2 de junho de 2025

Barão de Itararé, a Sabedoria da Irreverência

 
Conversas na Biblioteca: Um Diálogo
Com o Pioneiro do Humorismo Brasileiro
 
Carlos Cardoso Aveline
 
 
O Barão de Itararé conversando com o poeta Manuel Bandeira. Foto de 1966.



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Tudo o que o Barão de Itararé diz no texto a
seguir está rigorosamente documentado, e suas fontes
são indicadas na nota bibliográfica ao final. (CCA)

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Qual é o som de uma só mão que bate palmas no ar?”

“Qual era seu rosto, duzentos anos antes de você nascer?”

Tal como um paradoxo Zen, o humor pode ser um clarão cortante que revela os absurdos ao nosso redor. Através do riso, a mente se liberta da ditadura do pensamento. O humor reduz a pó as certezas rígidas do hemisfério cerebral esquerdo. Ele leva a consciência humana até muito além do sofrimento, e a apresenta a um vasto oceano de surpresas intuitivas.    

O brasileiro Aparício Torelly (1895-1971) não foi um mestre Zen.  Mais conhecido como Barão de Itararé, ele é o pioneiro genial que abriu caminho para o atual humor brasileiro.  Antecessor de Millôr Fernandes, sua carreira de rebelde piadista começou cedo. Já tinha fama de irreverente quando era estudante de Medicina em Porto Alegre.

Certo dia, um professor testava os seus conhecimentos em aula. Vendo que Aparício só dava respostas erradas, pediu ironicamente para os alunos:

“Tragam, por favor, um pouco de alfafa e de milho!...”

Rápido, Aparício completou:

“E, para mim, um cafezinho, por favor.”

Não demorou muito para que o brincalhão desistisse de obter um diploma, explicando que “um curso superior não encurta as orelhas de ninguém”. 

Aos 30 anos, largou o Rio Grande do Sul e foi tentar a vida no Rio de Janeiro. Durante alguns meses, escreveu para o jornal A Manhã. Depois deixou o emprego e fundou sua própria publicação, não por acaso batizada de A Manha. Mais adiante, nomeou a si mesmo como Barão de Itararé, em homenagem “à batalha que não houve” durante a revolução de 1930. 

Comprometido desde jovem com as lutas sociais, foi preso e perseguido em mais de uma ocasião. Questionador, envelheceu sem deixar de ser criança.  Aliás, insistia em afirmar que “a adolescência é aquela idade em que o garoto se recusa a acreditar que um dia ficará tão cretino quanto o seu pai”. 

Nos últimos anos da vida, dedicou-se a estudos de cabala, numerologia e astrologia.  Morreu aos 76 anos, no auge da ditadura militar, deixando conosco seus textos e o testemunho do seu jeito debochado de ser brasileiro. 

1) O que é a vida? 

R: A vida é a arte de não morrer. Mas essa arte é variada e polivalente. Daí a necessidade da simplicidez, para evitar a encrenquidão. A boa vida, portanto, deve marchar paralela à boa arte. E, como a música é a mais bela das artes, felizes são os que levam a vida na flauta.

2) Um dos desafios que a humanidade enfrenta hoje são as experiências genéticas, desde os alimentos transgênicos até a clonagem humana. Embora seja útil em certos casos, a genética pode transformar a vida em um processo artificial, desvinculado dos valores humanos. 

R: O homem moderno enlouqueceu definitivamente. Nos dias que correm, ninguém mais se admira de ver um limoeiro galego produzindo azeitonas italianas, sem caroço, ou um tomateiro gigante do Turquestão vergando os galhos, sob o peso de melões portugueses, prontos para a exportação.

Mas o homem da era atômica não está operando essas metamorfoses apenas por meio de enxertos, cruzamentos ou hibridismos. Muitas vezes, ele recorre à faca, ao serrote, ao bisturi, e, então, já vai fazendo as coisas com maus modos.  Hoje há mais uma arrojada experiência do célebre professor escocês MacAckow, que está atualmente na Alemanha, a serviço do chanceler, pretendendo, pela cirurgia plástica sob medida, transformar um gorila africano e cabeludo num ariano puro, dolicocéfalo e louro, capaz de provocar, depois de devidamente barbeado e penteado à la Hitler, um novo e violento movimento racista.

3) Além de casar quatro vezes, você também fez toda uma pesquisa transdisciplinar para chegar a uma definição rigorosamente científica sobre o casamento.  Qual sua conclusão?

