Filósofo Russo Afirma que Toda Moda
Social é uma Mentira Adotada por Consenso
Carlos Cardoso Aveline
Aquilo que parece
verdade frequentemente precisa ser examinado com lupa
“Sê firme em teus pensamentos;
Consistente em tuas palavras.
Deves ser rápido ao ouvir,
Mas lento ao responder. (…)
Evita que digam que tens duas caras;
Não digas calúnias contra ninguém.” [1]
O filósofo russo Nicolas Berdyaev (1874-1948) fez um exame cuidadoso dos hábitos modernos da autoilusão, coletiva e individual.
De acordo com ele, em muitas situações mentir é considerado correto e até obrigatório. Dizer a verdade é com frequência indesejável e talvez inaceitável na vida social. Referindo-se a várias correntes de pensamento cristão, Berdyaev escreveu em seu livro “The Destiny of Man”:
“Um católico tem que falar de Lutero de uma determinada maneira, mesmo que seja contra sua consciência e seu livre julgamento; e ele nem sequer percebe isso, porque a sua consciência moral é organizada socialmente e está por completo permeada pelas mentiras úteis, aceitas por convenção. Exatamente a mesma coisa pode ser dita sobre os protestantes, os ortodoxos e as pessoas de outras denominações. Acumulou-se uma porção incrível de falsidade em todas as Histórias do Cristianismo feitas por esta ou aquela denominação, de modo que a verdade foi sistematicamente distorcida. Todo o relato católico romano sobre o papado está baseado em mentiras e falsificações aprovadas por consenso, que servem para criar o mito do papismo. [2] Há uma mentira convencional social nas opiniões do cristão ortodoxo a respeito da separação das igrejas, tal como há no caso dos protestantes em relação à Reforma, e assim sucessivamente.” [3]
Berdyaev está apontando para um problema presente em muitos aspectos da vida, tanto no tempo moderno como nos tempos antigos. É fácil encontrar exemplos recentes de falsidade adotada por consenso, ou por convenção. O movimento esotérico moderno não está livre disso. No século atual, a agenda do esforço teosófico inclui a tarefa de libertar-se de diversas fraudes bem-intencionadas. Ao mesmo tempo que o conjunto do movimento espiritual enfrenta este desafio, também é preciso examinar as atividades científicas da nossa civilização.
Berdyaev afirma:
“A ciência tenta libertar-se das mentiras convencionais e das ideias preconcebidas, sejam elas religiosas, filosóficas, sociais ou nacionais; a ciência busca a verdade pura, sem adornos, por mais amarga que a verdade possa ser. Esta é a grande tarefa da ciência. Mas que porção de falsidades se acumula em torno da ciência! Foi criada uma nova corrente quase religiosa, o Cientificismo, e os valores humanos mais importantes são sacrificados no altar do novo ídolo. Cientistas lutam contra Deus, imaginando que ao fazer isso defendem a verdade e a justiça.”[4]
Berdyaev acrescenta na mesma página:
“A liberdade do pensamento científico degenera em livre-pensamento, isto é, em um novo tipo de dogmatismo. E este novo dogmatismo usa mentiras convencionais para alcançar os seus próprios objetivos. Os acadêmicos, os professores de universidade, os cientistas, certamente não são o tipo de ser humano que está livre de ideias preconcebidas e falsidade convencional, e frequentemente demonstram que são escravos obedientes a elas, ao invés de dominá-las. As decisões deles não surgem de uma consciência clara e livre. Há uma opinião pública convencional no mundo da ciência, bastante tirânica, e que destrói a liberdade de pensar.”
O processo da falsidade consensual ocorre na ciência, na religião e no movimento teosófico. Os ensinamentos originais da filosofia esotérica capacitam os seus estudantes a ver pouco a pouco as várias camadas da ilusão. O que dizer das nações modernas, das classes sociais e dos partidos políticos?
Há muitos séculos os judeus vêm sendo odiados sistematicamente por causa da sua nacionalidade e da sua religião. Mais recentemente, o antissemitismo decidiu concentrar seus esforços em ataques, com frequência disfarçados, contra o Estado de Israel.
Outro exemplo: os principais fabricantes de guerras do mundo ocidental, entre eles Napoleão Bonaparte e Adolf Hitler, têm ensinado o Ocidente a odiar automaticamente tudo o que é da Rússia, apesar do fato de que o sentimento natural entre o Oriente e o Ocidente é há muito tempo de amizade, que leva à ajuda mútua.
A distorção politicamente correta dos fatos tem sido usada também contra outras nações. O mesmo processo atua em quase todos os aspectos da vida. As campanhas de propaganda que promovem lavagem cerebral são parte do nosso dia-a-dia. Na ausência de um sincero amor pela verdade, até mesmo as leis e o sistema judicial podem ser astutamente usados como armas para boicotar o resultado legítimo de eleições democráticas.
