A Filosofia Esotérica
Como Uma Caminhada Diária
Carlos Cardoso Aveline
Carlos Cardoso Aveline

O
caminho espiritual raramente é cômodo. Os obstáculos dificilmente são poucos, e
as surpresas nem sempre são agradáveis.
É verdade
que a sabedoria que se alcança ao avançar pelo caminho é eterna. Mas não há
garantias de progresso visível, e será preciso manter uma determinação
inabalável. Além disso, uma das primeiras providências a tomar é a decisão de
jamais reclamar das circunstâncias em que se deve viver. Pode-se trabalhar para
obter o objetivo sonhado, mas lamentar-se é uma grave perda de energias. Robert
Crosbie escreveu:
“Na grande economia da Lei e da Natureza,
cada ser está exatamente onde deveria estar para erradicar os erros. Todas as
condições para o seu crescimento estão presentes. A única questão depende dele:
ele vai encarar as circunstâncias como ‘sofrimento’ ou como
oportunidades? Se ele opta pela segunda alternativa, tudo fica bem; ele
está destinado a vencer, seja longo ou seja curto o caminho para isso.” [1]
Circunstâncias idênticas têm diferentes significados
para indivíduos diferentes. “Há coisas que afetam algumas pessoas
terrivelmente”, afirma Crosbie. “As mesmas coisas afetam outras pessoas muito
pouco, ou nem as afetam. Por quê? Por causa do ponto de vista
adotado. É a nossa atitude em relação às coisas que provoca o sofrimento
ou o não-sofrimento, o prazer ou a dor - e não as coisas em si mesmas.” [2]
É essencial, portanto, escolher com cuidado
o ângulo a partir do qual enxergamos a cada momento a vida. A maneira de olhar pré-define,
em grande parte, o significado daquilo que vivemos. Ver o mundo tomando
como premissa uma meta nobre e um método adequado de ação revela diante do caminhante
os ângulos corretos da realidade e abre caminho para conhecer e eliminar as
causas do sofrimento. O ponto de vista da sabedoria produz, cedo ou tarde, pensamentos
sábios. Crosbie esclarece:
“Se começamos a pensar corretamente, nós
damos uma direção a aquela força espiritual que é a própria essência da nossa
natureza.” [3]
E ele acrescenta:
“... Se um desejo ou aspiração é inegoísta,
nobre, universal, então a força que flui através do indivíduo é grande, nobre,
universal, em seu caráter.” [4]
Todo fatalismo é uma ingenuidade, quando não é um
apego à rotina. Ninguém é um pedaço de
madeira levado sem remédio pela correnteza da vida. A cada momento, o indivíduo
tem a possibilidade da escolha consciente sobre o rumo das suas ações e do
seu estado de espírito; e isto define não só o seu presente, mas o seu
futuro. Sempre é possível vencer as circunstâncias, por mais negativas que
elas pareçam. Quando a meta e o método são bem escolhidos, a vitória existe
como possibilidade pelo menos no plano interno; e esse é, de longe, o plano
mais importante da realidade.
Crosbie afirma:
“O momento da
escolha existe o tempo todo para cada indivíduo. (....) Aquele que
faz o melhor que pode, com uma motivação correta e uma sincera
boa vontade, faz o suficiente.” [5]
Para caminhar, não
bastam votos genéricos de boa intenção:
“Tomar
decisões nobres nunca nos causará bem algum, a menos que as sustentemos. Um
mero desejo nunca nos levará a lugar algum. Temos que sustentar o desejo;
temos que manter a decisão. Devemos exercer nossa vontade e ser fiéis o tempo
todo ao objetivo buscado pela vontade.” [6]
Esta força interna surge aos poucos, e de modo
natural. Nada acontece de repente na natureza - a menos que já tenha sido
preparado longamente antes. Em Raja Ioga, recomenda-se um esforço intenso e, ao
mesmo tempo, um total desapego por resultados de curto prazo. É preciso saber
esperar. A pressa é inimiga da boa caminhada. William Q. Judge escreveu:
“A Esperança é
irmã da Paciência, e as duas juntas são madrinhas da Vida Correta.” [7]
A Esperança adequada é a aspiração voltada para coisas
elevadas. A Paciência é a capacidade de aguardar que as causas amadureçam em
seu próprio ritmo, uma vez que estamos na direção certa. Mas, enquanto esperamos,
nada melhor do que avançar ainda mais nas dimensões em que isso é possível. Com
uma força razoável de vontade dirigindo pensamento, emoção e ação, a caminhada passa
a ter menos obstáculos. Crosbie escreve:
“Uma vez que as ideias corretas estão estabelecidas em
nossas mentes, nós podemos ajudar o mundo falando sobre elas e
exemplificando-as. Isso é algo que nós podemos fazer, por mais egoísta que seja
o modo do mundo se movimentar.” [8]
Há um momento em que já distinguimos palidamente o que
é correto e verdadeiro para nós. Isso é bom. Mas é preciso dar um passo à
frente para testar de fato esta antevisão. Deve-se tentar repetidamente colocá-la
em prática, até que ela ganhe força real em nossas vidas.
Quando o caminhante vê com nitidez o que é verdadeiro
e correto para ele próprio, ainda há uma distância grande entre enxergar o
ideal e vivê-lo. E isso é natural. O
sentido da visão se caracteriza, precisamente, pela percepção daquilo que está
a uma distância de nós, mas para o qual podemos caminhar.
