A Fraternidade Universal
No Futuro da Humanidade
Farias
Brito
Foto e autógrafo do
autor, reproduzidos da obra “Farias Brito, o
homem e a obra”, de
Jonathas Serrano (Cia. Editora Nacional, 1939)
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Nota Editorial
de 2016:
Reproduzimos a seguir o capítulo dez do
primeiro volume da obra “Finalidade do Mundo”,
do filósofo cearense Farias Brito. Ver pp. 132-147.
O volume foi publicado pela primeira vez em 1895.
Desde um ponto de vista teosófico, Farias Brito
(1862-1917) é o principal filósofo brasileiro e o
único
que produziu obra consistente ao nível da metafísica.
Desafiando tanto o catolicismo
quanto as
filosofias materialistas, ele
propôs uma síntese
filosófica das religiões e proclamou
o princípio da
fraternidade universal. Foi
boicotado pelos “consensos” da
sua própria época, e mais tarde
desprezado pelo marxismo.
Influenciado por Spinoza, Kant,
Schopenhauer e
Leibniz, cujas obras têm muito em
comum com a
teosofia, Farias Brito estudou as
filosofias orientais e
propôs uma visão de mundo que se
harmoniza com a da
filosofia esotérica. Visto em seu contexto histórico, deve
ser considerado um dos maiores pioneiros
do movimento
teosófico autêntico, no Brasil e
no mundo de língua portuguesa.
Acrescentamos ao texto de Brito algumas
notas de rodapé.
(Carlos Cardoso Aveline)
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Eu chego aqui ao ponto culminante de meu livro, quando, tratando de
estabelecer as condições características da evolução do pensamento, começo pela
filosofia para terminar pela religião. Também nessa evolução pode-se dizer que
a filosofia é o começo e a religião é o fim, nem outra coisa é permitido
deduzir quando, tendo-se dito em começo que o fim da filosofia é a moral, agora
se acrescenta que não há moral sem religião.
Em verdade, a religião é a própria filosofia
comunicando-se ao povo e deduzindo as leis da conduta, de modo que assim
considerada, a religião, em sua acepção mais geral, compreende tudo: governo,
legislação, moral. Tal era exatamente a situação dos diferentes povos da
civilização primitiva, dos hebreus, por exemplo. Tal era do mesmo modo a
situação da confederação europeia ao tempo em que chegou o cristianismo a seu
mais alto grau de desenvolvimento, sendo que todos os governos católicos
estavam então subordinados ao Papa. Depois começou a luta entre o papado e o
império. Era uma consequência do trabalho dos pensadores que, iniciando, sob
outra face, o estudo da natureza, minavam por um lado os fundamentos do
catolicismo, ao mesmo tempo que por outro lado inauguravam silenciosamente, sem
ruído, nem abalo, o sistema de explorações de que há de nascer a religião do
futuro.
Dessa luta originou-se a fórmula: Igreja livre no Estado livre. Mas isto,
em vez de ser, como geralmente se supõe, a expressão de uma solução definitiva
do problema religioso, não é senão a fórmula característica de uma situação
anormal e transitória, sendo que quando a nova religião for fundada, terminará
também por absorver tudo: governo, legislação, moral.
Assim, na elaboração de meu pensamento, parto do
seguinte fato: todas as religiões atuais estão mortas, são mantidas apenas como
uma homenagem às tradições do passado, mas não têm mais vida na consciência das
multidões, nem força para fazer a paz entre os povos. Entretanto, sustento com
a energia decisiva de uma convicção profunda e insuperável que a religião é a
primeira e a mais importante de todas as necessidades públicas, sendo que sem
religião não pode haver estabilidade, nem ordem nas sociedades. De modo que a
conclusão a que pretendo chegar é esta: há de ser criada uma religião nova, sem
o que não poderá ser mantida a civilização contemporânea, que terá fatalmente
de se dissolver e morrer.
