Minha mente para mim é um reino;
Encontro nela um bem-estar tão perfeito
Que supera qualquer outra bênção,
Venha de Deus ou da natureza.
Sir Edward Dyer no poema
Há várias imagens que podem representar a natureza humana. Desde a abóbada celeste até ao mundo natural à nossa volta, percebemos nelas os elementos e as dinâmicas que compõem o ser humano. O micro está no macro, e o macro ecoa no micro.
Dentro de nós habitam planetas, estrelas distantes e todos os outros corpos celestes, como se o universo inteiro estivesse vivo no espaço da alma. As qualidades e os defeitos da comunidade planetária, do continente e do país aos quais pertencemos, residem igualmente em nosso interior.
O nosso mundo interno é vasto e variado: grutas misteriosas, florestas densas, cidades barulhentas, planícies silenciosas. Rios correm pelas veias, e águias sobrevoam as cordilheiras dos nossos pensamentos. O vento percorre as florestas e sussurra os segredos da alma, enquanto o fogo consome as impurezas. Cada elemento e cada paisagem refletem a complexidade e a riqueza da vida que flui dentro de nós.
Em nossas almas existem mundos inteiros.
Os conflitos mais feios, bem como os ideais mais nobres das sociedades, têm igualmente palco na existência interna de cada um. Temos cavernas que escondem medos, marés de emoções, montes feitos de memórias e de sonhos, e campos cultivados com as sementes de nossas ações.
Tudo isso reside no ser humano, como um território vasto e complexo que cada um deve aprender a conduzir com sabedoria.
Neste reino, a Alma Imortal, ou Eu Superior, é o Rei.
Os elementos da nobreza estão nas faculdades da mente mais elevada, como a razão, a intuição. Os conselheiros do Rei são os instrumentos superiores que ajudam a colocar em prática as decisões do Rei e o auxiliam nas tomadas de decisão através da criatividade, do planejamento, da experiência. Eles informam, orientam e aconselham, tornando possível que as decisões do Rei sejam sábias e que a harmonia se mantenha no reino. O discernimento alerta sobre impulsos que podem gerar desordem; a criatividade encontra caminhos para superar obstáculos; a memória recorda as lições do passado; o planejamento organiza a execução das decisões soberanas.
Quer a nobreza, quer os conselheiros, correspondem àqueles setores que são profundamente leais ao Eu superior e que ajudam o Rei no estabelecimento da verdade e da justiça.
Os pensamentos, emoções e hábitos são súditos do nosso Reino que precisam de uma liderança forte e equilibrada. As lembranças, os desejos e as experiências correspondem às terras com seus desafios e riquezas.
As batalhas deste reino refletem conflitos internos que precisam ser resolvidos com justiça. O nosso exército e guarda real são feitos de energia, de força de vontade, de autodisciplina, coragem, rotinas saudáveis, vigilância. Enfrentando possíveis impulsos negativos e crises internas, o exército tenta garantir que a vida do Rei esteja protegida e que as suas decisões sejam implementadas.
As leis do reino são os princípios, as normas e o ideal pelos quais devemos governar nossa conduta e nossas escolhas, de forma que haja coesão e paz.
Aprender a governar este reino é, portanto, a arte de integrar cada elemento e de estabelecer uma ordem harmoniosa.
Se o rei (a Alma Espiritual ou Atma) falha no bom governo, o reino interno entra em anarquia. Quando os conselheiros (discernimento) são ignorados, surgem as decisões erradas. Quando o povo (emoções) se rebela, nasce o caos interno. Se o exército (vontade) está fraco ou desordenado, há uma incapacidade para agir.
Para nós, ainda longe da consciência superior plena, é necessário educar corretamente a nossa Alma.
É precisamente sobre essa arte de educar e disciplinar o governante e de bem governar que refletiu Jerónimo Osório (1506-1580), bispo de Silves, em Portugal. Humanista, conhecido como o “Cícero português”, J. Osório escreveu a obra “Da Instituição Real e Sua Disciplina”[1], publicada em 1572 e dedicada a D. Sebastião, na época rei de Portugal. O tratado oferece conselhos sobre a condução do reino, as virtudes do soberano e a disciplina necessária para governar sabiamente. Algumas dessas lições podem ser aplicadas na arte de governar a nós mesmos.
Jerónimo Osório escreveu:
“…O encargo de reinar não pode prescindir das normas da honestidade. (…) O que tiver como sumamente bela a função de reinar, também terá como eminentemente nobre a prática de honestamente agir.” (p. 7)
No contexto cristão humanista de Jerónimo Osório, e também na perspetiva teosófica, o significado de “honestidade” inclui inteireza do caráter, a coerência entre o bem que se conhece e se pensa e o bem que se pratica.
O governante honesto é aquele cuja conduta se harmoniza com a Verdade, que reina não por si, mas segundo o princípio do Bem.
A verdadeira honestidade nasce do autodomínio. Muitos confundem honestidade com impulsividade, julgando-se sinceros e honestos ao expor, sem ponderação, tudo o que pensam e sentem.