Berdyaev limita-se a colocar fatos:
“A falsidade convencional das opiniões adotadas por pessoas de uma nacionalidade a respeito de pessoas de outra nacionalidade, ou por membros de uma classe social sobre membros de outra classe, é algo que todos reconhecem. Este tipo de falsidade tem-se acumulado na consciência das nações e na consciência das classes há séculos e passou a ser vista como algo bom e verdadeiro. Não é preciso dizer que quase toda a vida política e as relações entre partidos políticos são baseadas em falsidade. O mesmo pode ser dito a respeito das ideias inspiradas por uma determinada escola de pensamento. Marxistas, idealistas, positivistas, tomistas, tolstoistas, teosofistas, todos são influenciados por suas próprias mentiras convencionais ao avaliar as outras tendências de pensamento; eles não têm uma percepção e um discernimento que sejam puros e livres.” [5]
O perigo é semelhante no mundo cultural:
“O mesmo pode ser dito das tendências da arte e da literatura - o classicismo e o romantismo, o realismo e o simbolismo. Nas valorações estéticas, o esnobismo cumpre um papel simplesmente incrível. Um especialista em estética é uma criatura destituída de toda liberdade de percepção e de opinião. Uma quantidade esmagadora de falsidade convencional é acumulada na família, na nação, no estado, na igreja, na história, na moralidade, na arte e na ciência. Todas estas instâncias têm uma retórica convencional que é falsa e que implica uma separação das fontes originais do ser. As pessoas encontraram um jeito de converter a própria revelação cristã em uma retórica convencional, deste modo colocando em dúvida a verdade.”
A sabedoria presente nas escrituras cristãs é esquecida quando as pessoas repetem a letra morta dos textos sagrados, sem fazer qualquer esforço para viver à altura deles. Quanto à organização de consensos de curto prazo, Berdyaev escreve:
“A chamada ‘opinião pública’ se baseia na falsidade convencional e usa mentiras para impor-se sobre as pessoas. Toda moda social é uma mentira adotada por convenção.” [6]
Não pode haver busca da verdade se não estivermos dispostos a rejeitar os erros. Mas deixar os erros de lado exige força de vontade.
De acordo com a filosofia esotérica, a fonte de lucidez está em nosso próprio espírito. A verdade eterna transcende todas as visões distorcidas da realidade. Maya, ou ilusão, pertence à alma animal no ser humano: a busca da verdade é inspirada pela alma imortal. No entanto, os ataques pessoais devem ser evitados. A má vontade promove a ignorância espiritual. Ben Sira, o sábio judeu, faz um alerta:
“Não digas nada que prejudique alguém, em coisas grandes ou pequenas;
Não sejas um inimigo ao invés de um amigo”.[7]
NOTAS:
[1] Traduzido do livro “The Wisdom of Ben Sira” (também conhecido em inglês como “Ecclesiasticus” e “Sirach”), 5:10-11 e 5:14, na p. 180 da edição publicada por Yale University Press, New Haven & London, 2010, 620 páginas. Em português, outra versão pode ser vista em “A Bíblia de Jerusalém”, Edições Paulinas, São Paulo, 1985, ver Eclesiástico, p. 1249, 5:10-11 e 5:14. (CCA)
[2] Nota de Berdyaev: “Com isso não pretendo de modo algum minimizar a enorme importância do papismo na história do cristianismo ocidental.”
[3] The Destiny of Man, de Nicolas Berdyaev, Harper Torchbooks, Harper & Brothers, New York, 1960, 310 pp., ver página 162. (CCA)
[4] The Destiny of Man, de Nicolas Berdyaev, 1960, p. 162. (CCA)
[5] The Destiny of Man, de Nicolas Berdyaev, pp. 162-163. (CCA)
[6] The Destiny of Man, de Nicolas Berdyaev, 1960, p. 163. (CCA)
[7] “The Wisdom of Ben Sira”, obra citada, 5:15, na p. 180 da edição publicado pela Yale University Press, New Haven & London, 2010. Em português, outra versão pode ser vista em “A Bíblia de Jerusalém”, Edições Paulinas, SP, 1985, ver Eclesiástico, p. 1249, 5:15. (CCA)
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O texto acima foi publicado nos websites associados no dia 26 de julho de 2023. Trata-se de uma tradução do artigo Berdyaev, On the Social Use of Falsehood. Além dos websites da Loja Independente de Teosofistas, o texto original em inglês está disponível no blog teosófico em The Times of Israel.
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Sobre a dificuldade humana de aceitar a verdade dos fatos, veja o texto de Malba Tahan intitulado Uma Fábula Sobre a Fábula.
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