Determinação dos Conceitos
de Filosofia, Ciência e
Metafísica
Farias Brito
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Nota Editorial:
O pensador cearense Farias Brito (1862-1917)
é um dos principais filósofos
brasileiros, e a sua
obra apresenta numerosos pontos
em comum com
a filosofia esotérica. O texto a
seguir constitui o
capítulo III do seu livro “A Base Física do Espírito”
(Ed. do Senado Federal, Brasília,
2006), que está
disponível na íntegra em PDF em
nossos websites
associados. O capítulo III é intitulado
“Determinação
Precisa dos Conceitos de
Filosofia, Ciência e Metafísica”.
(CCA)
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I
Entendo por Filosofia a paixão do conhecimento. É a paixão de que nos fala
Aristóteles, no começo de sua Metafísica,
quando diz:
“O homem tem naturalmente a paixão de conhecer.”
É o mesmo sentimento de que nos dá ideia Platão, em
fórmulas que são por Fouillée traduzidas nestes termos:
“A filosofia é o amor da verdade, não de tal ou qual
verdade particular, mas da verdade universal ou das ideias.”
O próprio Platão explica-se em tom veemente:
“O verdadeiro filósofo só de corpo está presente na
cidade em que habita. De espírito, considera como indignos de si todos os objetos
sensíveis e afasta-se para incalculáveis distâncias, esforçando-se, na frase de
Píndaro, por medir as profundezas do oceano e a imensidade de sua superfície;
elevando-se às regiões mais longínquas do espaço para daí contemplar o
movimento dos astros trabalhando por penetrar com olhar curioso a natureza
íntima de todas as grandes classes de seres de que se compõe o universo, sem
descer a olhar o que fica a seu lado. Deste modo, não sabe o que faz seu
vizinho, e ignora se é um homem ou um animal o vulto que fica a dois passos.
Mas o que é o homem e em que se distingue o homem dos outros seres, eis o que
faz o tormento do filósofo e o que continuamente se esforça o filósofo por
descobrir.”
II
Filosofia é, pois, paixão e amor: paixão pela verdade,
amor do conhecimento. É o que se prova, remontando à tradição primitiva dos
filósofos, remontando a Platão e Aristóteles. É o que se verifica, com mais
segurança ainda, considerando a significação etimológica da palavra. Sabe-se
que filosofia vem do grego philos e sophos; e significa assim
etimologicamente: amor da ciência. Ora, amor é inclinação; e toda inclinação é
sempre a repercussão psíquica de uma necessidade natural; o que prova que amor
é necessidade. Sabemos também, que a necessidade é a força primordial na
determinação de nossas ações - foi o que já tive de expor em outro trabalho e
agora sou forçado a repetir. Um conceito negativo envolve assim uma das mais
poderosas forças humanas. E como o amor é a necessidade mais alta, daí resulta
que é também o mais nobre aspecto da força e o mais alto poder.
O amor é a forma mais elevada, mais nobre da necessidade:
é a necessidade em suas manifestações superiores.
É a razão por que esse poderoso sentimento dá feição
poética a tudo o que lhe diz respeito.
Se uma coisa se faz necessária à nossa existência, se
satisfaz a uma inclinação natural e se essa inclinação adquire um certo ardor e
se transforma em paixão, nasce o amor. Este satisfaz-se com a posse do objeto
querido. Mas a posse traz como consequência a saciedade e a saciedade põe termo
aos entusiasmos do amor. Se o amor, não obstante, persiste, a despeito da
posse, é que permanece a necessidade que nunca se dá por saciada. É o que
acontece quando a necessidade renasce incessantemente. Tal é o caso de uma pessoa
querida que quanto mais dominamos, mais nos prende; tal é o caso do amor
materno, do amor filial, da amizade que nos prende a uma pessoa que nos inspira
o mais vivo interesse por sua elevação moral, ou a que estamos ligados por
qualquer laço de simpatia, admiração ou entusiasmo, sentimentos todos estes
correspondentes a uma necessidade inesgotável de afeto. Tal é também o amor da
ciência, - paixão que corresponde à necessidade de conhecimento.
III
Há amor quando alguma força desconhecida nos atrai e no
mundo moral o que explica a atração é a necessidade. Mas a simples necessidade
produz apenas a inclinação; para que a inclinação se torne paixão e faça nascer
o amor, é preciso que a necessidade seja misturada de mistério. Ao
estremecimento da paixão que nasce de uma exigência profunda do organismo
junta-se a curiosidade do desconhecido. É o que explica o poder irresistível e
a fascinação do amor. Vem também daí o seu caráter de sentimento vago e
indefinível, de visão ideal e transparente, sendo certo que não há apaixonado
que não seja um visionário. Tudo isso quer dizer que não há amor sem poesia e
sem sonho: o que significa talvez que não há amor sem amargura, que não há amor
sem sofrimento e sem luta. Mas também nesta luta e neste sofrimento prepara-se
uma obra perpétua. É que há sempre no amor propriamente dito um princípio de
criação; do mesmo modo que há sempre na filosofia ou no amor da ciência uma
visão do futuro.
