A Relação entre
Humanos e Animais
Ganha Relevo
Crescente e Visibilidade
Maurício Andrés
Ribeiro
“Contaram-me uma mentira durante toda a
minha vida dizendo que eu fazia
parte da única espécie
racional do planeta. Mentira profunda.
Existe uma
racionalidade profunda dentro de cada espécie. E eu tive
que aprender a compreender essa
racionalidade.”
Sebastião Salgado,
fotógrafo do projeto Gênesis
O dicionário
Aurélio define como pessoa “cada ser humano considerado na sua individualidade
física ou espiritual, portador de qualidades que se atribuem exclusivamente à
espécie humana, quais sejam, a racionalidade, a consciência de si, a capacidade
de agir conforme fins determinados e o discernimento de valores”.
Animais
são seres com corpo, mente, emoções, sentimentos, que têm dor e medo e que
aprendem, dentro de seu estágio de consciência. As capacidades
cognitivas dos animais são crescentemente reconhecidas. Merecem o status de
pessoas, tais como as pessoas físicas, as pessoas jurídicas, as pessoas
angelicais.
A
diversidade de postagens e de compartilhamento de vídeos nas redes sociais e no
Facebook mostra como as pessoas não-humanas gostam de brincar, com uma
mentalidade muito afim com as crianças. O relacionamento afetivo de seres
humanos com cães, gatos e animais domésticos supre carências emocionais tanto
para crianças como para adultos e idosos.
As crianças prezam a afetividade animal e se encantam com as histórias
de bichos que muitas vezes só conhecem nos zoológicos. Têm grande empatia para
com os animais. Empatia é uma qualidade da inteligência emocional. É uma
resposta afetiva capaz de compreender a perspectiva psicológica de outra
pessoa; e de se emocionar ao observar a experiência e a situação do outro.
Há
vídeos que mostram como eles se
comunicam pelo canto; como são usados como alimento por
pessoas humanas.
Muitas mensagens nas redes sociais abordam o vegetarianismo
como opção de dieta alimentar. Há crueldades tais como as touradas ou “farras do
boi”, disfarçadas de cultura e tradição, e maus tratos a animais em cativeiro.
Mensagens mostram também formas de relacionamento mais amigáveis e harmônicas
entre pessoas humanas e não-humanas. Na Internet se encontram muitos sites com
pensamentos sobre os direitos dos animais. Aos poucos a visão ecocêntrica e
biocêntrica ganha espaço e questiona os fundamentos da civilização ocidental em
sua relação com os animais.
Cientistas
renomados tais como James Lovelock em “A vingança de Gaia” e E.O. Wilson propõem
uma retirada sustentável das pessoas humanas cedendo espaço para os animais e o
mundo natural.
No Facebook, meu amigo Apolo Heringer-Lisboa observa que “quando a gente diz seres humanos,
está dando a entender que há outros tipos de seres. Vinha à mente a ideia de
seres divinos ou angelicais. Não a ideia de seres como tartarugas, corujinhas e
cães. Você tem insistido neste tema buscando, provavelmente, uma mudança na
mentalidade atual da sociedade. Você insiste no termo pessoas. Como vê a
distinção entre os termos pessoas e seres? Pessoas a gente associa com gente,
seres humanos, um sinônimo”.
Eu lhe respondi que há vários
tipos de pessoas: pessoas humanas, pessoas físicas, pessoas jurídicas. Nomear
os animais como pessoas não-humanas ajuda a elevar seu status numa visão menos
antropocêntrica e ajuda a valorizar seus sentimentos e inteligência. Um status
ainda mais elevado é quando são tratados como divindades. O status mais baixo é
quando são tratados como coisas, usados como objetos de
pesquisas e cobaias para testar medicamentos, cosméticos, cigarros. Os animais
são vistos como bens econômicos, e a pecuária tem a mesma raiz de pecuniária,
pois pecos, o boi, era uma fonte
original de riqueza, uma moeda transacionável. Por esse enfoque, somos donos,
proprietários de tais seres sensíveis, semoventes.
A
cultura ocidental, de matriz greco-romana e judaico-cristã tem uma visão
antropocêntrica e humanista que vem sendo questionada por vários flancos. “Para
que serve uma barata ou um pernilongo?”, pergunta-me uma amiga que descubro ser
utilitarista. As abelhas são úteis, pois polinizam e fertilizam as plantas e
prestam um relevante serviço ambiental e econômico. Por isso podem ter valor.
Mas e esses outros animais? O movimento antiutilitarista reconhece o valor
intrínseco dos animais e dos seres vivos, independente se tenham ou não uma
utilidade para os seres humanos.