Pensando assim, bem sei que me coloco numa posição
extremamente difícil, porque não estou, nem com os representantes do passado,
que defendem as velhas religiões, nem com os reformadores da sociedade, que
combatem toda a religião. Mas também não estou só, porque há muito quem sustente
esta tese que é a tese que defendo: as religiões passam, as religiões se
transformam e morrem: mas o sentimento religioso é em si mesmo imortal. Em
primeiro lugar, sempre que uma religião entra em decadência e por fim se
dissolve, sucede que de entre as ruínas que deixa, levanta-se, como que por
encanto, outra religião; depois, das religiões que são abandonadas, sendo
substituídas por outras em conformidade com as novas tendências do espírito,
nada sobrevive quanto ao modo de compreender a natureza e o homem, mas ficam
sempre os intuitos morais, que são o elemento substancial e imperecível das
religiões.
Todas as religiões atuais estão mortas: eis uma
verdade dolorosa, mas incontestável, e não é senão porque isto é uma verdade
que se nota o estado de extremo desassossego, de angustiosa anarquia e profunda
perturbação a que se acham reduzidas as sociedades modernas. [1]
Com efeito a anarquia é a feição característica do
século. Há anarquia política, anarquia econômica e anarquia intelectual. Há
mesmo um partido de teóricos anarquistas, e os estadistas e legisladores de
todos os países lamentam este estado de coisas e sobretudo exagerando o perigo
de uma revolução que, promovida nas trevas, já começa a pôr em ação o terrível
expediente da propaganda pelo fato, estranham que a tal ponto tenha chegado a
anarquia mental e a corrupção dos costumes. Mas como não devia ser assim se o
direito público moderno faz guerra a todos os grandes princípios que são a
garantia da ordem; se combate as crenças populares e por todos os meios se
esforça para eliminar a religião do governo das sociedades? Ora a religião é a
ciência do povo, é o grande princípio que constitui a atmosfera do mundo moral.
Suprimida a religião, desaparece a ordem, como a tranquilidade nas massas sociais
que não tendo convicções, nem ideias com que possa ser preenchido o vácuo
deixado no espirito pela supressão das crenças tradicionais, entregam-se a toda
a sorte de extravagâncias. Nestas condições é evidente que os estadistas e
publicistas modernos não têm razão para condenar a anarquia que se manifesta em
todas as classes e em todos os ramos de atividade social, porque a anarquia é a
consequência lógica, inevitável das doutrinas que praticam.
Esta circunstância agrava a situação. Também a
história ainda não parece haver apresentado uma fase mais complicada, e Lange,
por exemplo, entre muitos outros que sustentam ideias análogas, não exagera as
proporções da crise moderna, quando, ao concluir sua magistral “História do
materialismo”, se exprime nestes termos: “Nós depomos nossa pena de crítico num
momento em que a questão social sobre-excita a Europa, questão sobre o vasto
terreno da qual todos os elementos revolucionários da ciência, da religião e da
política, parecem ter achado suas posições para dar uma grande e decisiva
batalha. Ou esta batalha agite simplesmente os espíritos e não derrame sangue
ou, igual a um terremoto, lance no pó, entre os estilhaços do raio, as ruínas
de um período passado da história universal, e sepulte debaixo das ruínas milhões
de homens, seguramente a era nova não triunfará senão sob a bandeira de uma
grande ideia que exterminará o egoísmo, e, como um novo fim a atingir,
substituirá a perfeição humana na associação humana, ao trabalho incessante
provocado por uma preocupação exclusivamente egoísta.” [2]
Todas estas perturbações, porém, toda esta
anarquia e angustiosa aflição das sociedades modernas não se explicam senão
pela decadência do sentimento moral e falta de religião. Eu disse no capítulo
anterior que o que caracteriza a civilização contemporânea é a ausência
absoluta de poesia e agora acrescento que a poesia que nos falta é justamente a
poesia da religião. Não há religião presentemente no mundo. Passou a época das
convicções e dos grandes entusiasmos. Já não há possibilidade de, no seio do
cristianismo e por fatos de crença religiosa, reproduzirem-se cenas de
martirológio, como na época da fundação da Igreja; nem a Inquisição poderia de
novo acender suas fogueiras porque já não encontraria mais apoio na ignorância
ou fraqueza das multidões.
Se se considera em particular o catolicismo, a
guerra contra a religião vem de longe: começou pela Reforma, foi
definitivamente organizada na época da Enciclopédia e fez afinal sua maior
explosão na revolução francesa que, debaixo de certo ponto de vista, não é
senão o julgamento e execução da religião de Jesus.
