Breve Diálogo Com a
Obra do Criador da Psicanálise
Carlos Cardoso Aveline

Sigmund Freud
(1856-1939)
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O texto a seguir foi construído
com
a mesma técnica, bibliograficamente
documentada, com que foi escrito o
livro “Conversas
na Biblioteca - um diálogo de 25 séculos”, de Carlos
Cardoso Aveline (Ed.
Edifurb, Blumenau, 2007, 170 pp.).
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É grande o valor da contribuição de Sigmund Freud e da psicanálise para que
se possa compreender melhor a enganosa relação da alma humana com os instintos
animais.
Freud incluiu em suas pesquisas psicanalíticas as mais
diferentes áreas de conhecimento - inclusive fisiologia, história, antropologia,
mitologia e literatura de ficção - e provocou com sua obra um avanço
significativo do conhecimento humano. Infelizmente, não rompeu com a visão
materialista da vida e, vivendo na primeira metade do século 20, não lhe foi
dado o dom do otimismo.
Reconhecido como um dos pensadores mais importantes desde
o surgimento da ciência moderna, Freud nasceu em seis de maio de 1856, na
Morávia, e foi viver em Viena quatro anos depois. Tinha pouco mais de 40 anos
quando criou a psicanálise. No final da vida, a consagração internacional veio
junto com o perigo. Idoso, judeu, ele mudou-se para a Inglaterra para evitar a
perseguição nazista. Morreu em Londres aos 83 anos de idade.
Todo pesquisador tem erros e acertos. As limitações de
Freud, do ponto de vista da filosofia esotérica, são evidentes. Ao examinar a
emoção humana diante da beleza, por exemplo, ele afirma que a atração pelo belo
é uma função sexual [1]. Esqueceu
que a beleza do nascer do Sol, da lua cheia, das estrelas à noite e das paisagens
naturais emociona a quase todos. Há vários outros aspectos frágeis em sua obra.
Mesmo assim, o valor dela é inegável.
Uma parte fundamental do pensamento de Freud ainda está
por ser compreendida. A sua visão científica sobre as grandes religiões
modernas é subestimada hoje inclusive nos meios esotéricos, embora todo
espiritualista tenha vários motivos para libertar-se de dogmatismos e para
aceitar os métodos da ciência moderna, sem cair em suas ilusões
materialistas.
No século 21, o enfoque de Freud sobre as religiões torna-se
cada vez mais atual e necessário, enquanto o mundo enfrenta fenômenos como
fanatismo fundamentalista, intolerância, guerra santa, terrorismo religioso e
abuso de crianças por parte de sacerdotes católicos.
Freud revelou os aspectos neuróticos e até criminosos da
religião autoritária. Ele também revelou a única “divindade” em que acreditava:
o Logos grego, a divina Razão universal.
Sua longa vida foi dedicada ao progresso da alma humana,
mas não rotulou seu próprio trabalho com slogans
idealistas ou palavras-de-ordem aparentemente sublimes. Compartilhando os méritos
e as limitações da ciência moderna, sua obra é uma das grandes expressões do
humanismo do século 20.
No campo maior do pensamento psicológico, o contraste
entre Sigmund Freud e Carl Jung não é apenas pessoal, mas filosófico. Freud nunca
se apresentou como espiritualista, mas defendia a ética, era judeu e foi
perseguido. Jung adotou ares de espiritualista, mas ignorou a ética, escreveu
textos com um tom antissemita, não via diferença entre verdade e ilusão ou
fantasia e - durante a fase ascendente do nazismo, na década de 1930 - ocupou
cargo de confiança no regime de Hitler.
A Psicologia vai além de Freud e Jung. Pensadores como
Erich Fromm e Viktor Frankl, entre outros, deram grandes contribuições ao
pensamento psicológico, adotando pontos de vista eticamente corretos e mais
claramente compatíveis com a transcendência da filosofia esotérica do que o
ponto de vista adotado por Freud. Para uma avaliação adequada das relações
entre psicologia e teosofia, as ideias de Fromm e Frankl devem ser estudadas e
reconhecidas.
A seguir, um breve diálogo com aspectos filosóficos da
obra de Freud, um pensador que soube trazer para o dia claro as motivações
inconscientes da alma humana, no que elas têm de primário e de instintivo, mas que
também percebeu em algum momento algo maior e mais amplo, e investigou a origem
da felicidade.[2]
1) O senhor não se
filia à tradição esotérica, mas dá elementos para que as pessoas se libertem dos
grilhões emocionais que as prendem ao mundo do desejo ilusório. O senhor não
acredita nas religiões - e evita toda linguagem espiritualista - mas tem acesso
a um saber que o coloca no território dos grandes pensadores de todos os tempos...
O nosso deus, o Logos, a Razão, talvez não seja um deus
muito poderoso, e poderá ser capaz de efetuar apenas uma pequena parte do que
seus antecessores [os outros deuses] prometeram.
Se tivermos de reconhecer isso, o faremos com resignação. Não será por causa disso que perderemos nosso interesse no mundo e
na vida, pois dispomos de um apoio seguro (...). Acreditamos ser possível ao
trabalho científico conseguir um certo conhecimento da realidade do mundo,
conhecimento através do qual podemos aumentar nosso poder e de acordo com o
qual podemos organizar nossa vida.
