19 de junho de 2025

Pirkê Avót, a Ética Judaica do Talmud

 
A Unidade da Visão Teórica
Com a Prática Pessoal Cotidiana
  
Carlos Cardoso Aveline
  



No Monte Sinai,  Moisés  não recebeu apenas a Torá, que é o Pentateuco, a Lei escrita do judaísmo, depois adotada pelos cristãos.  

O sábio judeu recebeu igualmente uma Torá oral, shebealpe, a Mishná.  Com o correr do tempo, a Mishná, o ensinamento oral, foi acrescida de histórias e comentários chamados de Guemará.

Mishná e Guemará, combinadas, formaram o Talmud, isto é, o conjunto da tradição oral judaica.

A partir do século  II da era cristã, o Talmud foi colocado em papel, para evitar que a sua riqueza se perdesse devido à diáspora, isto é, a dispersão forçada do povo judeu, sempre perseguido devido à doença coletiva do antissemitismo. Cabe lembrar que o antissemitismo era uma política oficial da igreja católica e de quase todos os governos.

Mas a verdade é que não há um Talmud apenas. Há o Talmud de Jerusalém, e existe também o Talmud da Babilônia, mais elaborado e que foi concluído alguns séculos depois.  

O Pirkê Avót é a sabedoria da Ética,  também conhecido como “A Ética dos Pais”. O que significa a Ética?  Sua função é ligar a visão teórica da Torá a uma prática espiritual cotidiana,  através de preceitos (mitsvót) claros e normas de vida definidas.

A palavra Mishná é usada, na prática, também para designar cada um dos seus trechos ou leis.

A seguir trago em negrito trechos selecionados de algumas das Mishnás do Pirkê Avót, com base na obra intitulada “A Ética do Sinai”, de Irving M. Bunim.[1]  

Sem negrito, em itálico, acrescento comentários desde o ponto de vista teosófico. Ao final de cada citação, entre parênteses, coloco as referências e o número de página em que as palavras serão encontradas. O presente artigo visa funcionar como um convite para o estudo de “A Ética do Sinai”. Com seis capítulos, o livro é uma fonte legítima de orientação no caminho espiritual e amplia o horizonte ético do estudante de teosofia.

A Base do Mundo

* O mundo se mantém sobre três coisas: a Torá, o serviço Divino e a beneficência. (Cap. 1, Mishná 2, p. 21)

Uma civilização se mantém sobre três princípios. Primeiro, a Lei divina, o ensinamento espiritual. Segundo, a vida religiosa, o esforço por compreender o mundo divino. Terceiro, a ação altruísta, a boa vontade em ação. Em outras palavras, o mundo desmorona sem ética.  A Mishná 18, por sua vez, afirma: “O mundo existe graças a três coisas: a verdade, a justiça e a paz; pois foi dito: ‘Que a verdade, a justiça e a paz reinem nas vossas portas’ [vossas casas]”. (Cap. 1, Mishná 18, p. 64)

A Relação com os Outros

* Afasta-te do mau vizinho, não te associes ao ímpio e não desacredites na retribuição de todas as ações. (Cap. 1, Mishná 7, p. 38)

Este afastamento é sobretudo psicológico. Significa que não se deve seguir o exemplo das pessoas que ignoram importância da ética. Elas têm o mundo psicológico delas, que é muito diferente do nosso, e podemos irradiar o nosso mundo, mas não devemos absorver em nossa vida o que não vale a pena. “Retribuição” é a colheita cármica. Todas nossas ações terão consequências para nós, conforme a natureza delas.

* ... Ama a paz e busca a paz, ama as criaturas e aproxima-as da Torá. (Cap. 1, Mishná 12, p. 48)

* Quem apregoa o seu [próprio] nome, perde o nome; quem não aumenta seus conhecimentos, diminui; quem não se instrui,  não é digno de viver (…). (Cap. 1, Mishná 13, p. 51)

Irving M. Bunim traz na mesma página outra citação do Talmud: “Se você abandonar a Torá por um dia, ela o abandonará dois.” Se não reforçamos continuamente o nosso conhecimento, forças negativas atuarão sobre nós e abrirão as portas do esquecimento.

Agir Por Si Mesmo, Agora

* Ele (Hillel) dizia: Se eu não for por mim,  quem será  por mim?  Mas se eu for só por mim, o que sou eu? E se não agora, quando? (Cap. 1, Mishná 14, p. 54)

O relâmpago do desafio: viver com responsabilidade, aqui, neste momento. 