Carlos esclarece no texto “O Poder da Honestidade”:
“A sinceridade deve andar junto com a boa intenção e uma inofensividade essencial. Ser honesto com as pessoas não é o mesmo que dizer a elas a primeira coisa que nos vem à cabeça. A franqueza cega dos impulsivos é um gesto automático, impensado e portanto irresponsável, causando frequentemente mais problemas do que soluções. A sinceridade precisa ser exercida com calma e de modo impessoal. É indispensável um equilíbrio interior.” [2]
Quem age por impulso ainda não governa a si próprio. E, conforme lembra Osório, “como poderá tutelar a liberdade dos seus quem for escravo de suas paixões?” (p. 9). E Carlos acrescenta que “ao lado da honestidade deve haver sensatez”. [3]
Assim como o rei terreno deve dominar suas paixões para governar com justiça, também nós, com nosso rei interno, devemos aprender a reinar sobre os nossos próprios impulsos, para que o território interior possa servir à Lei Universal e vá ao encontro da prosperidade e da bem-aventurança. Se tal não ocorrer o poder poderá ser tomado por um tirano, o que na nossa natureza interna ocorre quando qualquer aspecto inferior da alma humana ocupa o trono da consciência.
Osório faz a seguinte distinção entre o Rei e o tirano:
“É Rei o que obedece à inspiração divina, segue os ditames da reta razão, promove a justiça, reprime os crimes e as fraudes, observando em tudo a devida ordem e medida. É Rei o que consegue impor-se a toda a Nação pelos merecimentos de suas virtudes; o que todos os perigos afronta para salvar a pátria; o que, aspirando à posse da eterna glória, chega a desprezar a morte para alcançar a imortalidade.”
“Será, pelo contrário Tirano, aquele que não atender a Deus [isto é, a Lei Universal], enjeitar os ditames da razão, der guarida à impureza e ao prazer; o que violar as leis divinas e humanas e recorrer ao dolo e à simulação. Será tirano quem trocar a verdadeira dignidade por uma falsa aparência de decoro.” (pp. 9-10)
A tirania não é apenas um fato político, mas um estado de desordem espiritual: quando o eu inferior se apodera do governo, a luz da razão e da inspiração divina é ofuscada, e o reino interior cai em confusão. E bem ensinou José Bonifácio ao escrever: “A verdade, quando fica muda, introduz a tirania.” [4]
Reinar honestamente, no sentido mais elevado que Osório propõe, é manter o trono da consciência sob a autoridade legítima da Alma, estar em sintonia com a Lei Universal que também habita em nós. Somente assim o reino interno reflete a ordem divina.
Lemos em “Da Instituição Real e Sua Disciplina”:
“Reger ou governar é orientar algo para o seu devido fim. Por isso, quem rege ou governa o povo, esforça-se por conduzir os cidadãos, com ordem, medida e disciplina, ao objetivo para que todos devem tender. E esta finalidade consiste no engrandecimento e na prosperidade da república. Ora a prosperidade de um povo está em possuir o bem e livrar-se do mal.” [5]
O devido fim daqueles que se dedicam ao estudo teosófico é cooperar conscientemente com a Grande Lei. Tanto a meta de governar os pensamentos, as emoções, os estados de consciência e os hábitos, como o dever de governar todos os demais cidadãos do nosso reino, requerem autodisciplina. A prosperidade espiritual, assim como a prosperidade de uma república justa, depende da concórdia entre o pensar, o sentir e o agir, e esta concórdia é inseparável da vitória do bem sobre a ignorância, da virtude sobre o vício.
O governante de si mesmo deve permanecer vigilante, equilibrando discernimento, coragem e prudência. Dessa forma, a paz é estabelecida e a tirania interna é evitada. Este é o propósito do estudo e da prática teosóficos: transformar a vida interna em um reflexo da ordem divina, preparando o terreno para uma plena expressão da consciência superior.
Aquele que pretende exercer um sábio e bom governo do seu reino exige de si mesmo forte atividade nos assuntos internos. A inação leva à derrota espiritual, como alerta Osório:
“Não anda o ócio sozinho; acompanham-no o tédio, a negligência, a timidez e a preguiça. E se for o Rei atacado por estes vícios (…) lá se vai por terra a salvação do povo.” (p. 36)
Numa perspectiva teosófica, ócio e negligência, além de corresponderem a falhas de conduta, são obstáculos à evolução da consciência. Pensamentos, emoções e hábitos devem ser cultivados sob a direção da Alma, o legítimo Rei.
O Rei interior desperto mantém a ordem, dissipa os impulsos cegos e alinha o reino com a Verdade e a justiça. Educar e disciplinar o nosso reino é, portanto, uma prática diária e um exercício refletido, em cada escolha e ato.
NOTAS:
[1] “Da Instituição Real e Sua Disciplina” (De Régis Institutione et Disciplina), de D. Jerónimo Osório, Edições Pro Domo, Lisboa, 1944, 419 pp. O livro está disponível na Biblioteca Nacional Digital de Portugal.
[3] Do texto “O Poder da Honestidade”, publicado em “O Teosofista”, agosto de 2019, p. 4.
[5] “Da Instituição Real e Sua Disciplina”, de D. Jerónimo Osório, Edições Pro Domo, Lisboa, 1944, 419 pp., pp. 21-22.
000
O texto acima está disponível nos websites da Loja Independente de Teosofistas desde 15 de outubro de 2025.
000
Leia mais:
000
Helena Blavatsky (foto) escreveu estas palavras: “Antes de desejar, faça por merecer”.
000