Cada Vez Que é
Desafiado Pelo Sofrimento, o
Ser Humano Decide
se Prefere Agir com Grandeza
Carlos Cardoso Aveline
“A perfeição moral consiste em
viver cada dia como se fosse o
último.”
[Marco
Aurélio, o imperador-filósofo]
Ninguém está livre de perigos, de perdas ou de
sofrimento. Uma questão prática, portanto, é saber o que fazer diante dos
momentos difíceis da vida. Como devemos enfrentá-los? E como ajudar os outros
seres que sofrem?
É nos momentos de dor, e não nas
horas agradáveis, que o indivíduo verifica o seu verdadeiro sistema referencial
e examina a solidez do solo em que está colocada a estrutura da sua vida.
Cada vez que é desafiado pelo sofrimento,
o ser humano decide se prefere agir com grandeza. Aquele que se deixa levar pelo
desespero está na verdade perdendo uma oportunidade valiosa de crescer
interiormente. E quando alguém amedrontado abandona o bom senso para pedir
favores especiais a alguma divindade, esquece que o Universo é regido por leis
imparciais e que cada erro será corrigido, sem que seja necessário fazer alguma
solicitação ou requerimento pessoal neste sentido.
Ao contrário, o realismo manda
deixar de lado a pretensão egocêntrica ou desesperada de manipular o modo como
o universo e a vida evoluem. Cabe a cada um fazer o melhor que pode a cada
momento, ocupando-se daquilo que depende de si, e não se ocupando daquilo que
não depende de si. Dezenove séculos atrás o filósofo estoico Epicteto ensinava:
“A felicidade e a liberdade
começam com a clara compreensão de um princípio: algumas coisas estão sob o
nosso controle, e outras não estão. Só depois de aceitar esta regra fundamental
e aprender a distinguir entre o que podemos e o que não podemos controlar é que
a tranquilidade interior e a eficácia exterior tornam-se possíveis.” [1]
Agir corretamente é plantar bom
carma. É inútil tentar colher o que não foi plantado, ou colher o que foi
plantado enquanto o carma não estiver maduro. O Universo é regido por uma Lei,
e não por algum deus humanoide, um egoísta todo-poderoso que quebra as regras da
natureza e “desliga a lei do carma” para proteger casuisticamente este ou
aquele indivíduo, porque foi feita esta ou aquela oração.
Ignorando a busca espiritualmente infantil de vantagens
pessoais, a filosofia esotérica investiga as grandes questões da vida e da
morte. Ela estuda a reencarnação, as causas do sofrimento e o caminho para a felicidade
interior. Ela é também um guia prático para a vida diária. Ela nos ensina a
compreender o contexto maior em que ocorrem os estados de consciência marcados
por serenidade, tristeza e alegria, ou equilíbrio, desânimo e esperança.
Estudando os grandes ciclos de
tempo em que ocorre a evolução da vida, o teosofista compreende o funcionamento
da Lei e se pergunta pela atitude pessoal mais adequada diante dos momentos
difíceis que todo ser humano deve enfrentar.
Ele sabe que as igrejas
frequentemente ensinam o medo, ao estimular pedidos de favores pessoais a um
deus imaginário. Ele afasta de si esta influência negativa, lembrando da dignidade
com que um Sócrates, um Sêneca, um Giordano Bruno e outros filósofos viveram o
desapego quando perseguidos e condenados à morte. Ele sabe que tem algo a
aprender de tais exemplos. Ao invés de pretender dirigir os acontecimentos da
vida através de pedidos pessoais a algum deus − ou de desesperar-se sem saber o que fazer nas
horas difíceis − ele age da melhor maneira possível e planta para o futuro a
médio e longo prazo aquilo que lhe parece correto. Ele é capaz de valorizar
estas palavras de Epicteto, que via a vida como se ela fosse um longo banquete
oferecido pelos deuses:
“Quando somos convidados a um
banquete, nós tomamos o que nos é servido. Se um hóspede pedir ao anfitrião que
lhe dê peixe ou bolo doce, será considerado um sujeito pouco razoável. Mas no
mundo nós pedimos aos Deuses aquilo que eles não dão; e fazemos isso embora
sejam muitas as coisas que eles nos deram.” [2]
A filosofia clássica e a teosofia
autêntica ensinam o autorrespeito, o autocontrole, a autorresponsabilidade e a
coragem diante da vida em geral; e especialmente diante do desafio e do
sofrimento. Neste ponto - ao contrário da maior parte das igrejas - a boa
mística cristã coincide com a filosofia. Um exemplo disso está no clássico “Imitação de Cristo”,
de Tomás de Kempis, escrito em 1541. Nesta obra, devemos levar em conta as três
partes iniciais. O quarto livro ou quarta parte é uma concessão ao ritualismo, incluída
possivelmente para evitar as acusações de heresia e a perseguição por parte do
Vaticano e seus cardeais, que tinham o hábito de torturar pessoas e de
colocá-las na fogueira para maior glória do seu “deus”. Com esta ressalva,
“Imitação de Cristo” é um bom tratado de filosofia estoica clássica, prudentemente
colocado sob roupagem cristã.
