Como a Tradição da Ética Oriental
Pode Iluminar a Democracia do
Futuro
Aung San Suu Kyi
A sra. Aung San Suu
Kyi
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Nota Editorial:
O texto a seguir traz algo da
sabedoria
da Ásia antiga e tem utilidade
para Brasil,
Portugal e outros países
ocidentais. Ele não se
aplica apenas a reis e
estadistas, mas também a
todos os líderes sociais,
filosóficos ou religiosos.
É especialmente válido para o
movimento teosófico.
A sra. Aung San Suu Kyi, líder
social budista
na Birmânia (Mianmar), recebeu
o Prêmio Nobel
da Paz de 1991. O artigo a
seguir faz parte do seu
livro “Viver Sem Medo e
Outros Ensaios”, Editora
Campus, Rio de Janeiro, 281
pp., 1992, ver as páginas
137-139. [1] A ortografia foi atualizada.
(Carlos
Cardoso Aveline)
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Segundo a visão budista da história do mundo, quando a sociedade perdeu seu
estado de pureza original e caiu no caos moral e social um rei foi escolhido
para restaurar a paz e a justiça.
Esse governante tinha três títulos. Ele era Mahasammata,
“porque fora designado governante por consenso unânime do povo”; era Khattiya, “porque lhe cabia o domínio das
terras cultiváveis”; e era Raja, “porque merecia a afeição do
povo por observar a dhamma” (virtude,
justiça e direito). O acordo que obriga o primeiro monarca a governar com
justiça em troca de uma parte da safra de arroz é a versão budista do governo
por contrato social.
O Mahasammata insere-se no padrão
geral dos reinados índicos do Sudeste Asiático. A ideia foi criticada, por ser
vista como antítese do estado moderno, uma vez que incentiva uma forma de
monarquia personalizada, diferente da concepção ocidental de rei como inseparável
do organismo político e do organismo social. Mas sendo o Mahasammata escolhido por um consenso popular e agindo
necessariamente em conformidade com leis justas, o conceito de sub lege [obediência à lei] não é alheio
ao pensamento birmanês tradicional.
De acordo com a visão budista de reinado, o governante
não tem um direito divino de agir como bem quiser. Ele deve observar os Dez
Deveres dos Reis, as Sete Garantias contra o Declínio, as Quatro Assistências
ao Povo. Deve também orientar-se por vários outros códigos de conduta, como as
Doze Práticas dos Governantes, os Seis Atributos dos Líderes, as Oito Virtudes
dos Reis e os Quatro Caminhos para Vencer os Perigos.
A tradição que inclui o rei entre os cinco inimigos ou
perigos não só tem lógica como se pauta por vários códigos de instruções morais
que visam à formação ética dos que ocupam posições de autoridade. O povo
birmanês experimentou muitas vezes governos despóticos e tem uma vívida
consciência da distância que infelizmente existe entre a teoria e a prática do
governo.
Os Dez Deveres dos Reis, muito conhecidos, são geralmente
aceitos como medida de avaliação, tanto dos governos modernos quanto do
primeiro monarca do mundo.
Os deveres são: generosidade, moralidade, autossacrifício,
integridade, bondade, austeridade, mansidão, não-violência, paciência e
conformidade (à vontade do povo).
1) O primeiro dever
- generosidade (dana) - exige que o rei atue caritativamente
em prol do bem-estar do povo, na suposição tácita de que o governo deve estar
capacitado a prover adequadamente às necessidades dos cidadãos. No contexto da
política moderna, a segurança econômica do Estado é um dos deveres básicos das
administrações responsáveis.
2) A moralidade (sila), nos termos budistas tradicionais, fundamenta-se
na observância dos cinco preceitos, ou seja: não matar, não roubar, não cometer
adultério, não mentir nem ingerir bebidas tóxicas.
É preciso que o governante mantenha um elevado padrão de
moralidade, a fim de merecer o respeito e a confiança do povo, garantir-lhe
felicidade e prosperidade, e dar o bom exemplo. Se o rei não observa a dhamma, os funcionários do Estado se
corrompem; e quando os funcionários do Estado são corruptos, muitos sofrimentos
são impostos ao povo. Acredita-se, também, que um rei iníquo traz calamidade ao
país. A raiz dos infortúnios do país deve ser buscada nas deficiências morais
do governo.
3) O terceiro dever, paricagga, tanto pode ser
generosidade como autossacrifício. A generosidade vem somar-se ao primeiro
dever, dana, e portanto o autossacrifício
é a generosidade levada às últimas consequências, a generosidade que abre mão
de tudo em benefício do povo. Seria essa a melhor interpretação. Como exemplo
do conceito de serviço público desinteressado, conta-se, às vezes, a história
do eremita Sumedha, que assumiu o compromisso dos Buddhas. E, por isso, mesmo
tendo podido atingir a suprema libertação do nirvana em uma única existência, passou por várias encarnações,
para ajudar outras pessoas a se libertarem do sofrimento.
Outra história muito conhecida é a do rei mítico que
sacrificou a própria vida para salvar a de seus súditos, inclusive, a dos que
haviam tentado prejudicá-lo e foram causa de sua morte. O bom governo é a
sublimação das necessidades pessoais no serviço do país.