A distância entre o sonho e a prática - entre a meta
do estudante e o ponto em que ele está - dá lugar ao processo probatório ao
longo do qual ele irá adquirir méritos e condições práticas de vencer. A
distância é um motivo para ir adiante, e não para desanimar. A diferença entre
sonho e realidade implica que há um sonho nobre a ser buscado.
E como percorrer a longa etapa do caminho que vai desde
a nítida percepção do que é correto até a plena vivência direta?
Ninguém é uma ilha cármica. Tudo e todos se
interrelacionam. Se não emitirmos nossa energia, ela não será confirmada.
Quando compreendemos algo profundamente, o próximo passo é “emitir o mantra”,
isto é, irradiar aquele padrão vibratório em direção ao mundo, e assim
confirmá-lo.
Isto tem um modo e um momento próprios para ocorrer. A
ocasião e a maneira devem ser percebidas. Quando o discípulo está pronto, ele compreende
que o mestre interior estava lá o tempo todo. Quando o filhote de pássaro
amadurece, ele faz as devidas considerações sobre o novo estágio do seu
aprendizado e se atira para fora do Ninho da Rotina, para testar na prática os
seus novos conhecimentos sobre a arte de voar. Mas antes disso é preciso
verificar se há desapego. Séculos atrás, São João da Cruz explicou:
“Pouco importa estar o pássaro amarrado por um fio
grosso ou fino; desde que não se liberte, estará tão preso por um como pelo
outro. Verdade é que quanto mais tênue for o fio, mais fácil será de se partir.
Mas, por frágil que seja, o pássaro estará sempre retido por ele enquanto não o
quebrar para alçar voo. Assim sucede à alma cativa por afeição a qualquer
coisa: jamais chegará à liberdade da união divina, por mais virtudes que
possua.”
A arte de voar pode libertar o indivíduo, mas impõe
algumas exigências:
“As condições do pássaro solitário são cinco. A
primeira, voar em direção ao mais alto; a segunda, não tolerar companhia
alguma, nem mesmo a da sua natureza; a terceira, voltar o bico para o ar; a
quarta, não ter cor determinada; a quinta, cantar suavemente.” [9]
Através da força de vontade e do discernimento, o estudante
descobre a sua própria capacidade de transcender as limitações. A integração
crescente entre os seus vários níveis de consciência faz com que ele descubra passo
a passo - entre um desafio e outro - a beleza ilimitada da vida. A filosofia
esotérica original dá uma base referencial ampla e firme para este processo de
transmutação. Robert Crosbie escreve:
“Quanto mais tempo um indivíduo estuda ao longo de
linhas teosóficas, e quanto mais ele faz da filosofia uma base para seu
pensamento e sua ação, tanto mais completamente ele verá, creio, a beleza e as
possibilidades da vida, e as tremendas oportunidades que ela produz para
aqueles que estão dispostos a trabalhar com altruísmo.” [10]
De fato, ninguém deve ficar surpreso ao ouvir dizer
que o altruísmo - com seu caminho estreito e íngreme - traz felicidade. A
felicidade é interna: os obstáculos são externos. O “Wen-tzu” - um clássico do taoísmo
filosófico - esclarece:
“As pessoas verdadeiras sabem de que modo considerar o
ser interior como grande e o mundo como pequeno.”
Para o estudante de filosofia, a felicidade está no
que é imenso e eterno, isto é, o ser interior. O sofrimento existe apenas no
ser externo, pequeno e passageiro.
O “Wen-tzu” prossegue em sua descrição das pessoas
verdadeiras:
“Elas preferem o autogoverno e desprezam o ato de
governar os outros. Elas não deixam que as coisas perturbem a sua harmonia, e
não permitem que desejos desorganizem os seus sentimentos.”[11]
É errado acreditar que a ignorância espiritual traz
felicidade.
A verdade é que a vida não começa aos quarenta, e não
começa aos sessenta. A vida pode começar a qualquer instante, mas ela só começa,
de fato, num nível superior, quando a pessoa adota o princípio prático do altruísmo
que caracteriza o seu verdadeiro eu.
NOTAS:
[1] “A Book of Quotations From Robert Crosbie”, Theosophy
Co., Mumbai, India, 108 pp., ver p. 52. O livro está disponível em PDF em nossos
websites associados.
[2] “A Book
of Quotations from Robert Crosbie”, obra citada, ver p. 43.
[3] “A Book of Quotations From Robert Crosbie”, obra
citada, p. 45.
[4] “A Book of Quotations From Robert Crosbie”, obra
citada, p. 48.
[5] “A
Book of Quotations From Robert Crosbie”, obra citada., pp. 102 e 103. Na p. 102, veja o item “15”. Na p. 103,
veja o item “17”.
[6] “A Book of
Quotations From Robert Crosbie”, obra citada, p. 05.
[7] “A Book of
Quotations From W. Q. Judge”, Theosophy Co., Mumbai, India, 1968, 100 pp., ver
p. 4.
[8] “A Book of
Quotations From Robert Crosbie”, obra citada, ver p. 52, item “28”.
[9] São João da Cruz, citado em “A Vida Secreta
da Natureza”, de Carlos Cardoso Aveline, Ed. Bodigaya, Porto Alegre, terceira
edição, 2007, 157 pp., ver p. 89.
[10] “A Book of
Quotations From Robert Crosbie”, obra citada, p. 36, item “3”. O livro está disponível em PDF em nossos
websites associados.
[11] “Wen-tzu, a Compreensão dos Mistérios -
Ensinamentos de Lao-tzu”, Tradução do chinês, de Thomas Cleary, Ed. Teosófica,
Brasília, 198 pp., ver p. 27.
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