IV
O amor é tanto mais nobre e elevado, tanto mais poderoso,
quanto mais se mostra o objeto que o inspira, cheio de mistério e de grandeza.
É o que dá uma ideia da alta significação e do poder incomparável, supremo da
filosofia. Explicar o sentido da existência, dar solução real ao problema do
universo – eis o objeto de nossa atividade pensante. Que se poderá imaginar de
mais alto? E que mistério será capaz de exercer maior atração? Só de considerar
em sua significação própria a questão, só de imaginá-la em toda a sua extensão
e profundeza, o espírito sente-se tomado de vertigem. Tal é, entretanto, a
paixão humana por excelência, e é daí que deriva toda a vida espiritual da
humanidade. É daí que derivam em primeiro lugar as ciências e com estas a
organização do trabalho nas indústrias, - fundamento e base da ordem econômica.
E é daí que deriva o impulso para uma interpretação do universo e é da
interpretação do universo que deriva a intuição do dever, - fundamento e base
da ordem moral das sociedades. E tudo o mais que produz o espírito prende-se,
por algum lado, a uma destas duas correntes fundamentais.
V
Examinemos, porém, um pouco mais detalhadamente o
processo de formação e desenvolvimento das nossas energias mentais. Só assim
poder-se-á fazer uma ideia precisa da alta significação e prodigiosa
fecundidade da filosofia.
Já sabemos que a filosofia é a paixão do conhecimento.
Como paixão é necessidade e como necessidade é força que leva à ação. É assim
que a primeira manifestação da filosofia é a curiosidade natural que nos leva a
indagar da significação das coisas. É o que poderia se chamar o instinto do
conhecimento, instinto que é a vida mesma do espírito; que começa com as
primeiras revelações da consciência e vai continuamente crescendo à proporção
que a consciência se alarga. A filosofia é, pois, a atividade mesma do
espírito: atividade permanente, por se tratar de uma necessidade que jamais
poderá ser satisfeita de todo, de uma necessidade que a todo momento se renova;
o que justifica em absoluto a fórmula de Leibniz: perennis philosophia.
Podemos, pois, concluir: a filosofia é uma atividade
permanente do espírito humano; é o espírito interrogando a realidade, o
espírito em ação, lançando o seu olhar sobre as coisas e procurando
explicá-las, investigando o desconhecido e elaborando o conhecimento. Enquanto,
porém, o conhecimento está sendo elaborado, há somente filosofia, isto é, há o
domínio da paixão do conhecimento; o que quer dizer: há esforço e trabalho da
parte do espírito, e isto significa o exercício de uma atividade. O
conhecimento uma vez elaborado, temos a ciência. De maneira que a filosofia é
neste sentido o conhecimento in fieri,
o conhecimento em via de organização; a ciência é o conhecimento feito, o
conhecimento organizado. A filosofia é então uma atividade, e o resultado dessa
atividade é exatamente a ciência. É a razão por que, a meu ver, se deve
compreender a filosofia como órgão e a ciência como função: a ciência é
precisamente o que se deve chamar a função teórica da filosofia. E é assim
compreendida que a filosofia constitui o que eu chamo filosofia pré-científica; o que significa exatamente que se trata
aí de uma atividade anterior à ciência e que é o princípio mesmo produtor da
ciência.
VI
Produzida, porém, a ciência, isto é, elaborado
definitivamente o conhecimento, poder-se-á imaginar que esteja terminado o papel
da filosofia? Não. A filosofia não pode contentar-se com a ciência. Esta não
pode esgotar a realidade. Há sempre pontos obscuros nas coisas mais claras, há
sempre mistério no que se supõe conhecer com mais precisão, e a ciência, em
verdade, tateia no vácuo, e considerada em relação ao infinito do mundo é como
um simples ponto luminoso no meio de uma noite infinita, para servir-me da
imagem de Bourdeau. Cada grau a que se eleva a humanidade no desenvolvimento
contínuo de seu saber positivo, é apenas um ponto de apoio, e partindo daí a
tendência natural do espírito é sempre elevar-se mais alto. É como se alguém
subisse a uma montanha para daí lançar uma vista sobre o mundo. Ao chegar no
ponto culminante, teria de verificar que tudo está por fazer, porque o mistério
cresce à proporção que os horizontes se afastam. No caso daquele que tenta
explicar a natureza das coisas, a montanha é a ciência e esta vai sempre
tomando maiores proporções. A filosofia é a intuição que se forma do mundo,
partindo do alto da montanha da ciência. Esta, se bem que cresça
indefinidamente, todavia, jamais poderá chegar ao limite das coisas, uma vez
que o espaço é infinito.
