Sofrer Injustiças Pode Ser
Útil no Treinamento Espiritual
Carlos Cardoso Aveline

Pascásio de Dume foi um místico cristão do século seis, e viveu na cidade hoje portuguesa de Braga. Ele traduziu do grego para o latim um conjunto de Apotegmas e sentenças dos Padres e Anciãos do Deserto, que viveram nos primeiros anos da era cristã. A palavra “anciãos” não é aqui sinônimo de “idoso”, mas significa alguém sábio ou experiente na caminhada espiritual.
Pascásio conta em sua tradução que um monge foi certo dia até um ancião e contou-lhe determinado episódio. O monge havia sofrido uma injustiça. Tendo ouvido o relato, o ancião respondeu:
“Fica tranquilo, porque o teu irmão não quer que tu sejas injustiçado, mas os teus pecados o impelem (a cometer injustiça). Quando alguma injustiça for feita contra ti, não vejas erro no outro, mas diz apenas: ‘Por causa dos meus pecados estas coisas acontecem a mim’.” [1]
Cabe lembrar que “pecado” é um termo antigo e significa simplesmente “erro”. É importante deixar de lado qualquer medo supersticioso diante desta palavra. O relato traduzido por Pascásio não ensina um fatalismo cego. Tampouco propõe o masoquismo diante de abusos e agressões. Acontece, apenas, que o desinformado autor de injustiças é, frequentemente, um idiota útil.
Toda injustiça feita conscientemente é uma atitude imbecil, digamos: mas nem sempre é inútil no treinamento espiritual de quem a sofre. Na medida em que a injustiça não for mortal em seus efeitos, o aprendiz deve usar a circunstância desfavorável para aprender a ser impecável, imperturbável e implacável, permanecendo de fora dos mecanismos de interação neurótica.
O Jeito Como a Vida Transmite uma Lição
Podemos constatar que a forma exata como certos acontecimentos nos contrariam - ou o jeito como uma situação nos decepciona - é com frequência a maneira mais eficiente que a vida encontra para transmitir-nos uma lição desagradável, porém necessária.
O aprendiz sensato pensa, portanto:
“Por causa dos meus erros estas coisas me perturbam”.
Em outras palavras:
“Quando eu for mais sábio, tais injustiças não me ocorrerão, ou não me sentirei atingido por elas”.
Quem faz uma injustiça contrai uma dívida cármica. Como não há falta de ignorantes no mundo, uma injustiça não pode ser vista como alguma coisa extraordinária. Sua importância não deve ser exagerada.
Por outro lado, aquele que é vítima de uma injustiça está sendo treinado pela vida para crescer e ser maior do que as circunstâncias, e para tirar conclusões práticas sobre a necessidade de ser mais forte e mais sábio.
No entanto, no episódio narrado acima, foi correta a consulta ao ancião. É recomendável não manter segredo sobre uma injustiça sofrida, ou sobre uma injustiça cometida. O erro que fica em segredo geralmente ganha força. Em compensação, cada vez que um fracasso ético é conhecido como tal, ele perde grande parte do seu poder, uma vez que o foco central do esforço continue sendo o aperfeiçoamento.
O desinformado que comete a injustiça está em maus lençóis, porque fabrica mau carma para si mesmo e terá de enfrentá-lo inevitavelmente no momento certo.
A resposta do ancião é clara.
Cabe ficar de fora do processo da má vontade, preservando-se moralmente do ódio e do conflito e, se possível, ajudando o desinformado que perdeu o sentido de justiça para que ele supere a sua cegueira moral e recupere o bom senso ético, passando a plantar diariamente através das suas ações aquilo que espera colher no futuro.
NOTA:
[1] Traduzo o trecho do livro “The Fathers of the Church”, Iberian Fathers, volume I, Martin of Braga, Paschasius of Dumium, Leander of Seville, The Catholic University of America Press, Washington, DC, EUA, copyright 1969, 261 pp., ver p. 128.
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O artigo “Pascásio Traduz uma Lição do Deserto” está disponível nos websites da Loja Independente de Teosofistas desde 7 de dezembro de 2025. Uma versão inicial dele foi publicada de modo anônimo na edição de março de 2020 de “O Teosofista”, pp. 12-13. Título original: “Uma Lição de Pascásio”.
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Helena Blavatsky (foto) escreveu estas palavras: “Antes de desejar, faça por merecer”.
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