Como chaves de interpretação para
uma leitura esotérica dessa obra, devemos lembrar que expressões como “Jesus”, “Senhor”,
ou “Senhor Cristo” são símbolos do Eu Superior de cada indivíduo. Ambientado na
cultura medieval, o livro é um diálogo entre a Alma Mortal e o seu Eu Superior.
Em determinado momento, Jesus diz à alma mortal ou discípulo:
“Filho, se puseres tua paz em alguma pessoa, por ser de
teu parecer e por conviver contigo, achar-te-ás inconstante e embaraçado. Se,
porém, recorreres à verdade, sempre viva e permanente, não te entristecerás pela
ausência e morte de um amigo. Em mim [alma
imortal, amor impessoal] se deve fundar o amor do amigo; por mim se
deve amar todo aquele que, nesta vida, te parecer bom e amável.” [3]
Esta ideia é similar a algo que está
presente nos Upanixades hindus. Ali, o sábio Yajnavalkya explica à sua esposa
Maitreyi:
“Não é pelo marido em si que o
marido é amado, mas é pela presença do Ser [a
inteligência universal] no marido, que o marido é amado. Não é pela esposa
em si que a esposa é amada, mas é pela presença do Ser [a inteligência universal] na esposa, que a esposa é amada. Não é
pelos filhos em si mesmos que os filhos são amados, mas é pela presença do Ser
[a inteligência universal] nos
filhos, que os filhos são amados. Não é pelos animais em si, que os animais são
amados, mas é pela presença do Ser [a
inteligência universal] nos animais, que os animais são amados.” [4]
Quando o estudante de teosofia
percebe a unidade dinâmica da vida e vê que a durabilidade dela está na
essência interior, mas não na forma externa, ele é capaz de compreender que tanto
as perdas quanto as aquisições - emocionais ou materiais - fazem parte de um
processo maior de reciclagem e de renovação. Não há motivo para lamentar
demasiado as perdas. Nem é sábio apegar-se indevidamente às vitórias obtidas. Em
determinado trecho da obra “Imitação de Cristo”, a alma mortal ou discípulo desabafa
e diz o seguinte ao “Senhor”, símbolo da alma imortal ou mestre interno:
“Ah, Senhor, a que chegamos? Eis que choramos uma perda temporal, trabalhamos
e corremos para ganhar lucro mesquinho, mas do dano espiritual esquecemos, e
mal nos lembramos, ou tarde. Olha-se muito pelo que pouco ou nada vale, e
não se faz caso do que é sumamente necessário, porque o homem se entrega inteiramente
a coisas exteriores, e, se prontamente não se recolher, nelas descansa com
prazer.” [5]
Em outro trecho, a palavra “cruz”
simboliza o carma, os testes e as provações:
“Jesus
[a alma imortal] encontra
muitos agora [que são] apreciadores
do seu reino celestial; mas poucos que queiram levar a sua cruz [carma].
