Duas Fábulas Chinesas
Sobre Libertação Espiritual
Carlos Cardoso Aveline
Carlos Cardoso Aveline
O cavalo-marinho tem uma perna só. Este peixe do gênero
Hippocampus nada erguido, e sua longa cauda funciona como uma perna, com a qual se enrosca em algas para fixar-se, quando
não a enterra na areia do fundo do mar para permanecer “ancorado”. Há várias espécies de cavalo-marinho em partes
rochosas do litoral brasileiro, especialmente onde as águas são tranquilas.
Pois, há uma história chinesa envolvendo o
cavalo-marinho, alguns outros animais e o vento. Foi contada originalmente por Chuang-Tzu, o pensador
taoista que viveu três séculos antes da chamada era cristã. Com o tempo, a história ganhou acréscimos.
Milhares de anos atrás, o cavalo-marinho, insatisfeito
com sua perna única, sentia inveja da centopeia. E ele tinha seus motivos. Durante uma conversa
com alguns amigos, o cavalo-marinho desabafou, dirigindo-se à centopeia:
“Com minha perna única, tenho óbvias dificuldades de
transporte e deslocamento. Mas tu estás
no outro extremo. Como consegues articular todas as pernas que tens?”
“Não preciso articular as pernas”, respondeu a centopeia,
“e a explicação para isso é simples. Observa as gotas da chuva. Elas caem aos
milhares no chão, sem fazer esforço. Do mesmo modo, o mecanismo pelo qual eu
caminho atua naturalmente. Não tenho que fazer esforço, e nem
sequer preciso ‘saber’ conscientemente como caminhar.”
Apesar disso, a
atitude da centopeia também revelava mais tristeza do que orgulho. Depois de um
momento em silêncio, ela olhou para a
cobra e compartilhou sua própria frustração:
“Por que, se tenho tantas pernas, não consigo andar tão rápido como tu, que não possuis perna
alguma? Não entendo esse paradoxo.”
A cobra respondeu:
“Cada um tem o seu
Dharma, seu Tao especial, sua vocação, e
também os meios para cumprir sua tarefa
na vida. Que necessidade eu tenho de
pernas? Nenhuma. Minhas limitações são outras. Há uma coisa, porém, que não entendo.” Voltando-se
para o Vento que soprava, a cobra perguntou:
“Eu me arrasto movendo minha espinha. Tu, porém, que pareces não ter forma alguma,
vens soprando com grande imponência desde o mar do Norte, até agitar e varrer poderosamente o mar do
Sul. Como consegues essa façanha?”
“É verdade que sopro como dizes”, respondeu o Vento Norte
sem mostras de orgulho. “Também posso
construir grandes sistemas de dunas. Sei esculpir rochas durante milhares de anos, e assobiar entre elas. Mas todos
podem atravessar-me com uma simples mão
ou um pé em qualquer ponto da minha marcha. Em um ponto específico qualquer do
espaço e do tempo, sou mais fraco que os
objetos sólidos. A longo prazo, exerço um poder que eles não têm. A partir de muitas derrotas menores, sei construir
a grande vitória.”
A narrativa dessa reunião mostra a inutilidade do
sentimento de inveja, que é sempre um desperdício de energia. Mas
ela também faz lembrar que não se pode obter
uma vitória, naquilo que realmente importa para nós, sem fazer sacrifícios e sem
fracassar em coisas menos importantes. Nestas questões, é a renúncia deliberada que geralmente permite
evitar a derrota.
Conversa Entre a Rã e a Tartaruga
“Que grande vida levo eu!” disse a rã, que morava num
poço relativamente raso. “Salto ao parapeito do poço e descanso no buraco de
uns tijolos quebrados. Ao nadar, mantenho a boca quase à linha da água. Quando vou
visitar a lagoa rasa perto daqui, percebo que sou superior a todos os caracóis, sapos pequenos, caranguejos e insetos que vejo à minha volta.”
Convidada insistentemente para visitar a rã, a tartaruga concordou um dia em ir até a lagoa. Não
gostou muito do que viu, mas evitou fazer críticas. Semanas depois, conversando
com a rã na beira da praia, a tartaruga
falou do mar:
“Mil quilômetros
não servem para medir sua largura, e mil metros não medem sua profundidade.
Tempos atrás, houve nove anos seguidos de inundações, e isto não aumentou o seu volume. Depois houve sete
anos de seca, e isso não fez com que suas praias baixassem. O mar não é afetado
pelo aumento ou diminuição das águas. Nem pela passagem do tempo. ”
Qual é a moral da
história, neste caso?
A rã e a tartaruga são dois níveis de consciência da alma
humana. Por um lado, aquele que busca a
Verdade ainda está, em parte, preso à poça d’água de pequenas coisas da vida
diária - com suas esperanças, seus medos, apegos, satisfações e insatisfações de curto prazo. De outro lado, ele já conhece aquele oceano de
sabedoria interior em que pode nadar e flutuar sem esforço, e onde moram a paz e
a liberdade imensas da tartaruga.
Este animal, aliás, vive
mais de um século e simboliza a sabedoria universal porque não se deixa
levar pelas coisas de curto prazo.
Até certo ponto, é verdade que os seres humanos tentam ser
felizes apegando-se como rãs às suas pequenas poças d’água. Mas eles também são capazes de desenvolver em seus
mundos pessoais o ponto de vista da alma imortal, e passar a viver em escalas cada vez mais amplas de espaço
e tempo. O forte contraste entre a poça d’água e o oceano serve para testar o discernimento de quem deseja
aprender sobre a vida.
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Sobre o mistério do despertar individual para a sabedoria do universo, leia a edição luso-brasileira de “Luz no Caminho”, de M. C.
Com
tradução, prólogo e notas de Carlos Cardoso Aveline, a obra tem sete capítulos,
85 páginas, e foi publicada em 2014 por “The
Aquarian Theosophist”.
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