Com efeito, a revolução francesa, como já disse em
outra parte, ainda não produziu talvez os seus últimos efeitos: liga-se ao
passado por vias desconhecidas, do mesmo modo que muita coisa do que hoje
sucede, vem dela, verificando-se mais uma vez esta grande verdade - que a
humanidade constitui, por assim dizer, um todo orgânico, tendo um princípio de
que parte e um fim a que pretende chegar. Em verdade, nada pode ser considerado
isoladamente na história e o presente vem do passado, do mesmo modo que já
contém o futuro, o que melhor se poderia dizer, afirmando que no hoje vai já o amanhã, segundo a expressão eloquente de um notável poeta alemão. E
tudo vem de longe, prendendo-se o que se passa agora, ao que já se passou em
época imemorável. É assim que, considerando somente a civilização ocidental,
para não remontar a um passado mais remoto, vê-se que o que constitui a
civilização que tanto orgulho nos causa, vem do que fizeram os gregos, e o que
fizeram os gregos, vem de mais longe, prende-se à civilização indiana e
hebraica. De fato, o pensamento indiano, por um lado, e a corrente intelectual
do pensamento hebraico, por outro, reuniram-se na Grécia, como que por um
esforço espontâneo e até certo ponto inconsciente, realizando aquilo que se
poderia chamar a descida do céu para a
terra. Rasgou-se a nuvem transparente e fantástica com que foi o mundo
envolvido pela exuberância colossal da imaginação primitiva. Deus deixou de ser
uma força desconhecida para tornar-se um conjunto de forças visíveis:
decompôs-se, tomou formas diversas, foi Júpiter, foi Netuno, foi Marte.
Por esse tempo, desenvolveu-se o mito maravilhoso
de Prometeu como uma espécie de reação contra essa estranha decomposição supernaturalista.
Não era mais a divindade que descia do céu: era o homem que subia da terra. A
Grécia foi, deste modo, o cenário em que se realizou esse duplo esforço para a
unificação da humanidade com Deus.
Foi em Roma que veio repercutir no terreno
político essa grande agitação de que resultou a morte da civilização antiga e o
nascimento da civilização moderna. Roma foi, assim, ao mesmo tempo um berço e
um túmulo. Naquele túmulo sepultou-se o passado; daquele berço nasceu a
civilização contemporânea.
Mas nenhuma das grandes reformas pelas quais são
formados os diferentes ciclos da civilização, se realiza sem ser sob o impulso
de um ideal capaz de servir de alavanca às evoluções da humanidade. Para a
civilização que começou com a queda do Império Romano, o ideal foi a moral de
Jesus, a alavanca foi o poema dos apóstolos.
Mas hoje, depois de dezoito séculos de atividade e
trabalho, depois de dezoito séculos de luta e sacrifício extremos, a
civilização excedeu sem dúvida o ideal realizado pelo cristianismo, tal como o
constituíram as convenções da Igreja, e se faz necessária uma crença nova capaz
de sustentar o espirito público, em harmonia, não só com as aspirações
emocionais do espírito moderno, mas também com as novas descobertas da ciência
e da indústria; bem como em conformidade com as últimas investigações da
especulação filosófica.
A descoberta do vapor, por um lado, realizou a
comunicação das nações, dominando o espaço; a descoberta da imprensa e do telégrafo
realizou, por outro lado, a comunicação dos espíritos, dominando o tempo. De
tudo isto, resulta uma transformação radical nos costumes, como nas ideias
fundamentais da sociedade. Mas essa reforma se acha consolidada somente em sua
parte material; resta completá-la definitivamente sob o ponto de vista teórico.
É o que só se poderá conseguir depois que se houver chegado ao acordo dos
espíritos. Há por enquanto elementos esparsos que tornam, por assim dizer,
inconscientemente revolucionária a atmosfera política dos povos; mas não é
coisa fácil trazer a uma sistematização uniforme esses elementos, alguns dos
quais absolutamente imperceptíveis.
Compreende-se assim o vácuo profundo que se faz na
consciência coletiva dos povos: e é só considerando a história sob esse ponto
de vista que se poderá compreender a monstruosa explosão da revolução francesa.