R: As definições, em geral, são pontos de vista individuais. E o ponto de vista individual está quase sempre subordinado ao interesse de cada um. Assim, o problema do matrimônio é definido de diversas maneiras, segundo o ponto de vista profissional. O banqueiro afirma: “O matrimônio é um bom investimento quando é garantido por um bom patrimônio.” O médico opina: “É uma enfermidade que começa com um aumento de temperatura e termina com calafrios”. O farmacêutico: “É a melhor poção calmante para os doentes de amor.” [ Para] o investidor da bolsa de valores,  “é uma especulação que, mais cedo ou mais tarde, leva o especulador à ruína”.

4) Na sua opinião, os políticos e os diplomatas nunca dizem a verdade?

R: Às vezes, os diplomatas dizem a verdade. Mas é preciso que estejam distraídos, como aconteceu a um delegado das Nações Unidas. Interrogado por um correspondente sobre a guerra mais recente e sobre o papel da ONU - que não sabia como pôr um fim ao conflito - estabeleceu-se a certa altura o seguinte diálogo:

“Que acontece quando há uma disputa entre duas nações filiadas à ONU?”

“Não se leva em consideração a disputa”. 

“Que acontece quando há uma disputa entre uma grande potência e um pequeno país?”

“Não se leva em consideração o pequeno país”. 

“E o que acontece quando há uma disputa entre duas grandes potências?” 

“Ah, nesse caso não se leva em consideração a ONU.”

5) Alguns políticos brasileiros não conseguem pensar em outra coisa além de eleições. Trata-se de uma obsessão.  Você tem algum conselho infalível para esses candidatos? 

R: Aquele que quiser ser eleito deve usar com toda confiança a seguinte receita, fórmula do farmacêutico Alberto de Oliveira, membro da Academia e conceituado fabricante de versos parnasianos: “O candidato deve percorrer o seu distrito eleitoral e, com cada um dos eleitores, apostar 10 mangos na ideia de que não tem chances e não será eleito. Como todos os eleitores terão interesse em vencer a aposta, todos votarão nele.”

6) O Brasil tem tido uma sorte danada com os dirigentes políticos que prometem defender os direitos do povo. Quando chegam ao poder, esquecem o que haviam dito até o dia da posse e se comportam como se fossem reis, ou como se fossem o Sol, em torno do qual deve girar toda a vida.  Esse problema é antigo? 

R: A expressão “astro-rei” para designar o Sol deve ser muito velha. Provavelmente, trata-se de uma imagem literária feita por algum intelectual palaciano, na época em que as monarquias ainda prosperavam. 

A imagem é francamente bajulatória, pois o escriba foi movido pelo desejo de agradar o rei, e não de agradar o Sol. Um dos Luíses da França foi denominado “o Rei Sol”. As monarquias agora estão por baixo, (...) mas os literatos pernósticos ainda continuam a chamar o Sol de “astro-rei”. A expressão é, portanto, anacrônica e precisa ser atualizada.  O Sol, no Brasil, deveria chamar-se metaforicamente de “astro-presidente”, porque, por incrível que pareça, toda a vida nacional gravita em torno dos presidentes da república - que nem por isso têm sido lá muito brilhantes.

7) E o que você tem a dizer sobre a coerência pessoal dos “líderes do povo”,  depois que passam a morar nos palácios?

R: Num congresso de socialistas no início do século 20, em Londres, George Bernard Shaw denunciou como uma vergonha da sociedade o fato de que muitos ricos passeiam em automóveis estupendos, enquanto existem ainda pessoas condenadas a viver em favelas e cavernas. “Como podem subsistir esses privilégios e manter-se essas diferenças sociais?”, perguntou o orador, acrescentando: “Agora mesmo, nesse edifício, está postado um automóvel luxuosíssimo, uma autêntica provocação contra os pobres dessa cidade.”

Shaw fez uma pausa, avaliando os relâmpagos de despeito que brilhavam nos olhos dos seus ouvintes, e concluiu: “Mas, de qualquer modo, antes de pensar em incendiá-lo, quero avisar-lhes que esse automóvel é meu!”

8) Você tem uma visão bastante peculiar a respeito da história do Brasil...

R: O Brasil foi descoberto, por acaso, em 1500, e ficou sendo colônia de Portugal até 1822, mas não por acaso. Nesse ano, um príncipe português proclamou a independência do Brasil e o país, desde então, passou a fazer dívidas por conta própria, ficando cada vez mais dependente dos seus credores. Em 1889 foi proclamada a República, a qual foi passando por muitos estados de evolução, entre os quais podemos citar o estado de sítio, o estado de emergência, o estado de guerra, o Estado Novo, que culminou afinal, no estado a que chegamos.  