Tem muitos sequiosos de consolação, mas poucos da tribulação; muitos
companheiros à sua mesa; mas poucos da sua abstinência. Todos querem gozar com
ele; poucos querem sofrer por ele alguma coisa. Muitos seguem Jesus até o
partir do pão, poucos até o beber do cálice da paixão. Muitos veneram seus
milagres, mas poucos abraçam a ignomínia da cruz. Muitos amam a Jesus enquanto
não enfrentam adversidades. Muitos o louvam e bendizem, enquanto recebem d’Ele
algumas consolações; se, porém, Jesus [a alma imortal] se oculta e por
um pouco os deixa, caem logo em queixumes e desânimo excessivo. Aqueles, porém, que amam a Jesus por Jesus
mesmo, e não por própria satisfação, tanto O louvam nas tribulações e angústias
como na maior consolação. (.....) Não se amam mais a si do que a Cristo os que
estão sempre cuidando de seus cômodos e interesses?” [6]
O caminho espiritual é, na
verdade, diametralmente oposto ao caminho do apego a bens e vínculos mundanos,
sejam eles físicos ou emocionais.
Diz “Imitação de Cristo”:
“A
muitos parece dura esta palavra: ‘Renuncia a ti mesmo, toma a tua cruz [o
carma] e segue a Jesus Cristo [a alma imortal] (Mt. 16:24) ’. ” [7]
Esta ideia básica faz parte do
que há de melhor na sabedoria de todos os tempos, e coincide com a Raja Ioga. As
filosofias clássicas do Oriente e do Ocidente ensinam a renúncia ao eu
inferior:
“E se
tiver grande virtude de devoção ardente, muito ainda lhe falta, a saber: uma
coisa que lhe é sumamente necessária. Que coisa será esta? Que, [tendo]
deixado tudo, deixe a si mesmo e saia totalmente de si, sem reservar
amor-próprio algum, e, depois de feito tudo o que soube fazer, reconheça que
nada fez.” [8]
“A Voz
do Silêncio”, o clássico da filosofia esotérica do Oriente, aponta para o mesmo
princípio universal:
“Se tua
Alma sorri enquanto se banha na luz do Sol da tua Vida; se tua Alma canta
dentro da sua crisálida de carne e matéria; se tua Alma chora dentro do seu
castelo de ilusão; se tua Alma luta para romper o cordão de prata que a liga ao
MESTRE (Eu Superior), então fica
sabendo, ó Discípulo, que a tua Alma é da terra.” [9]
Há, de
fato, uma essência comum compartilhada pelo cristianismo místico, pelo budismo
e por outras filosofias e religiões. Essa essência interior constitui a
verdadeira Theo-sophia. Assim,
“A Voz do Silêncio” coincide com todas as tradições autênticas, ao aconselhar:
“Não desejes coisa alguma. Não te irrites com o Carma,
nem com as leis imutáveis da Natureza. Mas luta apenas com o que é pessoal, com o transitório, o
evanescente e o perecível.”[10]
A mesma obra explica o que é o mundo externo em que
vivemos:
“Esta terra, Discípulo, é o Salão do Sofrimento, e nele, ao
longo de um Caminho de duras provações, há armadilhas para fascinar o Eu
através da ilusão chamada ‘Grande Heresia’ [o individualismo]. Esta terra, Ó
Discípulo ignorante, é apenas a entrada sombria que leva à luz fraca existente
antes do vale da verdadeira luz - aquela luz que nenhum vento pode apagar, a
luz que queima sem uma mecha, e sem combustível. (....) Para alcançar o
conhecimento (....), tu deves desistir
do Eu em função do Não-Eu, e desistir do ser em função do não-ser. Então
poderás repousar entre as asas do GRANDE PÁSSARO. Sim, agradável é o repouso
entre as asas daquilo que não nasce, nem morre, mas é o AUM, ao longo das eras
da eternidade. Cavalga o Pássaro da Vida, se quiseres ter conhecimento.” [11]
A Lei
está no centro da Roda da Vida, e nela não há oscilações, mas paz e
bem-aventurança. “Imitação de Cristo” complementa:
“É bom passarmos
algumas vezes por aflições e contrariedades. Porque elas frequentemente fazem o
homem refletir, lembrando-lhe que vive no desterro e, portanto, não deve pôr a
sua esperança em coisa alguma do mundo. É bom encontrarmos às vezes
contradições, e que de nós façam conceito mau ou pouco favorável, ainda quando
nossas obras e intenções sejam boas. Isso normalmente nos conduz à humildade e
nos preserva da vanglória. Porque recorremos mais depressa ao testemunho
interior de Deus [da Lei Universal], quando de fora somos vilipendiados e
desacreditados pelos homens. Por isso o homem deve firmar-se de tal modo em
Deus [na Lei Universal] que não lhe seja mais necessário mendigar consolações
das criaturas.” [12]
Como,
então, se pode agir corretamente?