Paris constituíra-se o centro do mundo. Todas as aspirações de ordem moral e
política se concentraram ali pelo desenvolvimento excepcional do pensamento
francês. Havia tendências opostas, havia pretensões antagônicas que estiveram
momentaneamente em equilíbrio devido a esses dois únicos laços: o respeito do
passado e o prestígio da religião. O respeito do passado deixou de ser um
motivo para conter a ansiedade dos povos quando Rousseau pelo contrato social
fez sentir que o direito, como todas as convenções, é simplesmente um resultado
da vontade dos homens. O prestígio da religião caiu por terra ao repercutir
satânico da gargalhada dissolvente de Voltaire. Foi assim rompido o equilíbrio
e desencadeou-se de uma maneira aterradora e selvagem a onda revolucionária.
Mas a revolução francesa não foi simplesmente uma
revolução da França: foi uma revolução da humanidade. Daí suas proporções
estupendas, daí o abalo profundo causado em todo o continente europeu,
repercutindo com intensidade em todos os países do globo. Manifestaram-se em
seu mais alto grau todos os sentimentos humanos e a França tornou-se, por assim
dizer, um grande teatro em que se representava uma imensa comédia: a alma
humana em face do mundo.
Nessa grande revolução tudo foi confundido, tudo
foi envolvido numa avalanche medonha e arrastado na onda crescente da anarquia
e da destruição. Foram guilhotinados os homens mais eminentes da França; foram
destruídos todos os princípios de ordem e arremessados pelo ar os alicerces
mesmos da sociedade; mas no meio daquele desespero feroz e por entre os gritos
de angústia com que se levantou toda a Europa para estacar espavorida ante as
fronteiras da França dilacerada, mas inexpugnável, o que mais sofreu, foi
exatamente o catolicismo. E não é senão porque essa religião saiu daquele
medonho combate, quase de todo extenuada e vencida que o próprio Victor Hugo
diz assim nas “Vozes interiores”, referindo-se a Jesus:
Ce siècle est grand et fort. Un
noble instinct le mène.
Partout on voit marcher l’Idée en
mission;
Et le bruit du travail, plein de
parole humaine,
Se mêle au bruit divin de la
création.
Partout, dans les cités et dans
les solitudes,
L’homme est fidèle au lait dont
nous le nourrissions ;
Et dans l’informe bloc des
sombres multitudes
La pensée en rêvant sculpte des
nations.
………………………………………………..
L’homme se fait servir par
l’aveugle matière.
Il pense, il cherche, il crée
! A son souffle vivant
Les germes dispersés dans la
nature entière
Tremblent comme frissonne une
forêt au vent !
Oui, tout va, tout s’accroît. Les
heures fugitives
Laissent toutes leur trace. Un
grand siècle a surgi.
Et, contemplant de loin de
lumineuses rives,
L’homme voit son destin comme un
fleuve élargi.
Mais parmi ces progrès dont notre
âge se vante,
Dans tout ce grand éclat d’un
siècle éblouissant,
Une chose, ô Jésus, en secret
m’épouvante,
C’est l’écho de ta voix qui va
s’affaiblissant.
Hoje, a religião de Cristo não é o que já fora em
outros tempos. Lede os livros de história, lede os trabalhos mais notáveis de
filosofia e de crítica: não há um só, a não serem os trabalhos saídos do seio
mesmo do catolicismo, que não ponha de lado as tradições da Igreja, e não
poucos são os que aparecem em franca e decidida hostilidade, sendo que já foi
publicada uma obra importantíssima sob esse título - “Irreligião do futuro”.
Tal é a obra mais recomendada do Sr. M. Guiau, filósofo notabilíssimo em
França. Este modo de pensar, como é natural, não podia deixar de refletir sobre
a sociedade: tornou-se comum na Europa e já começa a fazer invasão em nosso país,
exercendo influência mesmo sobre as classes menos cultas, onde, por via de
regra, são mais arraigadas as ideias religiosas, que quase invariavelmente
terminam por degenerar em grosseira superstição e fetichismo inconsciente.
