23 de abril de 2020

A Ioga de Cabral e Camões

A Disciplina Secreta da Alma
Durante o Ciclo dos Descobrimentos

Carlos Cardoso Aveline


A capa do livro de Metzner Leone e uma medalha de bronze, com 11,5 cm de diâmetro,
produzida em Portugal,  em 1980, para celebrar a vida de Luís de Camões (1524-1580)



O que acontece quando a arte adota como hábito central a produção e expressão de emoções negativas?  

O resultado não pode ser muito luminoso.

Em sua biografia de Pedro Álvares Cabral, o jornalista Metzner Leone defende uma tese bastante razoável a respeito das lamúrias e lamentações que dominam o estilo musical do fado lusitano.

Leone afirma que este tipo de manifestação artística reflete as fases decadentes de uma cultura. Para ele, o estoicismo ou ânimo forte diante do sofrimento, demonstrado por Pedro Álvares Cabral e outros navegadores dos séculos 14 e 15, expressa os momentos ascendentes da evolução dos povos. [1]

De fato, em Raja Ioga, a prática de Tapah ou austeridade é o modo pelo qual o estudante fortalece sua vontade. Com Tapah  o peregrino purifica o seu ser e o transmuta enquanto avança na direção da sabedoria.

Num sentido essencial do termo, Cabral (1468-1520) desenvolveu elementos básicos de ioga através da prática de Tapah e de outros fatores. Entre eles estão a disciplina, a coragem, a perseverança, o discernimento.

Desde o início da humanidade, a vida ensina ioga a quem estiver pronto para aprendê-la.  Cerca de quinhentos anos atrás, todos os cidadãos pioneiros desenvolviam a prática da austeridade na sua existência diária.

No século 21, a tendência de acomodar-se com os confortos “modernos” é bastante forte. No entanto, o estudante de ioga sempre pode resgatar conscientemente o abandono do conforto pessoal vivido pelos grandes navegadores, entre eles Cabral. O mesmo é válido para todas as gerações prévias de buscadores da sabedoria e pessoas que lutaram pelo progresso da condição humana.

A Austeridade de Quem Abre Caminho para o Futuro

Em sua biografia de Pedro Álvares,  Leone mostra a ética e a integridade do navegador. Estes são dois elementos indispensáveis em Ioga.

Tapah, vista como prática da austeridade pessoal, permite reunir e estocar força de vontade. Produz magnetismo, isto é, energia interna. Fortalece a estrutura da personalidade. Gera bom carma. Dota o indivíduo de uma capacidade de vencer. Desperta as potencialidades superiores da alma.

A austeridade é um tema central em teosofia e filosofia esotérica, e permite uma unidade estável entre observador e coisa observada, que leva ao samadhi em Raja Ioga.

A mente adota a forma daquilo que ela contempla, segundo Patañjali, em Aforismos, Livro I, 4. Platão ensina o mesmo. E Luís de Camões, o grande poeta que ligou o ciclo dos descobrimentos à sabedoria antiga, escreveu:

Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho, logo, mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está ligada.

Mas esta linda e pura semideia,
Que, como um acidente em seu sujeito,
Assim [ela] com a alma minha se conforma,

Está no pensamento como ideia;
[E] o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma. [2]

Viver em Retiro

Para construir a ioga da alma, o peregrino procura viver longe do barulho desnecessário. 

Ainda que fisicamente esteja no mundo, habita sobretudo um templo em sua própria consciência.

Luís de Camões, considerado o maior poeta do mundo lusófono, viveu tanto quanto Pedro Álvares as viagens épicas e os naufrágios do século 16. É verdade que Camões expressa o exagero emocional típico do romantismo, corrente da qual sua obra lírica é precursora. Mas ele conhece algo da verdadeira sabedoria, e daí vem a melhor parte da sua grandeza. O autor de Os Lusíadas descreve assim o seu retiro para o plano estável da percepção interna:

Julga-me a gente toda por perdido,
Vendo-me tão entregue a meu cuidado,
Andar sempre dos homens apartado,
E dos tratos humanos esquecido.

Mas eu, que tenho o mundo conhecido,
E quase que sobre ele ando dobrado,
Tenho por baixo [3], rústico, enganado
Quem não é com meu mal engrandecido. [4]

Vá revolvendo a terra, o mar e o vento,
Busque riquezas, honras a outra gente,
Vencendo ferro, fogo, frio e calma;

Que eu só em humilde estado me contento
De trazer esculpido eternamente
Vosso formoso gesto dentro na alma. [5]

Protegida precariamente pela casca de nós da sua existência pessoal, a alma de cada peregrino navega no oceano do infinito, e nem sempre lembra disso.

Ela ganha pouco a pouco uma familiaridade com a sabedoria universal. Ela aprende passo a passo a compreender o todo, sem perder a percepção da parte.

NOTAS:

[1] Veja a respeito as páginas 151-152 e 245 da obra Pedro Álvares Cabral”, de Metzner Leone, Editorial Aster, Lisboa, 1968, 525 páginas.

[2] “Camões Contemporâneo”, Morão Correia, 2ª edição, Papelaria Fernandes, S.A.R.L., Lisboa, 1984, 140 pp., p. 36. Veja também “Obras Completas”, Luís de Camões, Volume I, Livraria Editora Sá da Costa, Lisboa, quinta edição, 1985, prefácio e notas do prof. Hernâni Cidade, 355 pp., p. 198.

[3] “Tenho por baixo”, isto é, “considero baixo, ou inferior, inexperiente, ignorante”, quem não partilha deste sofrimento.  

[4] Isto é, “quem não é como eu engrandecido pela dor”.

[5] Reproduzido de “Obras Completas”, Luís de Camões, Volume I, Livraria Editora Sá da Costa, Lisboa, 1985, prefácio e notas de Hernâni Cidade, 355 pp., ver p. 260.

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Pedro Álvares Cabral faleceu no ano de 1520. O artigo acima foi publicado como item independente nos websites associados 500 anos depois, no dia 22 de abril de 2020. Uma versão inicial do texto, sem indicação do nome do autor, faz parte da edição de outubro de 2019 de “O Teosofista”, pp. 5-7.

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Clique para ver o livro Pedro Álvares Cabral”, de Metzner Leone.  Do mesmo autor,  há o artigo Cabral Não Descobriu o Brasil”. 

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Leia mais:

Meditando Pelo Despertar de Portugal”. 

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