25 de abril de 2025

Os Templários e Sua Regra de Vida

A Vivência Prática da Forma de
Vida Adotada Deve ser Afirmativa
 
Pinharanda Gomes 




0000000000000000000000000000000000000

Nota Editorial de 2025

O texto a seguir, do historiador português
Pinharanda Gomes (1939-2019), investiga
o que é pertencer de fato a um agrupamento
espiritualmente coeso, unido por uma
meta elevada e por uma disciplina comum.

Acrescentamos notas de rodapé com reflexões
desde o ponto de vista teosófico e com base na
experiência da Loja Independente de Teosofistas.

(Carlos Cardoso Aveline)

00000000000000000000000000000000000000000000



ORDEM E REGRA

Ordem, ‘ordo’, é nome que designa uma forma de vida corporativa. Predica-se de toda uma instituição, com sua Regra, seus membros e seus bens, um pouco por sinédoque [1], ou por alargamento de significado, mas o conceito iniciático significa ordem, quer dizer: regulamento, regra de vida, lex vita.

Quando duas ou mais pessoas se associam para um determinado propósito, mas carecem de um regulamento, de uma ‘régua’ por onde se veja a retidão dos atos e dos fatos, essa associação ainda não merece o nome de Ordem. As associações que contraem o vínculo de Ordem apresentam-se como uma organização regular, com juramento e prática de uma Regra, proposta aos membros, postulantes, noviços e professos.

Os testemunhos históricos das congregações e sodalícios [2] regulares, demonstram que a ‘ordo’ aparece como ato conclusivo para um caminho que se potencia, e cujo ato perfeito se revela com a instituição da Ordem, da Regra. Se considerarmos as três principais Ordens Mendicantes (Carmelitas, Frades Pregadores, ou Dominicanos, e Frades Menores, ou Franciscanos) vemos como apenas os Frades Pregadores se instituíram como Ordem, dispondo logo de Regra, porque S. Domingos de Gusmão propôs aos presbíteros e leigos, que desejassem militar na pastoral evangélica, uma associação da qual eles fossem sócios, regendo-se, em comunidade, pela Regra de Santo Agostinho.

Os Carmelitas só se intitulam Ordem dos Irmãos da Bem-aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo, bastantes anos depois de um grupo de fiéis viver em comum monacal no Monte Carmelo, tendo sido por necessidade de uma disciplina comunitária, que esses monges, segundo se julga chefiados por [Brocardo] solicitaram do bispo de Jerusalém, Alberto Avogadro, uma regra de vida, que este lhes concedeu. Tomou do grupo os costumes bons já habituais, ordenou-os a uma causa final e, deste modo, aquele ajuntamento de monges se transforma em uma Ordem. Idêntico juízo se emite acerca dos amigos de Francisco de Assis, que o seguiram desde o momento da reconstrução da igreja de S. Damião (1205). Ele e os seus companheiros, ainda que coabitassem e convivessem, não dispunham de qualquer disciplina própria, salvo a que decorria da prática mandamental. Só em 1209 Francisco redigiu uma primeira e breve Regra, com ela se apresentando ao papa Inocêncio III, que a aprovou oralmente. Desde esse momento, há uma ordo, uma Ordem. [3]

Aderir a uma Ordem significa escolher uma ‘formula vitae’, fórmula de vida, uma ‘regula vitae’, regra de vida, um regime de vida, uma disciplina, aceitar um tratado de Direito, um regulamento canônico e jurídico com todas as suas implicações, e um bilhete de identidade. Professar uma Regra equivale a uma estrita observância de um determinado modo de vida, qual o proposto por essa Regra.

A vivência prática da forma de vida deve ser afirmativa, ou observante. Se for negativa, ou incorreta, ou indisciplinada, ou negligenciada, essa vivência dir-se-á relaxada, pelo que a estrita observância e o relaxamento são os contrastes possíveis da profissão regular. Contudo, a estrita observância é mitigável, pode ser mitigada, se os institutos jurídicos da Ordem, ou a autoridade universal do Pontífice entenderem que, sob certas condições, os professos são isentados do cumprimento de uma que outra norma de mais difícil observância.

O contraste entre observância e relaxamento suscita uma dialética, ou reformista, ou fundamentalista. No ambiente humanista do século XVI, e perante as vagas de cismáticas opções na Igreja, as Ordens Religiosas tenderam a reformar-se, mas essa reforma quase sempre afluiu à restauração da estrita observância, com abandono das mitigações, por isso que os movimentos da descalcez (caso dos Carmelitas que optaram pela reforma de Santa Teresa de Ávila e de S. João da Cruz) caminharam na restauração do espírito e da seriedade iniciais da Regra [4], com abandono das possíveis facilidades, disponíveis à luz de uma canonicidade menos rigorosa.

A Regra é o paradigma da Ordem. Dela se dirá: este é o sinal, o signo, o cartão por onde cada professo se dá a conhecer. À luz do inventário patrimonial, é lícito afirmar que o genuíno património da Ordem é a Regra. Tudo o mais vem por acréscimo, ou como consequência da vida regular. Ela origina uma dinâmica e uma tradição, um depósito canónico, consuetudinário, hierático e jurídico, depósito esse que reveste quem o professa. E de tal modo o reveste que, mesmo sem hábito, ou sem emblema, ou sem sinal diviso, se reconhece que alguém é professo de uma determinada Regra, se acaso conhecermos essa Regra e a virmos incarnada na vida do professo. Em situação limite, o templário, para ser reconhecível, não carece de se paramentar; basta que, na frente do mundo, ostente a prática regular que professa.