É assim que entre nós, mesmo no interior dos
estados, apesar de nosso deplorável atraso em tudo, um sacerdote católico já
não é, como antigamente, uma pessoa sagrada: é uma pessoa vulgar como todas as
outras pessoas, sujeita às mesmas necessidades, que tem os mesmos interesses,
que se envolve nas mesmas intrigas. Não é que os padres de hoje sejam
inferiores aos padres de outrora; pelo contrário, existem ainda, como em todos
os tempos, sacerdotes da maior elevação moral, e dignos de todo o respeito; mas
é que começa a faltar a eles próprios a crença inabalável e o povo já não
continua a considerá-los como representantes de uma missão sobre-humana,
vendo-os simplesmente como homens iguais aos outros homens. E isto que se dá
com o catolicismo é o que se dá naturalmente com todas as outras religiões. De
modo que no problema religioso a questão tem de ser estabelecida sobre bases
inteiramente novas e nada pode ser aproveitado do que nos legou o passado, a
não serem os intuitos morais que são, como já disse, o elemento substancial e
imperecível das religiões.
Mas será o completo desaparecimento ou a negação
absoluta da religião que há de constituir a situação definitiva da humanidade?
Para muitos, sim: a religião é um estado transitório da humanidade, a feição
característica do período primitivo da civilização; e ao período religioso, que
é uma espécie de infância do espirito humano, sucede o período da emancipação e
da verdade, isto é, a época da ciência propriamente dita. Tal é a solução do
positivismo e mais ousadamente ainda a do naturalismo mecânico tal como o
naturalismo que Schopenhauer confunde com a física absoluta: o naturalismo de
Taine, por exemplo. Tal é a opinião de inumeráveis pensadores da mais elevada esfera
intelectual em todos os países do globo. Vacherot, por exemplo, um dos
espíritos mais nobres e mais independentes da França contemporânea, num
trabalho importantíssimo em que trata de explicar a religião pela psicologia,
diz assim claramente: “A revolução religiosa provocada pelos sonhadores
utopistas, reprovada pelos conservadores do passado, se faz sem ruído, sem
brilho, sob os olhos de uns e outros, por um trabalho lento e latente, mas
seguro, que não é sem analogia com os processes empregados pela natureza em suas
grandes gêneses geológicas.” [3]
O mesmo escritor profetiza que há de chegar um
tempo em que nada terá sobrevivido do cristianismo, além das fórmulas e dos
símbolos; então a filosofia e a ciência terão renovado completamente o espírito.
É o que será realizado principalmente pela educação, sendo que é na escola que
serão decididos os destinos do mundo moderno. “Mas a educação do povo feita até
aqui pelas religiões”, acrescenta Vacherot, “não podia ter por efeito libertar
seu espírito dos prejuízos da imaginação e da autoridade. Só a ciência é uma
instituidora que possa levar a um igual resultado, pela natureza mesma de seus
processos e também pelo caráter desinteressado de sua disciplina. A religião
que foi até aqui a grande instituidora do gênero humano, preencheu esta missão
à sua maneira, e segundo os seus princípios. Ela tem sempre educado as almas,
purificado os sentimentos, regulado as vontades. Tem mesmo muitas vezes
inspirado as inteligências, sobretudo quando era, como o cristianismo, uma
grande e profunda doutrina; mas não emancipou-as. Seu princípio de educação é a
autoridade; seu meio, a obediência; seu fim, a virtude e a santidade, não a
liberdade. Quando por acaso o sentimento desta entra na alma humana em
seguimento à educação religiosa, não é um fruto natural e preparado pela
religião mesma. É a reação de um espírito sobre o qual pesa enfim o jugo de uma
tutela que se prolonga além da medida, ou o abrimento necessário de uma
inteligência que não espera senão a idade de madureza para produzir-se em sua
força e em sua liberdade. Então nós escapamos às mãos que querem reter-nos, e
fugindo a uma autoridade desconfiada e suspeita, tratamos de refugiar-nos por
nossa conta e risco no asilo da ciência e da filosofia. Em todos os casos não
acontece nunca que a separação se faça amigavelmente; é uma ruptura muitas
vezes violenta de parte a parte, sempre misturada de pesar, tristeza e amargura.