2) Para os gregos,
o Logos é a razão divina. Ele pode ser percebido como uma voz suave dentro da
consciência de cada ser humano. O Logos se relaciona com o Nous ou Intelecto,
a inteligência pura...
A voz do intelecto é suave, mas não descansa enquanto não
consegue atenção. Finalmente, após uma incontável sucessão de reveses, ela obtém
êxito. Esse é um dos pontos sobre os quais se pode ser otimista a respeito do
futuro da humanidade e, em si mesmo, não é de pouca importância.
3) Os raja-iogues
dos Himalaias que inspiraram a criação do movimento teosófico moderno ensinam
que a busca da sabedoria divina é uma questão científica e não de crença religiosa.
Um deles escreveu: “Um sentimento constante de dependência abjeta em relação a uma
Divindade vista como única fonte de poder faz com que um homem perca toda
autoconfiança (...). Ele se torna como um menino e permanece assim até a idade
avançada, esperando ser conduzido pela mão.” [3] O que o senhor pensa disso? A
crença religiosa convencional retira das pessoas a escolha e a
responsabilidade?
A religião restringe o jogo de escolha e adaptação, na
medida em que impõe igualmente a todos o seu próprio caminho para a aquisição
da felicidade e da proteção contra o sofrimento. Sua técnica consiste em
depreciar a vida e deformar o quadro do mundo real de maneira delirante - uma
maneira que pressupõe uma intimidação da inteligência. A esse preço, por fixar
as pessoas à força num estado de infantilismo psicológico e por arrastá-las a
um delírio de massa, a religião consegue poupar a muitas pessoas de uma neurose
individual. Dificilmente, porém, algo mais que isso. Existem muitos caminhos
que podem levar à felicidade possível
de ser alcançada pelos homens, mas nenhum caminho que o faça com toda
segurança.
4) Certa vez, ao
visitar a Grécia, o senhor sentiu que estava rejeitando emocionalmente uma
sensação de felicidade, como se fosse algo excessivamente bom, que não
merecia...
Esse é mais um caso de “bom demais para ser verdade”, que
encontramos com tanta frequência. É um exemplo de incredulidade que surge
tantas vezes quando nos surpreendemos com uma boa notícia, quando sabemos que
ganhamos um prêmio, por exemplo, ou que tivemos uma vitória (...). O que acontece
[nesse] caso paradoxal é simplesmente
que o lugar da frustração externa é tomado pela frustração interna. O sofredor
não se permite a felicidade; a frustração interna ordena-lhe que se apegue à
frustração externa. Mas por quê? Porque – essa é a resposta, em muitos casos –
a pessoa não pode esperar que o Destino lhe proporcione algo tão bom. (...)
Encontramos um sentimento de culpa ou de inferioridade, que pode ser traduzido
assim: “Não mereço tanta felicidade, não a mereço”.
5) E como se pode buscar
a felicidade com eficiência?
O projeto de tornar-se feliz, que o princípio do prazer
nos impõe, não pode ser realizado. Contudo, não devemos - na verdade não
podemos - abandonar nossos esforços de aproximar-nos dessa realização, de uma
maneira ou de outra. Caminhos muito diferentes podem ser tomados nessa direção,
e podemos dar prioridade ao aspecto positivo da meta, obter prazer, ou ao aspecto
negativo, evitar o desprazer. Nenhum desses caminhos nos leva a tudo o que
desejamos. A felicidade, no reduzido sentido em que a reconhecemos como
possível, constitui um problema da economia da libido [isto é, da administração do
instinto vital] do indivíduo. Não existe uma regra de ouro que se aplique a
todos: cada homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode
ser salvo. Todos os tipos de diferentes fatores operarão a fim de dirigir sua
escolha. É uma questão de quanta satisfação real ele pode esperar obter do
mundo externo, de até onde é levado a tornar-se independente dele, e,
finalmente, de quanta força sente à sua disposição para alterar o mundo, a fim
de adaptá-lo a seus desejos.
NOTAS:
[1] “O Mal-Estar na Civilização”, Sigmund
Freud, Ed. Imago, RJ, 112 pp., ver pp. 32-33.
[2] Quando necessário para facilitar
a compreensão, acrescento algumas palavras explicativas entre colchetes e em
itálico. Fontes das respostas: 1) “O
Futuro de Uma Ilusão”, Sigmund Freud,
Ed. Imago, RJ, 87 pp., ver p. 85; 2) “O Futuro de Uma Ilusão”, obra citada, p. 83; 3) “O Mal-Estar na
Civilização”, obra citada, p. 35; 4) “Um
Distúrbio de Memória na Acrópole”, ver Edição Standard das Obras de Freud,
volume XXII, Ed. Imago, pp. 239 a 241; 5)
“O Mal-Estar na Civilização”, ob. cit., pp. 33-34.
[3] “Cartas dos Mestres de Sabedoria”,
Ed. Teosófica, Brasília, Carta 43, primeira série, pp. 103-104.
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Uma versão inicial do texto acima foi publicada na revista “Planeta”, de São
Paulo, em sua edição de outubro de 2004.
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Para saber mais sobre a relação entre a Psicanálise e a Teosofia, veja o
capítulo 11 da obra “Três Caminhos Para
a Paz Interior”, de Carlos Cardoso Aveline, Ed. Teosófica, Brasília, 2002,194
páginas. O capítulo é intitulado “A
Psicanálise das Religiões”.
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