Marco
Aurélio - o imperador-filósofo do mundo romano - escreveu em seu caderno de
anotações:
“A
perfeição moral consiste em viver cada dia como se fosse o último, evitando a
agitação excessiva, a indiferença e a hipocrisia.”[13]
E ainda:
“Pensa
firmemente a cada instante (...) em fazer o que estiver em tuas mãos com uma
seriedade total e sincera, com sentimento, independência e justiça; e trata de
livrar-te de quaisquer outras preocupações. Livrar-te-ás delas se praticares
cada ação de toda a vida como se fosse a última, evitando a negligência, a
aversão doentia ao domínio da razão, a hipocrisia, o egoísmo e o inconformismo
diante do que te foi destinado. Vês como são poucos os requisitos que basta
dominar para viver uma vida correta e agradável aos deuses, pois os deuses não
reclamarão nada mais a quem observar estes preceitos.”[14]
O
hábito de agir corretamente é uma fonte inesgotável de felicidade interior, e “Imitação
de Cristo” esclarece:
“A
glória do homem virtuoso é o testemunho da boa consciência. Conserva pura a
consciência, e sempre terás alegria. A boa consciência pode suportar muita
coisa e permanece alegre até nas adversidades. A má consciência anda sempre
medrosa e inquieta. Gozarás suave sossego, se de nada te acusar o coração. Não
te dês por satisfeito, senão quando tiveres feito algum bem.” [15]
Estes preceitos da sabedoria
universal são úteis para todo ser humano, e o protegem tanto da euforia - na
vitória - quanto do desânimo, na derrota. É também recomendável falar deles a amigos
e pessoas próximas: deste modo, um número crescente de pessoas será capaz de receber
com desapego os momentos agradáveis da vida, e de enfrentar com coragem as
horas difíceis.
NOTAS:
[1] “A Arte
de Viver”, Epicteto, uma nova interpretação
de Sharon Lebell, Ed. Sextante, RJ, 2000, 159 pp., ver p. 20.
[2] “Enchiridion”,
Epictetus, Dover Publications, Mineola, New York, copyright 2004, 56 pp., ver
p. 26.
[3] “Imitação de Cristo”, Tomás de
Kempis Ed. Vozes, Petrópolis, RJ, 2000, edição de bolso, 278 pp., ver Livro Terceiro,
início do Capítulo 42.
[4] “Brihadaraniaka
Upanixade”, em “The Principal Upanishads”, Edited With Introduction, etc., by
S. Radhakrishnan, Muirhead Library of Philosophy, London: George Allen &
Unwin Ltd, New York: Humanities Press, Inc., fourth impression, 1974, 958 pp.,
ver pp. 282-283.
[5] “Imitação de Cristo”, obra
citada, Petrópolis, RJ, 2000, p. 176, Livro III, Capítulo 44.
[6] “Imitação de Cristo”, obra
citada, p. 87.
[7] “Imitação de Cristo”, obra citada,
p. 89.
[8] “Imitação de Cristo”, obra
citada, p. 88.
[9] “A Voz
do Silêncio”, Helena P. Blavatsky, edição online de nossos websites associados,
ver Fragmento I, aforismo
14.
[10] “A Voz
do Silêncio”, de Helena Blavatsky, obra citada, Fragmento I, aforismo 65.
[11] “A Voz do Silêncio”, de Helena Blavatsky, obra citada, Fragmento I, aforismos
17, 18 e 19.
[12] “Imitação de Cristo”, obra
citada, Livro I, cap. 12, p. 29.
[13] “Meditações”,
Marco Aurélio,
Ediouro, RJ, Livro VII, parágrafo 69,
p. 84.
[14] “Meditações”,
obra citada, Livro II, parágrafo
5, p. 31.
[15] “Imitação de Cristo”, obra
citada, p. 76.
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Em setembro de 2016, depois de cuidadosa análise da situação
do movimento esotérico internacional, um grupo de estudantes decidiu formar a Loja
Independente de Teosofistas, que tem como uma das suas prioridades a construção de um futuro melhor nas
diversas dimensões da vida.
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