Como poderia ser de outro modo? Na educação toda cristã, e o mais das vezes
católica de nossas sociedades modernas, nada prepara, nem dispõe a transição do
estado religioso para o estado científico e racional. Tudo, ao contrário,
concorre para torná-la brusca e dolorosa. A natureza que gosta de proceder
pelos semelhantes, obra aqui forçosamente pelos contrários. O espírito passa
repentinamente da disciplina absoluta ao regime do livre exame, do mistério à
luz, das visões da imaginação às ideias abstratas da razão pura.” [4]
Esta passagem do estado religioso para o estado
científico produz uma grande agitação mesmo nas almas mais fortes. A história
está cheia de inumeráveis exemplos desta dolorosa transição; assim Pascal,
assim Jouffroy, assim o próprio Vacherot. Daí a extrema lentidão com que se
opera a evolução intelectual que deve fazer passar, em um futuro mais ou menos
próximo, as sociedades do estado religioso para o estado científico. De modo
que para Vacherot esta evolução não está feita, mas há de fazer-se; e é só
neste ponto que ele se separa do positivismo, sendo que para os positivistas
tudo está já feito e acabado; a humanidade já chegou ao seu estado definitivo e
último e foi Augusto Comte o organizador do novo regime pela criação da
religião da humanidade que em verdade não é senão a negação de toda a religião.
Assim, para Vacherot, como para o positivismo e
para todos os sistemas que se prendem mais ou menos diretamente à intuição
mecânica do mundo, a religião já desapareceu ou tende a desaparecer, para ser
substituída exclusivamente pela ciência. Alguns tratam mesmo com o maior
desprezo tudo o que tem relação com esta ordem de manifestações do espírito.
Outros dizem positivamente: a religião e a metafísica são a filosofia da
ignorância e no futuro essa filosofia não será mais estudada senão como uma das
produções mais extravagantes do barbarismo primitivo Mas neste modo de falar há
ódio e prevenção que não são compatíveis com a elevação e serenidade que devem
caracterizar o verdadeiro filósofo. A virtude, como a sabedoria verdadeira, não
conhece o ódio, nada trata com desprezo, nem em coisa alguma se mostra
intolerante e fanática.
Esta solução de que as religiões serão totalmente
eliminadas, sucedendo a sua completa eliminação exclusivamente a ciência, é
absolutamente inadmissível. As religiões, como já disse, passam; as religiões
se transformam e morrem; mas a religião é em si mesma imortal. [5] Acontece a ela, como acontece à
filosofia que também se desdobra em inumeráveis sistemas, cada um dos quais
constitui uma filosofia particular. As diferentes filosofias vivem em luta perpétua:
umas são absorvidas por outras, outras se fundem para a produção de novos
sistemas e assim numa sucessão indefinida. Todavia, cada filosofia
desenvolve-se e cresce, realiza o seu papel; depois é posta de lado; mas a
filosofia em si mesma vai sempre crescendo. Pode-se, pois, dizer que a religião
é eterna, como é eterna a filosofia. Ou por outra e mais precisamente, a
religião é a própria filosofia, porquanto a religião não é senão o
reconhecimento da necessidade que tem o homem de elevar-se a uma concepção do
universo, de saber o que é, de onde vem e para onde vai; de formular uma
explicação da finalidade das coisas. Ora, todos estes problemas só podem ser
agitados na filosofia, não na ciência; e é exatamente quando os agita e
agitando-os acredita poder resolvê-los e resolvendo-os deduz as leis da
conduta, que a filosofia se transforma em religião, razão pela qual afirmo que
a religião é a própria filosofia e em verdade a religião não é senão a
filosofia realizando a moral. É por isto que já no começo deste capítulo disse
que a religião é a primeira e a mais importante de todas as necessidades
públicas e agora acrescento que a religião é propriamente a lei de aliança, o
princípio de ordem, a lei de harmonia entre os povos, numa palavra, a alma das
sociedades. Pode-se mesmo dizer que a sociedade está dentro da religião, do
mesmo modo que os corpos estão dentro do espaço, pois é a religião que
constitui propriamente o princípio, a atmosfera do mundo moral. É por isto que
sem religião o governo degenera fatalmente em despotismo e a comunhão social em
pugilato de interesses.
