25 de maio de 2025

A Volta ao Senso Comum

 
O Sábio Não Fala, os Talentosos
Falam,  e os  Estúpidos Discutem
  
Lin Yutang
  
Lin Yutang (1895-1976)



Os chineses odeiam a expressão necessidade lógica, porque não há necessidade lógica nos assuntos humanos. A desconfiança dos chineses perante a lógica começa com a desconfiança das palavras, continua com a desconfiança das definições e termina com um ódio instintivo a todos os sistemas e teorias. Pois só as palavras, definições e sistemas tornaram possíveis as escolas de filosofia. A degenerescência da filosofia começou com a preocupação pelas palavras. Um escritor chinês, Kung Tingan, disse: “O sábio não fala, os talentosos falam e os estúpidos discutem”, isto apesar de o próprio Kung gostar bastante de uma discussão.

Pois esta é a triste história da filosofia: os filósofos pertencem ao gênero dos Faladores e não ao dos Calados. A todos os filósofos agrada escutarem sua própria voz. O próprio Laotse, que nos ensinou primeiro que o Criador (o Grande Calado) não fala, foi, persuadido a legar cinco mil palavras à posteridade antes de ir passar o resto da vida no retiro e no esquecimento. Mais típico do gênero do filósofo falador foi Confúcio, que visitou “setenta e dois reinos”, a fim de obter audiências de seus reis. Ou mais ainda, Sócrates, que ia pelas ruas de Atenas e detinha os transeuntes para fazer-lhes perguntas com o propósito de escutar-se ao dar engenhosas respostas. A afirmação de que o sábio não fala é, portanto, relativa. Mas de qualquer maneira existe diferença entre os Sábios e os Talentosos, porque o Sábio fala da vida, tal como a vê diretamente; os Talentosos falam das palavras do Sábio, e os Estúpidos discutem sobre as palavras dos Talentosos. Nos sofistas gregos temos o tipo puro de Faladores interessados no jogo das palavras por si mesmas.

A filosofia, que era o amor à sabedoria, converteu-se no amor às palavras, e, na medida em que crescia essa tendência sofista, mais completo se tornava o divórcio entre a filosofia e a vida. Com o correr do tempo, os filósofos começaram a empregar cada vez mais palavras, e frases cada vez mais longas; os epigramas [1] da vida cederam lugar às frases, as frases aos argumentos, os argumentos aos tratados, os tratados aos comentários e os comentários à investigação filológica; necessitaram-se cada vez mais palavras para definir e classificar as palavras que se empregavam, e cada vez mais escolas para que se diferenciassem e separassem das escolas já estabelecidas; o processo continuou até que se perdeu agora inteiramente de vista o sentimento, imediato, íntimo, ou o conhecimento da vida, e o leigo tem pleno direito de perguntar: “De que estais falando?” Entretanto, os poucos pensadores independentes que sentiram o impacto direto da vida - um Goethe, um Samuel Johnson, um Emerson, um William James - negaram-se a falar no jargão dos Faladores e sempre se opuseram decididamente ao espírito de classificação. Pois foram os sábios que mantiveram para nós o verdadeiro significado da filosofia, que é a sabedoria da vida. Em quase todos os casos renunciaram aos argumentos e retornaram ao epigrama.

Quando se perde a faculdade de falar por epigramas, escreve-se em parágrafos; quando é impossível expressar-se claramente em parágrafos, desenvolve-se um argumento; e quando é ainda impossível fazer-se entender com um argumento, escreve-se um tratado.

O amor às palavras é o primeiro passo para a ignorância, e o amor a definições o segundo. Quanto mais a gente analisa, tanto mais necessidade tem de definir, e, quanto mais define, mais tende a uma impossível perfeição lógica, porque o esforço para a perfeição lógica é tão-somente um sinal de ignorância. Como as palavras são o material de nosso pensamento, o esforço de definir é inteiramente louvável, e Sócrates iniciou a mania das definições na Europa. O perigo é que, depois de ter consciência das palavras que definimos, nos vejamos ainda forçados a definir as palavras definidoras de modo que afinal, além das palavras que definem ou expressam a própria vida, temos uma classe de palavras que definem outras palavras, que então se convertem na preocupação principal de nossos filósofos.

Há evidentemente uma diferença entre palavras úteis e palavras ociosas, palavras que cumprem um dever em nossa vida diária de trabalho e palavras que só existem nos seminários dos filósofos, e também há uma distinção entre as definições de Sócrates e de Francis Bacon e as definições de nossos escritores modernos. Shakespeare, que tinha o mais íntimo sentimento da vida, houve-se muito bem em não procurar definir coisa nenhuma, e por esse motivo suas palavras tinham um corpo, de que careciam os outros escritores, e suas palavras vinham imbuídas desse sentido do trágico e da grandeza humana que tantas vezes falta hoje em dia. Não podemos sujeitar suas palavras a uma função particular, tal como não podemos sujeitá-lo a uma concepção particular da mulher. Pois está na natureza das definições a tendência a afogar nossos pensamentos e privá-los desse resplandecente e imaginoso colorido, característico da própria vida.