Fons vitae’, a Regra tem a função paradigmática de mãe e de mestra, ‘mater et magistra’. Ela é a verdadeira mãe do professo. A casa onde o professo vive, as funções que lhe cumpre desempenhar, os bens de que dispõe, o direito de manutenção, ou seja, de enxerga, de manjedoura e de fato, são sequências da maternidade magistral da Regra. [5] Se gozar de tais direitos e não cumprir os deveres, constitui-se ladrão, parasita, ou hipócrita, na comunidade fraternal. [6]

Magistra’, a Regra contém os ensinamentos sobre o que cada professo regular deve à Ordem, aos Irmãos, e à Fraternidade, já que a Ordem se consolida numa fraternidade, numa ‘fraternitas’, onde cada professo é frade, ‘frater’, confrade de outros frades, irmãos e confrades ou confreires. Como é um caminho, um mapa para guiar na Vida, a Regra ensina, transmite um magistério, e identifica o que se pode, o que se deve, o que se pode mas não se deve, o que nem se pode nem se deve. E ensina como importa proceder em cada situação, mesmo que omita os pormenores casuísticos inerentes a situações insuscetíveis de serem preconizadas. A magistralidade da Regra é dogmática, porque a Regra não se discute. Aceita-se e cumpre-se, não há meio-termo.

Ela, porém, magistralidade dogmática, dispõe do afeto maternal. Neste sentido, a Regra permite a aferição às situações particulares, ao esclarecimento de temas omissos, e à interpretação casuística das surgências inusitadas, ou do aparecimento de novos condicionalismos. A Regra não carece de ser alterada. Ela tem o caminho para a interpretação e para a adequação ao concreto. Por isso, a Regra, que é tradição, suporta que, à luz do seu magistério, a Ordem proponha, mediante a experiência e o consenso, os cânones complementares, que são as Constituições, ou Estatutos, ou Disposições.

No princípio das fundações, os fundadores atenderam apenas à Regra, que seria a inspiratriz, a matriz espiritual dos posteriores desenvolvimentos. As Regras demarcam um carácter carismático, inspirador de uma espiritualidade, de onde a justeza das espiritualidades monásticas e mendicantes - carmelita, dominicana, franciscana e, já de antes, beneditina, ou posterior, jesuíta. As Constituições ou Estatutos evidenciam um caráter de predominância jurídica, casuística, ou decretal, que, nunca alterando a matriz regular, a ampliam aos pormenores, casos, singularidades, minudências e especialidades. Quando se olha para o sistema particular da Regra Templária, haverá quem diga que a Regra compendia 686 artigos. Na realidade, assim não é.

A Regra propriamente dita abrange 72 artigos, parágrafos, ou capítulos. Tudo o mais, exceto o Prólogo, é do âmbito das Constituições ou Estatutos, de redação posterior, inspirado na espiritualidade inicial e iniciática.

NOTAS:

[1] Sinédoque - figura de linguagem, maneira de dizer. (CCA)

[2] Sodalícios: confrarias, fraternidades. (CCA)

[3] Fr. Luís de Souza, O.P., História de São Domingos, Lx.ª, 1623; Joaquín Smet, Los Carmelitas. I. Madrid, 1987; Fontes Franciscanas. I.S. Francisco de Assis. Tradução ao português, Braga, 1994. (Nota de Pinharanda Gomes)

[4] “Caminharam na restauração do espírito e da seriedade iniciais da Regra”. Do mesmo modo, a Loja Independente de Teosofistas trabalha pela restauração da ética e do ensinamento dos primeiros anos do movimento teosófico, quando Helena Blavatsky vivia, e existia um contato direto com os Mestres do Conhecimento Divino. (CCA)

[5] A regra é a mãe do peregrino. Em outras palavras, graças ao cumprimento da Regra, o estudante “nascerá outra vez”, ou seja, terá uma experiência iniciática - grande ou pequena. A disciplina é a mãe daquele que nasce pela segunda vez. A mãe-regra alimenta o futuro renascido, conduz o peregrino, transforma o indivíduo e dá forma ao futuro ser. (CCA)

[6] É o caso do teosofista que pretende receber benefícios indefinidamente do movimento teosófico sem jamais começar a trabalhar com altruísmo pela Causa. Os benefícios que ele recebe permanecem superficiais, porque a sua relação com o movimento é infantil. Embora seja correto que nos primeiros anos ele apenas estude, no tempo adequado cabe a ele tomar a iniciativa de gradualmente começar a retribuir pelo que recebeu, tentando beneficiar outras pessoas que também merecem ser ajudadas, mas ainda não tiveram esta oportunidade. Deste modo o peregrino deixará de lado a etapa infantil e passará à etapa adulta da vida teosófica, sendo muito mais beneficiado. Ao tratar de ajudar outros, ele terá uma relação profunda e produtiva com o ensinamento e será cocriador do movimento. (CCA)

000

O artigo acima foi publicado nos websites da Loja Independente de Teosofistas no dia 25 de abril de 2025. O seu conteúdo reproduz as páginas 5 a 7 do livro “A Regra Primitiva dos Cavaleiros Templários”, de Pinharanda Gomes, Ed. Hugin Editores, Portugal, 1999, 155 pp., ver pp. 5 a 7. A partir deste ponto o autor analisa mais detalhadamente a estrutura institucional da igreja católica, que possui pouco interesse teosófico. Porém, o texto de Pinharanda sobre Ordem e Regra vai até a página 12 do livro. Na transcrição acima, a ortografia das palavras foi adaptada ao português brasileiro.

000

Leia também:







* Veja a seção temática Cristianismo e Teosofia.

000



Helena Blavatsky (foto) escreveu estas palavras: “Antes de desejar, faça por merecer”.

000