* Fui criado entre os sábios e não encontrei nada melhor para o homem que o silêncio; não é a  teoria o principal mas a prática; e quem fala demais, traz o pecado. (Cap. 1, Mishná 17, p. 62)

A fala deve ser limitada, e quando ocorre deve acontecer como parte da prática diária da busca da verdade e da busca do supremo. A fala que não surge desde o ponto de vista da alma deve ser gradualmente eliminada, a partir do momento em que vemos a sua futilidade incurável. A teoria desligada das ações é uma forma de delírio intelectualoide a ser naturalmente evitada pelas pessoas sensatas.

Definir o Rumo em que Avançamos

* Que rumo deve o homem escolher para si? O que honra a quem o adota e o faz ser respeitado por todos. Sê tão cuidadoso com um preceito que pareça menor, quanto com um mais grave, pois ignoras suas  recompensas; compara o prejuízo eventual de um preceito com o seu ganho, e o ganho eventual de uma transgressão com o seu prejuízo. Lembra três coisas e não pecarás: lembra que acima de ti há um olho que vê, um ouvido que escuta, e que todas as tuas ações são inscritas num livro. (Cap. 2, Mishná 1, p. 68)

A Lei do Carma registra todas as ações, e reações, para débito e crédito de cada um.

* ... Se todos os sábios de Israel estivessem num dos pratos duma  balança e Eliezer ben Horkenos no outro, este pesaria mais do que todos. (Cap. 2, Mishná 12, p. 102)

A verdade  não é construída pela opinião da maioria, mas pela cuidadosa constatação dos fatos.

* Que a honra do teu próximo seja para ti tão cara quanto a tua própria; não te encolerizes facilmente; arrepende-te um dia antes da tua morte. Aquece-te ao calor dos sábios,  mas toma cuidado com as suas brasas para não te queimares; a mordida deles é a mordida da raposa; a picada deles é a picada do escorpião;  o sibilar deles é o sibilar da serpente, e todas as palavras deles são como brasas incandescentes. (Cap. 2, Mishná 15, p. 108)

A verdade queima. É uma forma de cauterização, frequentemente feita sem anestesia.

* ... Considera perante quem te esforças e quem é o senhor que irá retribuir com o pagamento por teu trabalho.  (Cap. 2, Mishná 19, p.121)

A Lei te recompensará. E lembra sempre de que estás na presença divina. No mínimo, estás na presença divina da tua alma imortal. E tua alma espiritual não é exatamente tua. És tu que pertences a ela. Ela deu origem à tua encarnação atual, e ela é a herdeira universal de cada uma das tuas existências cíclicas, inclusive da tua vida presente. 

* ... Lembra-te de onde vieste, para onde vais e ante quem haverás de prestar contas.  De onde vieste? De uma  gota fétida.  Para onde vais? A um lugar de pó, de vermes e de teredos. Ante quem irás prestar contas? Perante o Rei dos reis,  o Santíssimo (...). (Cap. 3, Mishná 1, p.128)

Sobre o fato de que somos pó, ver  Gênesis, 2:7,  Jó 10:9 e Jó 20:11 - além do Novo Testamento. Naturalmente, esta advertência se refere exclusivamente ao nosso eu inferior.  Nós mesmos somos uma alma, e tal como um pássaro voaremos livres um dia. Mas também prestaremos contas sempre ao nosso Eu superior.

A Arte de Fazer uma Refeição

* ....  Se três homens comeram à mesa e falaram da Torá, é como se tivessem comido à mesa do Onipresente, pois foi dito (Ezequiel,  41:22): (...) ‘Esta é a mesa que está perante o Eterno’. (Cap. 3, Mishná 04, p.139)

Eleve os seus pensamentos durante as refeições, e haverá um alimento espiritual, além do alimento físico.  

* ... Quem se coloca sob o jugo da Torá, alivia-se do jugo das autoridades terrenas e das questões materiais, mas quem repele o jugo da Torá, terá imposto sobre si o jugo das autoridades terrenas e das questões materiais. (Cap. 3, Mishná 06, p.144)

A palavra “Jugo” é um dos sinônimos de “Ioga”. Cabe colocar-se sob o jugo da Torá, isto é, sob a ioga e a disciplina do ensinamento ético clássico.