Suprima-se a religião: qual vem a ser o ideal
logicamente concebível em condições de sobrepujar o interesse particular? A
fraternidade, o cosmopolitismo? É de fato tendência da civilização reduzir a humanidade
a uma espécie de federação cosmopolita; e isto que foi sempre uma aspiração
vaga, indefinida, de alguns nobres pensadores, e não raro, de alguns chefes de
estado, já começa a ser reduzido a uma fórmula precisa para muitos publicistas
e parece ser o dogma fundamental do socialismo moderno. Com efeito, é num
almanaque socialista que está escrito o seguinte, tratando-se de estabelecer
uma previsão sobre o futuro da Europa:
“Cansada de ódios internacionais, de complicações
governamentais, de falsas autoridades; esgotada pelas revoluções, pelas
ditaduras, a Europa quebrará, por um simples ato de sua vontade, todos os seus
jugos voluntários, e entrará no período da verdadeira civilização. Então este
agregado incoerente de nações hostis, depois de haver atravessado talvez uma
última estação, a dos Estados Unidos da Europa, fundará a era definitiva da
paz, do progresso, sob o nome glorioso de República Europeia-Americana.”
É ainda no mesmo almanaque e no mesmo artigo que
se lê:
“Colocando o princípio das nacionalidades em sua
verdadeira luz, isto é, no meio de verdadeira civilização para onde marchamos
apressadamente, como podemos julgá-lo senão como uma fonte inesgotável de
parcialidades, de ódios, de carnagens? Suprima-se o espírito de conquistas, as
antipatias cegas, o caos dos governos, onde acharia ele sua justificação? A
humanidade do futuro não pode ter senão uma pátria, sem fronteiras disputadas,
sem animosidades nacionais, sem legiões que se entredegolem: esta pátria
compreenderá todo o globo. O homem chamar-se-á cidadão do mundo; seu único
patriotismo será a fraternidade universal.” [6]
“O futuro”, diz igualmente Magalhães Lima, outro
socialista, “está na federação, porque este fato representa o direito, a razão,
a justiça, o progresso.” [7] E esta
ideia não é nova, vem de longe e é ainda Magalhães Lima quem nos cita no mesmo
sentido, diversos pensamentos dos mais notáveis escritores, não somente deste
século, como mesmo do século passado. [8]
Eu vou reproduzi-los aqui:
LITTRÉ: O futuro pertence ao cosmopolitismo.
RAYNAL: A pátria de um grande homem é o universo.
VOLTAIRE: Numa pátria um pouco mais extensa, há
muitos milhões de homens que nem sequer têm pátria... Ser bom patriota é
desejar que a sua pátria se enriqueça pelo comércio e seja poderosa pelas
armas... É desejar o mal de seus vizinhos.
SCHILLER: Escrevo como cidadão do mundo. Em boa
hora troquei a minha pátria pelo gênero humano.
MABLY: Há uma virtude superior à pátria - é o amor
da humanidade.
QUINET: Dante, Petrarca, Leonardo de Vinci, Miguel
Ângelo, Maquiavel, Cristóvão Colombo, expulsos e repelidos do seu país, tiveram
por pátria o mundo.
CHEVREUL: As nações estão destinadas a fundirem-se
para não constituir senão uma grande nação que abaterá as fronteiras.
Em oposição aos partidários sistemáticos da
dogmática do egoísmo que vão de encontro às aspirações mais legítimas do
coração, sustento, de acordo com todos estes nobres pensadores, que o futuro
está na federação, isto é, numa confederação internacional de que farão parte
todos os povos, havendo na evolução geral das sociedades unidade de aspirações
e unidade de ideias. Cada nação fará uma individualidade à parte, com seus
caracteres especiais, tratando de seus interesses próprios, exercendo uma
missão particular; mas todas entrarão em acordo quanto à direção geral da
civilização, podendo mesmo haver, por delegação dos diferentes países, um
centro cosmopolita a que devem estar subordinados todos os povos e todos os
governos. E a diplomacia, o comércio, o correio, os bancos, a navegação, o
telégrafo não são já instituições que obedecem a esta ordem de aspirações? Tudo
isto não é, pois, uma utopia, é um ideal perfeitamente legítimo: mas é preciso
considerar que nada será realizado e definitivamente consolidado sem o laço
espiritual da
religião.[9]
religião.[9]
Depois, além de inúmeras razões de ordem política,
social e moral, considerando somente de um lado a consciência e de outro lado a
natureza, quem não se sente pequeno diante da majestade do mundo? Quem,
considerando o universo, não se sente tomado de espanto ante o sentimento da
própria fraqueza?