9) Uma das figuras irreverentes da filosofia grega antiga é Diógenes, o mais famoso dos cínicos. Como se sabe, os cínicos eram sinceros, mas questionadores e ligeiramente debochados. Diógenes morava em um barril, nas ruas.  Dizem que certa vez o poderoso Alexandre parou diante de Diógenes, que tomava Sol na calçada, e perguntou ao sábio se havia algo que poderia fazer por ele. Diógenes respondeu: “Sim. O senhor pode dar licença, por favor, e sair da frente do Sol,  para não fazer sombra na minha frente.”

Outro dia, o filósofo foi visto caminhando para lá e para cá no meio do povo, com jeito preocupado, carregando um lampião aceso em plena luz do dia. A cada um que perguntava o que ele fazia, Diógenes repetia: “estou procurando por um homem honesto”.

Mais de vinte séculos depois, o que faria Diógenes, o Cínico, se tivesse de viver nos dias atuais? 

R: Se voltasse agora ao mundo, Diógenes começaria atirando a sua anacrônica lanterna no lixo e acabaria comprando em prestações, sob reserva de domínio, um possante holofote, a fim de reiniciar a procura de um homem de bem.

Diógenes envelheceria novamente projetando a luz dos refletores em todas as direções, e terminaria os seus dias na mesma busca inútil que lhe consumiu a existência anterior.

Desta vez, entretanto, poderia abandonar o seu tonel e tentar a pesquisa nos arranha-céus e nas moradias suntuosas, mas nem por isso seria mais feliz nas suas conclusões.

A humanidade, realmente, não presta para nada, mas não nos devemos esquecer de que nós fazemos parte dela e, portanto, nós também não somos lá grande coisa.

Basta este raciocínio para que tenhamos uma grande dose de tolerância e de complacência para com essas pobres criaturas, cheias de imperfeições e de fraquezas, pois também nós somos feitos do mesmo barro frágil e quebradiço.

O grande erro de Diógenes foi justamente o de procurar o homem de bem entre os seus semelhantes. O homem que julga mal os outros não pode ser trigo limpo.

10) Diógenes estava olhando na direção errada? 

O filósofo cínico não deveria projetar a luz embaciada da sua lanterna sobre os homens. Ele deveria começar voltando-a sobre si mesmo, porque, por mais patife que seja um cavalheiro, sempre tem o seu lado bom. Aquele que procurar com boa vontade e sem azedume um homem de bem não precisará percorrer as ruas da cidade, porque esse homem já se encontra presente no próprio pesquisador.

A humanidade não presta. Mas nós devemos viver reconciliados e conformados com ela. Esse é o antiácido capaz de melhorar a nossa azia e de acalmar as náuseas totalitárias que assaltam periodicamente o nosso estômago.  E, para chegar a essa conclusão, não é necessário ser muito filósofo, como Diógenes. Basta ser um pouco cínico.

NOTA BIBLIOGRÁFICA:

O melhor estudo disponível sobre a vida e a obra do filósofo de Itararé  é a biografia O Barão de Itararé, as duas vidas de Aparício Torelly, Cláudio Figueiredo, Ed. Record, RJ, 1988,  206 pp.

Fontes das respostas, respectivamente, no diálogo acima: 1) Barão de Itararé - Antologias d’A Manha (1927, janeiro a abril) por Fortuna, Ed. Studioma, 1995, 63 pp., ver p. 27; 2) Almanhaque, o Almanaque d’A Manha de 1955, EDUSP/Imprensa Oficial de SP/Studioma, 2002, 224 pp., ver p. 113;  3) Almanhaque de 1955, volume citado, p. 86;  4) Almanhaque de 1955, volume  citado, p. 204;  5) O Barão de Itararé, Antologias d’A Manha (1926), Ed. Studioma, 1995, 63. pp., ver p. 50; 6) Almanhaque de 1955, volume citado, p. 204;  7) Almanhaque de 1955, p. 219;  8) Almanhaque do Barão de Itararé para 1949, Imprensa Oficial SP, EDUSP-Studioma, edição facsimilar, SP,  2003, 264 pp., ver p. 24; 9) Almanhaque do Barão de Itararé para 1949, obra citada,  p. 228; 10) Almanhaque 1949, obra citada, p. 228. (CCA)

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O texto acima reproduz o capítulo 26 de obra “Conversas na Biblioteca”, de Carlos Cardoso Aveline,  Edifurb, Blumenau, 2007, 170 páginas. Foi publicado nos websites da Loja Independente de Teosofistas no dia 02 de junho de 2025.

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Helena Blavatsky (foto) escreveu estas palavras: “Antes de desejar, faça por merecer”. 

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