O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro reflete sobre o tema, tomando como referência
as culturas indígenas brasileiras:
“Uma coisa é você dizer que os animais
são humanos, no sentido de direitos humanos. Outra coisa é dizer que os animais
são pessoas, isto é, são seres que têm valor intrínseco. É isso o que significa
ser pessoa. Reconhecer direitos aos demais viventes não é reconhecer direitos
humanos aos demais viventes. É reconhecer direitos característicos e próprios
daquelas diferentes formas de vida. Os direitos de uma árvore não são os mesmos
direitos de um cidadão brasileiro da espécie homo sapiens. O que não
quer dizer, entretanto, que ela não tenha direitos. Por exemplo, o direito à
existência, que só pode ser negado sob condições que exigem reflexão. Os índios
não acham que as árvores são iguais a eles. O que eles acham simplesmente é que
você não faz nada impunemente. Todo ser vivo, com exceção dos vegetais, tem que
tirar a vida de um outro ser vivo para sobreviver. A diferença está no fato de
que os índios sabem disso. E sabem que isso é algo sério. Nós estamos
acostumados a fazer a nossa caça nos supermercados, não somos mais capazes de
olhar de frente uma galinha antes de matá-la para comer. Assim, perdemos a
consciência de que nós vivemos num mundo em que viver é perigoso e traz
consequências. E que comer tem consequências. Os animais seriam pessoas no
sentido de que eles possuem valor intrínseco, eles têm direito à vida, e só
podemos tirar a vida deles quando a nossa vida depende disso. Isso é uma coisa
que, para os índios, é absolutamente claro. Se você matar à toa, você vai ter
problemas. Eles não estão dizendo que é tudo igual. Eles estão dizendo que tudo
possui um valor intrínseco e que mexer com isso envolve você mesmo.” [1]
A
ética nas relações com os animais passou a ser tema discutido especialmente a
partir das ideias de Peter Singer, filósofo australiano conhecido por sua
postura em relação aos direitos dos animais e a questões éticas no
relacionamento com eles. Hans Huesch escreveu “Matança de inocentes” e “A
grande fraude”, sobre o tema.
No
segundo semestre de 2013, ativistas invadiram um instituto de pesquisas em São
Paulo, que usava cães beagle e ratos em testes para cosméticos e para
medicamentos, sequestraram os animais e destruíram as instalações, levando ao
fechamento do instituto.
O
movimento Born Free defende padrões
de bem-estar animal e procura protegê-los dos circos, do entretenimento em
shows, parques marinhos, do sofrimento físico e mental que passam no cativeiro.
Organizações
da sociedade civil como a PETA - Pessoas pelo tratamento ético para com os
animais - e a Frente de Libertação Animal assumiram a causa do abolicionismo da
escravidão e do fim da tortura dos animais. A WSPA, sociedade mundial para a
proteção dos animais, propõe protegê-los pois têm dor e sofrimento, merecem viver
livres de crueldade e porque milhões de pessoas no mundo todo se apoiam neles para a sobrevivência e a
companhia. Propõe que a ONU institua um dia dedicado à proteção dos animais.
Por meio de vídeos, divulgam no YouTube muitas informações sobre o tema.
Mostram a crueldade de depenar gansos para fazer preenchimento de travesseiros com
suas plumas e penas; o processo doloroso de produção do paté de fígado de
ganso. O que ocorre nos matadouros é mostrado no vídeo “E se os matadouros
tivessem paredes de vidro?”, protagonizado por Paul McCartney, que também se
tornou ativista vegetariano. Outros disponíveis no YouTube mostram as
realidades atrozes da produção de carne e as fazendas industriais.
Vídeos
mostram testes com pesquisas biológicas de efeitos dos cigarros sobre a saúde,
realizados com macacos, coelhos e ratos. O filme “A feia verdade” denuncia que
mais de 50 bilhões de animais são sacrificados a cada ano pela indústria de
cosméticos e mostra coelhos cegados por testes de produtos que irritam os olhos.
Outros vídeos fazem campanhas de boicote a produtos de companhias que fazem
testes com animais. Outros ainda mostram as vacas fistuladas, com o seu
interior à mostra, em pesquisas agropecuárias.
A
relação entre pessoas humanas e animais adquire relevo crescente e visibilidade
como um tema de interesse público. Mais
seres humanos, e não somente as crianças e idosos que com eles convivem mais
diretamente, passam a manifestar com maior frequência a empatia para com os
animais. Essa relação merece ser tratada em seus aspectos regulatórios,
normativos e de comunicação. Tal como a escravatura, que teve uma sucessão de
leis, até a do ventre livre e a da abolição, também a abolição da escravatura
animal passa por etapas sucessivas e crescentes, por ondas de consciência
social e de sensibilização e empatia. É preciso aprimorar as leis sobre o tema.
Nos
parlamentos, tramitam dezenas de
projetos referentes a animais com temas tais como o uso de animais em
espetáculos e pesquisas científicas, leis e código de proteção e defesa de
animais, na esteira da crescente sensibilidade para com o bem-estar animal e
para com os direitos das pessoas não-humanas.
NOTA:
[1] Entrevista a Eliane Brum, Diálogos sobre o fim do mundo, publicada no
El
País em 29 de setembro de 2014.
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O artigo “Pessoas Não-Humanas” foi
publicado nos websites associados dia 26 de agosto de 2020.
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Maurício
Andrés Ribeiro é fotógrafo, pai de dois filhos e avô de quatro netos.
Pesquisador no Indian Institute of
Management, Bengaluru, Índia. Ecologista e arquiteto, foi professor de
gestão ambiental urbana. Escritor, autor
de livros como “Ecologizar”, “Tesouros da Índia”, “Meio Ambiente & Evolução Humana”, “Ecologizando a cidade e o planeta”, publica no blog Ecologizar.blogspot. Colaborador de
organizações sociais voltadas para a cultura de paz. Coautor do livro “A água
fala”, voltado para a geração dos netos, que precisará ter sabedoria e
conhecimento para lidar com o tema da água no contexto das mudanças do clima.
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Veja os
artigos “No Tempo Em Que Os Animais Falavam”
e “As Fábulas de Esopo”.
Leia “A Dieta Que Respeita a Vida”, “A Ética da Alimentação Vegetariana”
e “Por Que os Animais Sofrem?”.
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