Um Modo de Ampliar a Visão da Vida
Carlos Cardoso Aveline

Há milênios, a prática de registrar por escrito percepções pessoais
sobre a vida tem sido para muitos uma parte central da busca da verdade. A
teosofia convida cada estudante a registrar as lições que aprende sobre o ideal do autoaperfeiçoamento humano, e
um Mestre de Sabedoria escreveu:
“Como você pode discernir o real do irreal, o verdadeiro do falso?
Só através do autodesenvolvimento. Como conseguir isso? Primeiro, precavendo-se
contra as causas do autoengano. E isso você pode fazer dedicando-se, em
determinada hora ou horas fixas, a cada dia, totalmente só, à autocontemplação,
a escrever, a ler, a purificar suas motivações, a estudar e corrigir seus
erros, ao planejamento do seu trabalho na vida externa.” [1]
No caminho da sabedoria, fazer anotações significa falar para
nossa própria consciência e também escutá-la. Ao escrever aprendemos e
ensinamos. Diferentes vozes internas dialogam, e podemos examinar a vida desde
vários pontos de vista. Um dos maiores filósofos brasileiros, Farias Brito, confessou:
“Eu sou um indivíduo que encerra muitos homens dentro de si mesmo:
alguns extremamente brandos, condescendentes e humildes, sempre tímidos,
desconfiados de si próprios, e duvidosos do próprio valor; outros violentos,
apaixonados, quase agressivos; outros inclinados à solidão, um tanto
idealistas, sonhadores e poetas; outros sombrios, tempestuosos, sempre prontos
para a luta e para a revolução; outros curiosos da verdade, sempre dispostos a
investigar o desconhecido, sempre prontos para os combates do pensamento,
metafísicos e um tanto visionários; uns, vendo tudo luminoso e risonho,
resplandecente de luz e refletindo o
amor e a bondade; outros, tudo vendo obscuro, carregado, cheio de
maldade e de ódios: quase todos tristes, amargurados mesmo, sem confiança nos
homens, sem fé na justiça…” [2]
Escrever é uma forma de pensar lentamente, enquanto observamos os
diferentes aspectos da nossa consciência.
É avançando devagar que o pensamento se torna amplo e profundo.
Aquilo que anotamos é durável, e o fato de sabermos que a palavra escrita
permanece no tempo é um motivo para construir as frases com mais cuidado.
Ao redigir, podemos revisar o texto e construir parágrafos que
mereçam viver mais de um dia. Cada frase é um espelho caleidoscópico, enquanto
está sendo construída. Revela possíveis falsidades a evitar, e mostra maneiras
estáveis e preferíveis de dizer a verdade.
Fazer anotações sobre a ciência do viver é uma forma de estar na
presença do silêncio sagrado. O ato de reler e revisar uma e outra vez um texto
possui um valor meditativo. As anotações refletem o estado de alma do peregrino
enquanto ele busca sem pausa o ponto neutro de equilíbrio que reconcilia os diferentes
fatos da vida, na consciência curativa do espaço eterno e do tempo infinito.
Quando estamos em contato com as camadas superiores da consciência,
a mente se liberta de velhos conteúdos e torna-se criativa. Por outro lado, a
influência exagerada de pressões externas ameaça a bênção interior. O filósofo
alemão Arthur Schopenhauer escreveu:
“Assim como uma mola acaba perdendo sua elasticidade pela pressão
incessante de outro corpo, o espírito perde a sua pela imposição constante de
pensamentos alheios.” [3]
A afirmação de Schopenhauer está parcialmente correta, porque
ressalta a necessidade de pensar por si, mas a questão central não está em “ler
mais” ou “ler menos”. É a forma de ler que faz a diferença. O estímulo externo
pode ter efeito extremamente positivo. A leitura é valiosa quando está combinada
com a contemplação e o pensamento próprio.
O silêncio entre uma frase e outra dá legitimidade à leitura
porque permite ao leitor escutar a sua alma. O bom leitor reescreve em sua
própria consciência aquilo que lê. A comunhão de pensamentos existe: um bom
autor revela fatos da alma de todos. Cabe apreciar devidamente o valor
universal do que foi escrito por grandes pensadores.
É claro que, ao reproduzir por escrito o pensamento de outrem, o
peregrino deve citar detalhadamente a fonte. Respeitando o autor, ele evita a
prática do roubo e preserva o seu respeito por si mesmo. [4] Com estas condições, ele tem todo direito de partilhar o que
foi dito por quaisquer pensadores.
O exame da sabedoria eterna desde o ponto de vista da prática é
desafiador e estimulante. Escrever é como uma ferramenta com a qual a alma
constrói sua libertação. Tudo na vida do buscador da verdade deve ser observado
no contexto da sua meta essencial. As anotações são o testemunho de uma batalha
e de um confronto de longo prazo com a sabedoria, com a ignorância, e com
aquela transmutação do eu inferior,
que leva à consciência celestial.
NOTAS:
[1]
“Cartas dos Mestres de Sabedoria”, compiladas por C. Jinarajadasa, Ed.
Teosófica Brasília, Primeira Série, seção “Cartas Para e Sobre Laura C.
Holloway”, Carta II, p. 146.
[2] “Inéditos
e Dispersos”, Notas e Variações sobre Assuntos Diversos, Farias Brito,
Editorial Grijalbo, 550 pp., ver p. 184.
[3]
Arthur Schopenhauer, em “A Arte de Escrever”, Ed. L & PM Pocket, 2005,
Porto Alegre, 169 pp., ver p. 128.
[4] O bem
mais precioso de um peregrino é a honestidade da sua alma.
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O artigo acima está disponível nos websites da Loja Independente de Teosofistas desde 29 de abril de 2016. Uma versão inicial dele, anônima, faz parte da edição de abril de 2016 de “O Teosofista”.
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Leia mais:
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Sobre o
mistério do despertar individual para a sabedoria do universo, leia a edição
luso-brasileira de “Luz no Caminho”,
de M. C.
Com
tradução, prólogo e notas de Carlos Cardoso Aveline, a obra tem sete capítulos,
85 páginas, e foi publicada em 2014 por “The
Aquarian Theosophist”.
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