VII
Compreende-se, assim, como é que a ciência, que é um
produto da filosofia, por sua vez, se faz condição da filosofia, e deste modo
se torna fator essencial na obra do pensamento. Nenhuma intuição do mundo é
admissível, nenhuma concepção do todo é viável que não esteja rigorosamente de
acordo com o que já foi verificado e aprovado. Isto significa precisamente que
é a ciência mesma que deve servir de ponto de partida para a filosofia, que é a
ciência que deve servir como base para a construção do monumento filosófico.
Por onde se vê que a filosofia supõe a ciência. Não pode imaginar-se uma
concepção filosófica séria que não tenha por base uma síntese completa do
resultado geral das ciências.
Nasce daí a ilusão de que a filosofia, em última análise,
se confunde com as ciências e não é senão o conjunto das ciências. Tal foi a
ilusão de Augusto Comte, quando confundiu a filosofia e as ciências e fez do
conjunto das ciências o que ele chama – a
filosofia positiva. Mas não foi só Augusto Comte que procedeu deste modo.
Muitos outros pensadores, antes dele e depois dele, deixaram-se dominar pela
mesma ilusão. Assim, por exemplo, Paulsen, espírito, aliás, independente e que
segue orientação que não pode confundir-se com a de Augusto Comte. “Em que se
distingue a filosofia das outras ciências?” – pergunta ele.
E respondendo explica:
“Se a filosofia não se distingue das outras ciências nem
pelo método, nem pelo objeto, é necessário reconhecer que faz uma só e mesma
coisa com elas. Eu sou desta opinião. A filosofia não deve ser separada das
ciências e pode ser definida: o
compêndio, o conjunto do conhecimento científico.”
Desenvolvendo, entretanto, seu pensamento, o ilustre
pensador germânico logo se contradiz, deixando claramente perceber a
insuficiência do ponto de vista que adota quanto à concepção da filosofia. Eis
aqui: “Todas as ciências”, diz ele, “são partes de um único sistema, de uma universitas scientiarum, cujo objeto é a
realidade inteira. Este sistema, jamais completo, e em torno do qual trabalham
os séculos, é a filosofia. Toda a ciência estuda uma parte da realidade: a
física trata da realidade enquanto corpórea; a biologia trata dos processos da
vida; a psicologia trata da realidade sob outros aspectos; mas quando nos
esforçamos por concentrar todos os nossos conhecimentos e dar uma resposta à
pergunta – que coisa é a realidade? – neste caso temos a filosofia. Façamos uma
comparação. A realidade apresenta-se à inteligência humana como um grande
enigma. Cada ciência dá a explicação de uma parte determinada desse enigma; o
esforço pela solução do enigma em sua totalidade, o esforço pela solução do mysterium magnum da existência – eis o
que constitui a filosofia.” [1]
Ora, é fácil compreender que, uma vez que a filosofia se
propõe à solução desse mysterium magnum,
fica nisto mesmo uma nota particular que a distingue essencialmente das outras
ciências: é que as ciências se especializam, concentrando-se cada uma no seu
domínio próprio, empregando processos adaptados à sua especialidade e
organizando uma dada ordem de conhecimento, ao passo que a filosofia não tem
especialidade e considera o todo. Demais, como o todo é infinito, daí resulta
que a filosofia é também, por sua vez, infinita e, por isso, jamais poderá
tornar-se definitiva e completa. Particularizando-se na observação dos
fenômenos, a filosofia produz as ciências, que são por isto mesmo o
conhecimento especializado, decomposto em diferentes disciplinas, na proporção
dos diferentes aspectos com que se nos apresenta a realidade. Mas com isto não
fica terminada a sua obra; não só porque continua a especular sobre novos
aspectos da realidade, podendo, por conseguinte fundar novas ciências, como,
além disso, porque, partindo das ciências, eleva-se, por necessidade natural, a
uma concepção do todo; por onde se vê que vai sempre além das ciências. E é
nisto precisamente que está o seu destino mais alto.
É neste último sentido que a filosofia constitui o que eu
chamo filosofia supercientífica. É, como já disse, a intuição que se forma do
mundo, olhando do alto da montanha da ciência: interpretação do sentido real e
racional da existência; interpretação pelas primeiras causas e pelos primeiros
princípios; o que, em última análise, se resolve numa totalização da
experiência, ou mais precisamente, numa solução do problema do universo:
concepção que corresponde, exatamente e com o máximo rigor, ao que se chama
metafísica.