É bom perguntar-se: em que níveis da realidade estou criando carma, ou seja,  alimentando cadeias de causas e efeitos? E qual é o bom carma que estou plantando agora mesmo?

A Arte de Aprender

* Rabi Chalafta ben Dossa, de Kfar Chananiá, diz:  Quando dez pessoas se reúnem e se dedicam ao estudo da Torá, a presença divina está entre eles, pois foi dito: ‘Deus está presente na congregação dos que n’Ele creem’ [Salmo 82:1].  De onde aprendemos que isso se aplica mesmo que sejam apenas cinco pessoas?  Do versículo: ‘E estabeleceu o seu ajuntamento na terra’. E de onde aprendemos que o mesmo se aplica se forem apenas três? Do versículo: ‘No meio de juízes, Ele (Deus) julga’ (Salmo 82:1).   E como percebemos que o mesmo se aplica para apenas duas pessoas?  Do versículo ‘Então os que temem ao Eterno falavam uns aos outros, e o Eterno prestava atenção e ouvia’ (Malaquias, 3:16). E como aprendemos que até para uma só pessoa isso se aplica? Do versículo ‘Em todo lugar onde eu fizer invocar o Meu Nome, virei a ti e te abençoarei’ (Êxodo 20:21). (Cap. 3, Mishná 07, p.146)

O tema merece contemplação.  Quando quiser refletir mais a respeito, leia os artigos “A Prática da Presença Divina” e “A Presença Sagrada Junto a Nós”.

* ... Em todo aquele cujas boas obras excedem sua sabedoria, a sabedoria subsiste; mas em todo aquele cuja sabedoria excede suas boas obras, a sabedoria não subsiste. (Cap. 3, Mishná 12, p.161)

A tarefa diante de nós é ligar céu e terra em nossas vidas. O conhecimento espiritual que não é colocado em prática não é verdadeiro conhecimento, e tampouco é verdadeiramente espiritual. Por esses dois motivos, ele sofre rápida erosão e dá lugar à derrota, que será uma lição.  

* ... Tudo é dado sob penhor e uma rede é estendida para todo ser vivente. A loja está aberta e o lojista concede crédito; a caderneta está aberta e a mão escreve nela. Quem quiser empréstimos, pode vir e recebê-los; mas os cobradores cumprem diariamente sua tarefa e cobram o débito de cada ser humano, ainda que este não se aperceba disto; eles têm para isto pleno fundamento e seu julgamento é verdadeiro; e tudo está preparado para o banquete. (Cap. 3, Mishná 20, p.188)

O ensinamento de que tudo o que fazemos é registrado no Livro da Vida, para nosso débito ou crédito, está presente também em mais de uma passagem das Cartas dos Mahatmas.

* ... Apressa-te a cumprir tanto um preceito fácil como um difícil, e foge da transgressão, pois uma boa ação atrai outra boa ação e uma transgressão atrai outra transgressão; a  recompensa de uma boa ação está na boa ação,  e a consequência de uma transgressão é outra transgressão. (Cap. 4, Mishná 02, p.206)

Também este trecho é uma excelente exposição do funcionamento da lei do carma.

* ... Dedica-te menos aos negócios para te ocupares com a Torá; sê humilde de  espírito perante todos.  Se abandonares a Torá, muitas causas para abandoná-la apresentar-se-ão a ti; mas se te esforçares na  Torá, haverá muita recompensa para ti. (Cap. 4, Mishná 12, p.237)

É preciso “desocupar-se para viver a  sabedoria”, como propunha Lúcio Sêneca.

* ... O arrependimento e as boas ações são como um escudo contra a punição. (Cap. 4, Mishná 13, p.240)

Identificar nossos erros nos permite não repeti-los; mas o orgulho, ou a cegueira, nos  faz, às vezes, andar em círculos. Por outro lado, as boas ações nos protegem da negatividade.  

* Há quatro tipos de alunos. 1) Aquele que entende rapidamente e esquece do mesmo modo - seu ganho é anulado por sua perda. 2) Aquele que tem dificuldade de aprender e dificuldade de esquecer - sua perda é anulada por seu ganho. 3) Aquele que compreende rapidamente mas dificilmente esquece - sua porção é boa. 4) Aquele que tem dificuldade de entender mas esquece facilmente - sua porção é má. (Cap. 5, Mishná 15, p.375)

Veja que tipo de aluno você é. Um autoexame regular é recomendável em teosofia. Mas o propósito de ver os pontos fracos é corrigir nossas falhas, e não provocar desânimo. A decisão de vencer deve ser reforçada a cada visão de um erro nosso.

