A Qualidade Faz a Diferença, e
Quantidade Tem Pouca Importância
Carlos Cardoso Aveline
Carlos Cardoso Aveline
O que torna uma ação legítima: o
conteúdo, ou a aparência?
No
simbolismo judaico da luta entre Davi e Golias - narrada no capítulo 17 do
Livro 1 de Samuel - vemos que o princípio da inteligência espiritual é mais
valioso que o princípio da força material, seja esta última feita de capital
financeiro, de poder político ou de outras formas de poder mundano. No entanto,
nem todos interpretam corretamente a luta entre Davi e Golias.
Para
muitos é difícil aceitar o fato de que as formas financeiras, políticas e
institucionais de “poder” são todas variantes da força que Golias possuía, de
acordo com o simbolismo da Bíblia, e que em última instância estas formas de
poder levam as pessoas à derrota.
Quando
uma estação de rádio ou televisão deseja ter audiência, mais do que coerência
ou qualidade, o que ela faz? Ela baixa o nível da programação e opta pelo
caminho do gigante Golias.
Quando
um político cai no jogo da popularidade fácil, deixando de lado a busca de um
ideal, o que ele faz? Ele abandona a meta do bem comum. Ele substitui as
ideias pelos tapinhas nas costas, pelo sorriso permanente e pela prática da
corrupção e da compra de votos, enquanto procura manter a aparência de um
idealista. Ele pode ter os seus anos de glória; mas irá compartilhar o destino
final de Golias, que foi atingido na cabeça e perdeu a consciência dos fatos,
antes de cair ao chão.
Quando
um grupo espiritualista prioriza obter força no mundo visível, ao invés de vida
e coerência internas, a sua opção também é o caminho mais fácil.
Seus
líderes começam a “conversar com os Mestres”, o grupo fabrica um Avatar, ocorrem “canalizações” e coisas “extraordinárias”
são mostradas para os ingênuos. Tudo o
que o grupo tem de bom é colocado na vitrina para os outros verem, ao lado de coisas
que parecem boas mas que o grupo não possui de fato, ou que não são boas de
modo algum, exceto no seu aspecto externo.
Estes
são mecanismos bem conhecidos de ilusão psicológica e psicossocial. Eles
ocorrem tanto no plano individual como no plano coletivo. É muitas
vezes assim que diferentes ações e iniciativas sociais obtêm aparente sucesso
e falsa legitimidade na atual civilização materialista.
Ao longo
do caminho espiritual, ao contrário, o peregrino deve optar uma e outra vez
pela busca da verdade e não do aplauso. Esta primeira definição é uma
renúncia da maior importância. Ela
constitui o solene Portal de Entrada que leva da euforia do faz-de-conta
para a realidade do Caminho.
A
tarefa é buscar o aperfeiçoamento interior, e quem decide trilhar este caminho
deve abandonar completamente a busca de poder ou aplauso. Deve ter percebido
que estes não são objetivos válidos em si mesmos. Ao invés disso, será necessário
desenvolver aquele poder que faz o estudante parecer nada aos olhos dos outros, como define “Luz no
Caminho”, a obra clássica da filosofia esotérica.[1] Esta condição é
simbolizada na lenda do Novo Testamento que narra a perseguição e a crucificação
de Jesus. Ali, o poder do Iniciado é visto pelos contemporâneos de Jesus não só
como “igual a nada”, mas como pior do que
nada, isto é, como algo que deve ser eliminado pelo uso da força.
Naturalmente,
a seita de Jesus era uma escola de pensamento judaica. Ele e todos os seus
discípulos eram judeus. Jesus jamais fundou uma igreja e ele respeitava a
autonomia do aprendiz.
Quando
alguém busca alcançar o aperfeiçoamento à luz do exemplo dado pelos grandes
sábios da humanidade, é preciso ter em primeiro lugar a coragem de pensar com
clareza.