Pode-se dizer assim: - Homem, lembra-te de que
nada és; lembra-te de que um dia morrerás. - Isto só é suficiente para fazer
sentir a necessidade fundamental da religião.
Em conclusão e para reduzir a uma fórmula geral e
fundamental todas as ideias até aqui desenvolvidas:
No processo da mentalidade vem em primeiro lugar a
filosofia, que é a operação fundamental do pensamento ou, em outros termos e
conforme ficou já demonstrado, o próprio espírito humano em sua atividade
permanente. A filosofia exerce sua ação de dois modos: teórica e praticamente.
Assim produz duas coisas: teoricamente, a ciência; praticamente, a moral. Mas a
filosofia nasce do pasmo produzido pelo espetáculo grandioso da natureza. Ora,
é também da mesma fonte que nascem a poesia e a religião porquanto, admirando o
mundo, o homem emociona-se e daí a poesia; e esta emoção crescendo
transforma-se em culto, daí a religião. Disto resulta que a filosofia para ser
verdadeiramente eficaz, precisa de ser ao mesmo tempo extremamente poética e
profundamente religiosa.
Mas aqui apresenta-se uma questão da maior
complicação e gravidade e vem a ser: para ser fundada uma religião nas
condições de satisfazer a todas as aspirações do espírito humano, é necessário
ultrapassar a esfera da natureza? Em outros termos: existe Deus? [10]
NOTAS:
[1] A constatação realista da
ausência de vida espiritual nas organizações religiosas dogmáticas é um ponto
central da teosofia de Helena Blavatsky, enquanto que a pseudoteosofia de Annie
Besant deixa este fato de lado e adere com entusiasmo à prática das fraudes devocionais. (CCA)
[2] LANGE, “História do materialismo”,
IV parte, cap. IV. (Farias Brito)
[3] VACHEROT, “La religion”, liv. III,
cap. III. (Farias Brito)
[4] VACHEROT, ob. cit., loc. cit. (Farias Brito)
[5] Este é um dos axiomas
fundamentais da teosofia de Helena Blavatsky. (CCA)
[6] “Almanaque da questão social
para 1894”, sob a direção de P. ARGYMADÉS. Artigo: Le monde marche, por HENRY BRISSAC. (Farias Brito)
[7] “A federação Ibérica”. (Farias
Brito)
[8] “A questão social”, Conferências
realizadas em Lisboa. 10 - Vol. 1. (Farias Brito)
[9] Neste parágrafo, como já ocorreu nos
parágrafos anteriores, Brito adota como seu, e proclama, o primeiro objetivo do movimento teosófico
moderno, a fraternidade universal. (CCA)
[10] A questão de Deus é abordada por
Brito no capítulo XI de “Finalidade do Mundo”. Ali, à p. 153, ele cita trecho de Schopenhauer
(1788-1860) em que o filósofo alemão mostra os limites filosóficos do
cristianismo e profetiza de certo modo a fundação do movimento teosófico: “A sabedoria primitiva da raça humana não se
deixará afastar de seu curso por uma aventura sucedida na Galileia. Não, mas a
sabedoria indiana refluirá ainda sobre a Europa e transformará de todo nosso
saber e nosso pensamento.” De fato, a obra de Helena Blavatsky corresponde
a um “refluir da sabedoria indiana e
asiática sobre a Europa e o Ocidente”. A concepção britiana sobre Deus é
pagã, oriental, teosófica, e coincide com a visão de Spinoza. (CCA)
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Para
acompanhar um diálogo com a sabedoria de vida de grandes pensadores dos últimos
2500 anos, leia o livro “Conversas na
Biblioteca”, de Carlos Cardoso Aveline.
O livro
foi publicado pela Edifurb, de Blumenau, Santa Catarina. Com 170 páginas
divididas em 28 capítulos, ele foi publicado em 2007.
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