4) Integridade (ajjava)
significa incorruptibilidade no cumprimento dos deveres públicos e honestidade
e sinceridade nos relacionamentos pessoais.
Há um ditado birmanês que diz:
“Aos governantes, a verdade; às pessoas (comuns),
promessas solenes”.
Individualmente, as pessoas podem sentir-se presas apenas
às promessas solenes feitas; mas os governantes estão integralmente presos à
verdade em pensamentos, palavras e obras. A verdade é a essência dos
ensinamentos do Buda, que dá a si mesmo o nome de Tathagata, “aquele que chegou à verdade”. Logo, o rei budista tem
de viver e governar por meio da verdade, que é a adequação perfeita entre palavras
e natureza. Iludir ou enganar o povo, seja como for, é um demérito para o cargo
e também uma ofensa moral. “Assim como uma flecha absolutamente reta, sem
desvios nem distorções, também a palavra, uma vez pronunciada, não pode seguir
dois rumos”.
5) A bondade (maddava) no exercício do governo é a
coragem de se preocupar com o povo. Ignorar os problemas daqueles que são fracos
demais para exigir seus direitos é certamente mais fácil do que atender com
sensibilidade as suas necessidades. Preocupar-se significa aceitar
responsabilidades e ousar agir segundo o ditame que faz do governante a força
dos que não têm esperança. Na trama de Wizaya,
uma conhecida peça teatral do século XIX, baseada na história Mahavamsa do príncipe Vijaya, o rei
manda exilar o próprio filho, cujos desmandos haviam causado muito sofrimento
ao povo:
“Quando se trata de amor, é dever dos reis não fazer distinção
entre cidadão e filho, e de distribuir igualmente a amorosa benignidade”.
6) O dever da
austeridade (tapa) obriga o rei a ter hábitos
simples, a exercer o autocontrole e a praticar uma disciplina espiritual. O
governante permissivo, que vive de modo extravagante e ignora a necessidade
espiritual da austeridade, era tão inaceitável na época de Mahasammata quanto é na Birmânia de hoje.
7, 8 e 9) O sétimo, o oitavo e o nono deveres - mansidão (akkodha), não-violência (avihamsa) e paciência (khanti) - podem ser vistos como
correlacionados. Uma vez que a desaprovação dos poderosos pode ter
consequências desagradáveis e amplas, os reis não podem permitir que
sentimentos de inimizade e má vontade se transformem na raiva e na violência
destrutivas. Cabe ao governante desenvolver a verdadeira paciência que o fará
lidar de modo sábio e generoso com as deficiências e provocações vindas de
pessoas a quem ele poderia esmagar impunemente. A violência é totalmente oposta
aos ensinamentos do budismo. O bom governante sempre vence a má vontade com a benignidade
amorosa, vence a maldade com a virtude, a mesquinharia com a generosidade, a
mentira com a verdade. O Imperador Ashoka, que reinou segundo os princípios da
não-violência e da compaixão, jamais tentou subjugar alguém pela dureza ou pela
força destituída de moral; sua meta era dhamma-vijaya,
a conquista pela retidão.
10) O décimo dever
dos reis (avirodha), conformidade à vontade do povo, é geralmente encarado como endosso
do budismo à democracia, com base em histórias muito conhecidas dos Jatakas.[2] Pawridasa, um rei que tinha a deplorável tendência de consumir
carne humana, teve de se exilar de seu reino, por negar-se a atender ao pedido
do povo para que abandonasse seus hábitos canibalísticos. Muito diferente foi a
penúltima encarnação do Buda na Terra, o piedoso Rei Vessantara. Mas também ele
foi exilado, por que em sua luta para chegar à generosidade perfeita abriu mão
do elefante branco do Estado, sem o consentimento do povo. O dever real de
conformidade à vontade do povo nos faz lembrar que a legitimidade do governo
vem do consentimento do povo, que lhe pode caçar o mandato a qualquer momento,
caso deixe de confiar em sua capacidade de atender aos interesses populares
mais prementes.
Quando os birmaneses invocam os Dez Deveres dos Reis, não
estão fazendo suposições otimistas. Estão antes buscando valores consagrados
pelo tempo, a fim de reavaliar as reformas políticas que consideram
necessárias. Um dos argumentos mais fortes a favor da democracia é o de que os
governos orientados pelos princípios da responsabilidade, do respeito à opinião
pública e do primado das leis justas estão mais capacitados à observância dos
deveres tradicionais de um reinado budista do que estariam um governante ou uma
classe governante onipotentes, que não se consideram obrigados a atender à
vontade do povo.
Os valores tradicionais tanto justificam quanto
interpretam as expectativas populares dos governos democráticos.
NOTAS:
[1] Em alguns pontos, a tradução da
Ed. Campus foi revisada com base na edição original em inglês, “Freedom From Fear - and other writings”,
Aung San Suu Kyi, Penguin Books, England / USA, 1991, 338 pp., ver pp. 170-173.
(CCA)
[2] Jatakas -
Histórias tradicionais sobre reencarnações. (CCA)
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Em setembro de 2016, depois de cuidadosa análise da situação
do movimento esotérico internacional, um grupo de estudantes decidiu formar a Loja
Independente de Teosofistas, que tem como uma das suas prioridades a construção de um futuro melhor nas
diversas dimensões da vida.
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