O fato
de ser essencialmente indiferente ao aplauso ou desprezo vindos do mundo
externo permite deixar de lado as manipulações sociais, as chantagens
emocionais e outras formas de ilusão coletiva para olhar diretamente e
identificar o que é ignorância e o que é sabedoria, dentro e fora de si
mesmo.
O
aprendiz teme então principalmente o desprezo da alma espiritual que habita o
interior da sua própria consciência, e cuja voz ele aprende a ouvir sem a necessidade
de palavras. Ele busca acima de tudo a aprovação silenciosa do seu eu superior.
Quando
o aprendiz sabe olhar com clareza, ele está apto para dar o passo seguinte na
alquimia da aprendizagem. E o próximo
passo é abrir espaço com eficiência para o ouro e a
prata, fundamentalmente dentro de si, secundariamente fora de si. Deste modo é que se fortalece, não sem determinada
lentidão, o que há de mais nobre e elevado na natureza humana. O chumbo
do material grosseiro é transmutado aos poucos em metais nobres
como prata (símbolo da mente clara)
e ouro (símbolo do coração e da
mônada espiritual).
O
alquimista deve saber esperar, e isso não é tudo. É necessário
saber plantar o que é bom e correto, enquanto espera. Seu dever é plantar bondade
e sabedoria mesmo enquanto colhe frutos amargos em condições climáticas
desagradáveis.
A perseverança
tem como base uma compreensão direta do Tempo de longo prazo. É graças à percepção
pessoal dos ciclos do Tempo que o aprendiz pode confiar de fato na lei do
plantio e da colheita.
A
metáfora agrícola funciona tão bem quanto a imagem alquímica. Um grão de
mostarda é pequeno, mas repete à sua maneira a saga de Davi, e vence nitidamente
o que parece grande.
Assim
como o poder dos iniciados, uma semente é quase invisível para quem busca
frutos óbvios no mundo das aparências. No entanto, o Jesus do Novo Testamento
ensina:
“O
reino dos céus é como um grão de mostarda, que um homem tomou e plantou em seu
campo; ele é a menor de todas as sementes e, depois germinado e crescido, é
maior do que as hortaliças, e ele se faz árvore, de modo que as aves do céu vêm
aninhar-se nos seus ramos.” (Mateus: 13, 31-32)
Este é
o poder da Vida e dos Iniciados. A lição
aparece em diferentes tradições. “Muitos que são os primeiros serão os últimos,
e muitos que são os últimos serão os primeiros.” (Mateus, 19:30) O que é pequeno
será grande. O Todo está contido em cada uma das suas partes. Céu e Terra
interagem profundamente. Os extremos se tocam: o caminho do meio integra os
extremos e os equilibra, e por isso perdura.
Toda
vida é cíclica e evolui através de transmutações. Assim como o chumbo do
alquimista se torna ouro, a semente do agricultor germina no plano físico para
que a vida assuma novas formas e busque a luz infinita do Sol amarelo.
No
entanto, recomenda-se ter olhos para
ver, pois o ouro também se transforma em chumbo e nem tudo o que reluz
é ouro.
Na
imagem simbólica do plantio, o joio e o trigo fazem parte do processo. Nem tudo
que é pequeno é semente, e nem toda semente é boa. A plena atenção é uma
chave-mestra. O discernimento, inseparável do desapego, tem uma presença
decisiva em cada aspecto e etapa da caminhada.
NOTA:
[1] “Luz no Caminho”, de M. C., um tratado
clássico sobre o despertar da sabedoria, tradução, notas e prólogo de Carlos
Cardoso Aveline, The Aquarian Theosophist, Portugal, 2014, 85 pp., ver regra
16, primeira série de regras, p. 23.
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Sobre o mistério do despertar individual
para a sabedoria do universo, leia a edição luso-brasileira de “Luz no Caminho”, de M. C.
Com tradução, prólogo e notas de Carlos
Cardoso Aveline, a obra tem sete capítulos, 85 páginas, e foi publicada em 2014
por “The Aquarian Theosophist”.
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