* Há quatro tipos entre aqueles que se sentam diante dos eruditos de Torá: esponja, funil, filtro e peneira. Esponja é aquele que absorve tudo; funil, o que recebe de um lado e deixa escapar do outro; filtro, o que deixa sair o vinho e retém a borra; peneira, o que deixa sair o farelo e retém a farinha. (Cap. 5, Mishná 18, p.388)

No caso do funil, o ensinamento entra por um ouvido e sai pelo outro. Mas é sempre possível melhorar nosso desempenho, avançando na direção de ser uma peneira. 

Estas quatro componentes estão ativas em todos, variando conforme as áreas e aspectos do esforço do aprendiz.

* Todo amor dependente de um interesse (específico), quando deixa de existir o interesse, morre o amor;  mas o amor que não depende de qualquer interesse específico, este não acaba jamais. (Cap. 5, Mishná 19, p.390)

Essa simples frase demarca a linha divisória entre a boa vontade condicional e a boa vontade incondicional.  

Em Direção à Plenitude: as Etapas de uma Viagem

* Jehudá benb Tema costumava dizer: Aos cinco anos de idade é tempo de estudar a Escritura; aos dez anos, é a idade para o estudo da Mishná [o ensinamento oral]; aos treze anos, para a obrigação das mitsvót [preceitos morais práticos]; aos quinze para o estudo do Talmud; aos dezoito é tempo de casar; aos vinte é tempo de buscar uma profissão; aos trinta, atingir a plenitude da força física; aos quarenta, do entendimento; aos cinquenta, do conselho; aos sessenta, começa a velhice; aos setenta, a idade venerável; aos oitenta, se dão mostras de vigor; aos noventa, ele se encurva; aos cem, é como se estivesse morto e já desaparecido do mundo. (Cap. 5, Mishná 24, p.412)

Veja o artigo “Todas as Idades da Vida”.

O Estudo da Lei Que Nos Governa

* ... Aquele que se dedica ao estudo da Torá (simplesmente) porque a ama, merece grandes recompensas. Além disso, a criação do mundo inteiro é válida (mesmo que seja) só por sua causa. Ele é chamado de amigo e  amado. Ama ao Criador e Suas criaturas. (Cap. 6, Mishná 01, p.430)

Etimologicamente, a palavra “filosofia” significa “amor à sabedoria”. Aqui se unem o sentimento e a razão, e a união dos dois atrai a presença divina.

* Esta é a forma de estudar a Torá: come um pedaço de pão com sal, bebe pouca água,  dorme sobre a terra, vive uma vida árdua, e esforça-te no estudo da Torá. Se assim fizeres, ‘bem-aventurado serás e bem haverá para ti’ (Salmo 128, 2).  Bem-aventurado serás neste mundo, e bem haverá para ti no mundo vindouro. (Cap. 6, Mishná 04, p.454)

* Não procures grandeza para ti próprio, e não anseies pela honra; que tua ação exceda teu estudo.  Não cobices a mesa dos reis,  pois a tua mesa é maior que a deles e a tua coroa é maior que a deles, e teu Senhor é confiável, pois pagará o salário por teu trabalho. (Cap. 6, Mishná 05, p.459)

O “Senhor”, aqui, é a Lei Universal, a Lei do Carma. 

NOTA:

[1]A Ética do Sinai”, de Irving M. Bunim,  Editora e Livraria Sêfer, SP, segunda edição, 2001, 525 páginas.

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O texto “Pirkê Avót, a Ética Judaica do Talmud” está disponível nos websites da Loja Independente de Teosofistas desde 19 de junho de 2025. Uma versão inicial do artigo faz parte da edição de março de 2024 de “O Teosofista”.

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Leia mais:






* Corpo e Alma, Cavalo e Cavaleiro (texto de Theodoro D’Almeida).

* Regra da Vida Honesta (tratado estoico clássico de Martinho Bracarense).

* João de Deus, Louco, Santo, e Sábio (Como a Ruptura da Rotina Psicológica Pode Abrir as Portas Para a Vida Mística).

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Helena Blavatsky (foto) escreveu estas palavras: “Antes de desejar, faça por merecer”. 

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