia em matéria de
equidade, que em última análise é filha
da consciência.
Subsiste a
equidade, apesar da lei
Há
casos em que o permitido pela letra
da lei deve todavia ser reprovado em vista do seu verdadeiro intento e da sua
legítima significação; há casos também em que o determinado por ela
seria uma verdadeira injustiça em presença de circunstâncias imprevistas. Não
porque a lei seja injusta, mas
somente imperfeita. Não porque a
equidade seja contrária à lei, mas
apenas porque lhe é superior. A lei
pode caducar; mas a equidade subsiste eternamente,
dominando a consciência do homem naquilo que a lei não pode atingir ou afetar.
Assim
como a equidade privada, servindo de regra nas relações íntimas em que a lei guarda silêncio, não
contraria nem pode contrariar a lei - que se cala -, assim também não se pode
dizer que a equidade pública seja oposta à lei que rege os negócios em que
todos têm interesse; embora a equidade conceda a algumas pessoas em condições especiais aquilo que a lei,
conforme as regras gerais da Justiça,
proíbe na generalidade.
Os
princípios e as regras da Justiça, por mais amplamente que sejam formulados, sempre
envolvem, tanto como se assim expressamente o declarassem, uma exceção nos casos particulares em que a sua aplicação literal
equivalesse a uma quebra da equidade.
Circunstância que
justifica a aplicação da Equidade
Sem
entrar num estudo mais profundo do assunto, nem considerar as diversas
circunstâncias que podem ser causa justificada da interpretação de qualquer cláusula de uma lei, basta, para o objeto
deste Memorando, estabelecer em tese, ainda que como um postulado, que uma das
supostas circunstâncias se verifica quando a aplicação da lei, num caso
especial, se mostra demasiado dura e
onerosa, dando lugar a dizer-se: “Hoc
quidem perquam durum est: sed ita Lex scripta est” (“Isto é de fato
excessivamente duro, mas é assim que a lei está escrita e esta é a lei”). (Just. Digest. L.40, T.9, C.12) E isto
embora a respectiva cláusula pareça muito clara, o que não obsta a que seja
omissa.
Como deve ser
aplicada
Então
cabe ao Juiz procurar quais sejam o pensamento
e a vontade do legislador, ou,
por outra, o espírito e a alma da lei, que, até certo ponto, se deve preferir à
sua simples letra (P. Dens, Theol. Ad us.
Sem. tom. 2, Tract. de Leg. nº
56; Ligor. Theol. Mor., L.1, N.200; et
al.); procurar esse pensamento na razão
da lei:
“A razão de uma lei ou tratado, ou seja, o
motivo pelo qual a lei ou o tratado foram feitos, a visão que o texto pretende
expressar, é um dos meios mais seguros de
estabelecer o seu verdadeiro significado; deve-se ter muita atenção, sempre
que se trata de explicar um ponto obscuro,
ambíguo, indefinido, seja de uma lei ou de um tratado, ou de fazer a sua aplicação a um caso
particular”. [9] (Vattel, Droit des Gens, L. 2, Ch. 17, §
287) Ou, por outra, procurar este pensamento pela interpretação lógica, como a chama o exímio
jurisconsulto português Pascoal José de Mello Freire (Hist. Jur. Civ. Lus., § 124); e determinar se, pelo imprevisto do caso, a lei não poderá ser atenuada na sua
aplicação a tal caso.
NOTAS:
[1] “Cartas dos
Mahatmas”, Editora Teosófica, Brasília, 2001, edição em dois volumes, ver volume
II, Carta 120, de 1884, página 260. (CCA)
[2] Na transcrição do texto a seguir,
eliminamos algumas abreviaturas e atualizamos a ortografia. Quando necessário
para a compreensão do texto por parte dos leitores do século 21, substituímos
termos caídos em desuso por sinônimos mais conhecidos. Um exemplo disso é o
termo editos (sem acento), que se
refere a documentos emitidos pelos pretores. Colocamos seu equivalente “decretos”. (CCA)
[3] Ou seja, leis em
excesso não produzem efetiva justiça. Veja-se Cícero, De Officiis, I, 33. (CCA)
[4] Terêncio, Heauton Timorumenos, IV, 5. (Nota do
Visconde de Figanière)
[5] Publicistas -
autores que escrevem sobre direito público. (CCA)
[6] Respostas e
pareceres de advogados ou juristas notáveis sobre questões submetidas a eles.
(CCA)
[7] Para facilitar a compreensão, nesta
frase substituímos “porquanto” por “uma vez que”; “posto que” por “embora”; e “lato”
por “amplo”. (CCA)
[8] O Colégio de Pontífices reunia na Roma antiga os principais
sacerdotes. (CCA)
[9] No manuscrito original, a
citação está em francês: “La raison de la loi ou du traité,
c’est-à-dire, le motif qui a porté à les
faire, la vue que l’on s’y est proposée, est
un des plus sûrs moyens d’en établir le véritable sens; l’on doit y faire
grande attention, toutes les fois qu’il s’agit ou d’expliquer un point obscur, équivoque, indéterminé, soit d’une loi,
soit d’un traité, ou d’en faire
l’application à un cas particulier.” (CCA)
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O texto acima foi publicado
nos websites associados dia 18 de agosto de 2020.
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Visconde escrita por Pinharanda Gomes: “Gnose e Liberdade”.
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