Três Aspectos de uma Obra Sagrada
António Ramos Rosa
1. O
Horizonte do Operário
A
finalidade da construção não é a obra acabada para ser habitada finalmente na
tranquilidade de um repouso merecido. O gesto construtivo é um fim em si mesmo,
porque é um modo de abrir e habitar o espaço da construção. A obra nunca será
uma propriedade mas sim a atividade incessante de um operário que se constrói a
si mesmo em cada gesto construtivo.
A
matéria obscura e a matéria diurna reúnem-se num gesto inovador que se
repercute no construtor amante. A realidade aparece agora à luz desse gesto
amoroso e ingênuo que é como um feixe de centelhas que se curva, se eleva e se
abate sobre a pedra e a modela tornando-a um astro do instante criativo. Graças
a esta ação construtiva, a opacidade da existência é integrada no movimento
instaurador da construção e, sem ser suprimida, torna-se uma componente
estética da obra em construção. Esta transformação da relação com o real não
encerra o ciclo das interrogações, das dúvidas e angústias do construtor. Estas
são revividas à luz da gênese construtiva e consagradas como momentos do
mistério vivo do real. Todavia, isto não quer dizer que toda a negatividade da
existência humana seja reabsorvida e integrada pelo processo construtivo. O
núcleo deste é sempre um ponto negro e as suas margens confinam com o silêncio
do impronunciável.
O
gesto construtivo não suprime ou elide [omite] o negativo, mas o seu ímpeto
inadiável e a sua verticalidade erigem-se sobre o fundo negro da existência e
criam o horizonte das possibilidades iniciais da construção humana.
2. A Integridade
da Ação
Todo
o gesto construtivo tem como objetivo essencial a integridade do ser. A
liberdade inteira da construção radica-se na una totalidade de um corpo que se
perspectiva e configura a sua energia e a desenvolve em consonância com a sua
integridade, que é, ao mesmo tempo, a origem e o alvo incessante da sua
realização.
Ser
íntegro é sentir o peso inteiro da terra sobre as pálpebras e ter os olhos
abertos sobre a amplitude azul do mar. A construção é, assim, o movimento da
unificação do corpo e do espaço, da luz e da sombra, da presença e da ausência.
Um
círculo se forma em torno do ser e os seus sucessivos anéis possuem a leveza e
o fulgor de uma idade que é, simultaneamente, maturidade, adolescência,
infância. Este instante é o instante da integridade pura em que o ser é
envolvido pela sua construção aberta e transparente. A diferença radical
inerente ao ser como fundamento primeiro integra-se na unidade construída da
obra e nela reaparece como a pulsação do informulável que nunca pode ser
aprendido ou delimitado.
A
integridade, com todas as suas raízes imperceptíveis e a sua imperceptível
atmosfera, orienta o itinerário da construção que a consagra e a eleva ao plano
da totalidade visível e ao seu esplendor inicial. A construção torna-se, então,
a esfera do Uno e a habitação viva em que o construtor e a natureza se unem na
unidade viva da origem.
3. A Serena
Infinidade do Trabalho
Todo
o trabalho de construção é feito a partir de uma diferença essencial e o seu
objetivo é desenvolvê-la em todos os planos até alcançar a semelhança com o
incomparável inerente ao movimento da construção e por isso mesmo oculto e
inacessível.
A
construção é assim o percurso de uma diferença até ao reconhecimento da
identidade dessa diferença. Este movimento não é horizontal mas circular, uma
vez que cada gesto do construtor reúne em si a matéria árida e informe e o
impulso formador que se origina no dinamismo genético do incomparável.
Cada
instante construtivo propõe a semelhança de uma identidade inicial filha da
diferença e, sem o revelar, consuma a violência fulgurante do incomparável. A
infinidade da construção concentra-se em cada momento construtivo, porque a
energia do ser está toda dirigida para o único ponto de aplicação em que o
desejo se atualiza e se inaugura na liberdade da sua inocência descoberta.
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Os
trechos acima são reproduzidos da obra “O
Aprendiz Secreto”, de António Ramos Rosa, Quasi Edições, Vila Nova de
Famalicão, Portugal, 2001, 80 páginas. O primeiro é da p. 71. O segundo, da p.
55. Ambos fazem parte da edição de novembro de 2016 de “O Teosofista”, onde
estão sob o título de “Dois Fragmentos Sobre a Construção”. O terceiro
fragmento está à página 34 da mesma obra e foi publicado em “O Teosofista” de abril de 2017, pp.
9-10, sob o título “A Infinidade da Construção”.
Ramos Rosa
O artigo
“A Construção Invisível” foi
publicado nos websites associados dia 10 de julho de 2019. Do mesmo autor, leia
também “O Mistério da Construção”. O poeta
português António Ramos Rosa viveu de 1924 a 2013.
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