Mas se as palavras retalham nossos pensamentos ao expressá-los, o apego a um sistema é ainda mais fatal para quem quer aprender agudamente a vida. Um sistema não é mais que uma vesga olhadela à verdade e, quanto mais logicamente se desenvolve esse sistema, tanto mais horrível se torna esse estrabismo mental. Isto de ver somente uma fase da verdade que percebemos, e elevá-la a um sistema lógico perfeito, é uma das razões pelas quais a nossa filosofia está destinada a ficar cada vez mais alheia à vida. Quem fala sobre a verdade, confunde-a; quem procura demonstrá-la, mutila-a; quem lhe põe um rótulo, mata-a; quem se lhe declara crente, enterra-a. A cantiga que todos entoam no funeral da verdade é: “Eu tenho toda a razão e tu te enganas redondamente”. Não importa que verdade enterrem, mas é essencial que façam o enterro. Pois a verdade sofre nas mãos de seus defensores, e todas as facções e todas as escolas filosóficas, antigas e modernas, se ocupam unicamente de demonstrar um ponto: “Eu estou certo e tu estás errado”. Os alemães, que escrevem um enorme volume para demonstrar uma pequena verdade, até a converterem num absurdo [2], são talvez os piores pecadores, mas a mesma enfermidade do pensamento pode notar-se mais ou menos em quase todos os pensadores ocidentais, e mais grave é quanto mais abstratos se tornam eles.

Como resultante desta lógica desumanizada, temos a verdade desumanizada. Temos hoje uma filosofia estranha à vida, sem a intenção de ensinar-nos o significado e a sabedoria da vida, uma filosofia que perdeu este sentimento íntimo da vida, ou esse conhecimento da vida, a que nos referimos como a própria essência da filosofia. Este íntimo sentimento da vida é o que William James chamou “o material de experiência”. No decorrer do tempo, creio eu, a filosofia e a lógica de William James se irão tornando cada vez mais devastadoras para a moderna maneira de pensar do Ocidente. Antes que possamos humanizar a filosofia, devemos humanizar a lógica. Temos de retornar a uma maneira de pensar que esteja mais ansiosa para entrar em contato com a realidade, com a vida, e, sobretudo, com a natureza humana, do que meramente com a lógica correta e consistente. [3] Temos de substituir a enfermidade de pensar exemplificada pela famosa descoberta de Descartes: “Penso, logo existo”, pela declaração mais humana e mais sensata de Walt Whitman: “Basta-me que eu exista”. A vida ou a existência não tem de pôr-se de joelhos e pedir à lógica que demonstre que existe, ou que está ali.

William James passou a vida procurando demonstrar e defender o modo chinês de pensar, sem sabê-lo. Só há uma diferença: é que, se William James fosse chinês, não teria escrito tantas palavras para definir sua posição, mas tê-la-ia exposto simplesmente num ensaio de trezentas ou quinhentas palavras; ou, numa nota de seu diário, teria dito que assim o acreditava porque assim era. Ficaria intimidado ante as palavras, pensando que, quanto mais palavras usasse, tanto maior seria a probabilidade de que não o compreendessem. Mas William James era um chinês pela sua aguda consciência da vida e das variedades da experiência humana, por sua rebelião contra o racionalismo mecanicista, sua ansiedade por manter constantemente fluído o pensamento, e sua irritação contra os que julgam haver descoberto a única verdade importante, absoluta e universal e tê-la encerrado num sistema perfeito. Era chinês, também, na sua insistência quanto ao predomínio do sentido artístico da realidade perceptiva, sobre e contra a realidade conceptual. O filósofo é um homem que mantém sua sensibilidade no mais alto ponto, e contempla o fluxo da vida, pronto para surpreender-se ante novos e estranhos paradoxos, inconsequências e inexplicáveis exceções à regra. Na sua negativa a aceitar um sistema, não porque seja incorreto, mas porque é um sistema, põe a pique todas as escolas filosóficas do Ocidente. Na verdade, como diz James, a diferença entre a concepção monista e a concepção pluralista do universo é uma distinção sobretudo fecundíssima na história da filosofia. James tornou possível que a filosofia esquecesse lindos castelos no ar e regressasse à vida.

Confúcio disse: “A verdade não pode abandonar a natureza humana; se o que se considera uma verdade abandona a natureza humana, não se pode considerar que seja uma verdade.” E também diz uma frase engenhosa que poderia ter saído da boca de James: “Não é a verdade que torna grandes os homens, mas os homens que tornam grande a verdade.” Não, o mundo não é um silogismo ou um argumento, é um ser; o universo não fala, vive; não discute, continua, e nada mais. Disse-o um bom escritor inglês: “A razão é apenas um item do mistério; e por trás da consciência mais orgulhosa que jamais reinou, a razão e o espanto enrubesciam frente a frente. O irremovível mofa, mas a dúvida e a esperança são irmãs. Felizmente, o universo é silvestre, com sabor de caça, como a asa de um falcão. A natureza é um milagre total: o mesmo não volta senão para ser diferente.” Parece que os lógicos ocidentais necessitam precisamente de um pouco de humildade; sua salvação está em que alguém os cure dessa hegeliana inflamação de cabeça.

NOTAS:

[1] Epigrama: frase curta carregada de significado, um ditado que expressa verdade importante. (CCA)

[2] Um escritor alemão dedicou uma tese inteira a demonstrar que o gênio se deve à fadiga da vista. Uma esplêndida amostra da erudição de Spengler, mas o seu raciocínio é infantil e ingênuo. (Nota de Lin Yutang)

[3] Na frase que aqui termina, revisamos a tradução conforme o original em inglês. (CCA)

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O artigo “A Volta ao Senso Comum” está disponível nos websites da Loja Independente de Teosofistas desde o dia 25 de maio de 2025. Foi reproduzido da obra “A Importância de Viver”, de Lin Yutang, Editora Globo, Porto Alegre, RS, Brasil, quarta edição, 1959, 360 páginas, com tradução do poeta Mário Quintana. Ver pp. 333-337. Para facilitar a leitura contemplativa, alguns parágrafos longos foram divididos em parágrafos menores.

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* Examine nos websites da LIT a seção temática sobre Cristianismo e Teosofia.

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Helena Blavatsky (foto) escreveu estas palavras: “Antes de desejar, faça por merecer”. 

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