Tal é, pois, a marcha geral do pensamento: vem em
primeiro lugar a filosofia, que é a atividade mesma do espírito, que é o
espírito interrogando a realidade, e elaborando o conhecimento. Desta
elaboração resultam as ciências. Mas as ciências não bastam, e o espírito, de
fato, segue duas direções diferentes: uma que leva à ciência e outra que leva à
metafísica. Quer dizer: especializando-se, a filosofia produz as ciências, mas
generalizando em seguida o resultado das ciências, eleva-se daí a uma
interpretação da realidade e funda a metafísica isto é, uma concepção do todo
universal. É a concepção de que já Herbart nos dá uma ideia precisa quando diz:
“No pensamento a respeito do mundo e da humanidade, a força do espírito tende
inevitavelmente para a metafísica que, semelhante às montanhas primordiais,
forma a base, vasta, profunda e invisível de todos os sonhos e de todas as aspirações
humanas, e domina, ao mesmo tempo, com seus picos abruptos e raramente
pressentidos, todas as outras alturas e profundezas.”[2]
VIII
É contra a filosofia, assim compreendida, isto é, contra
a metafísica em particular, que se dirige a objeção formulada sob a inspiração
da ciência, quando se diz que a filosofia é inútil e vã: 1º.) por não poder
adquirir o caráter positivo das ciências; 2º.) por ser sem eficácia prática.
Que a filosofia como concepção do todo não se possa
tornar positiva, nas condições das ciências particulares, é fato que se poderá
contestar. Mas isso deriva da natureza mesma das coisas, uma vez que se trata
aí do conhecimento geral e universal. A filosofia não é neste sentido obra
feita, mas a se fazer sempre; quer dizer: não é conhecimento feito, organizado,
com o que se tornaria ciência, mas sempre conhecimento in fieri, permanecendo com o caráter de filosofia: monumento que a
todo instante se renova, atividade em evolução permanente, esfera que
indefinidamente se alarga. E cada esforço individual, cada construção
particular, por mais forte que se torne aos seus sectários a ilusão de que se
trata de obra completa e definitiva, não é senão material, apenas uma pedra
para a obra comum da humanidade: obra que é o trabalho dos séculos e da
história.
E se esta pedra é de forte consistência, resiste a toda
crítica, entra como elemento para a obra comum, aumenta o tesouro dos nossos
conhecimentos e perdura. Se é, porém, sem solidez e sem força, se é uma
concepção arbitrária e fantástica, um simulacro de concepção, tem de ser
destruída, é pedra que se desfaz e volta ao pó de onde saiu. - “Chegar à
verdade”, diz Eucken, “não pode ser obra de um instante: não é senão através do
trabalho histórico universal, com suas tentativas, com suas experiências, com
suas transformações, que o homem avança progressivamente para ela; e nada é
mais insensato que a pretensão dos sistemas filosóficos que imaginam, numa dada
época, poder esgotar a plenitude da verdade e resolver todos os enigmas.”
Não se segue, porém, daí, que a filosofia ou antes, e
para empregar a palavra própria, que a metafísica seja sem eficácia prática,
não se devendo compreender senão como um esforço vão do espírito. Pelo
contrário, nada tem mais alta eficácia prática que a metafísica. A cada fase da
evolução do espírito, a cada fase da civilização, corresponde uma metafísica, e
é por esta que o homem adquire a intuição de si e do mundo, habilitando-se,
assim, a fazer a dedução do ideal a que deve obedecer no combate da vida. É
pela metafísica, isto é, pela filosofia, como concepção do todo, que o homem se
faz consciente de si mesmo, resolvendo esse duplo problema: 1º.) qual a
significação racional da natureza; 2º.) qual o papel que representa o homem no
mundo. E sem isto, compreende-se, é absolutamente impossível fazer com
segurança a dedução de dever, porquanto se eu não sei o que sou, nem para que
fim vim ao mundo, é evidente que também não posso compreender qual deva ser a
minha norma de conduta. É exatamente aí que está o destino da filosofia, e nada
se pode conceber de mais alto em tudo o que produz o espírito. É da filosofia
que deriva o ideal da vida, é da filosofia que deriva a lei, é a lei que
constitui o princípio orgânico das sociedades, isto é, o fundamento da ordem
moral.
IX
Em vão se têm esforçado os sábios, nesta época de
materialismo brutal e positividade intransigente, por dar também à moral o
caráter de ciência positiva. E há já, com o intuito de fundar uma moral
científica, uma vasta literatura: tudo em pura perda, compreende-se, porque a
moral não é uma ciência, mas um governo. É a consciência mesma interpretando a
realidade e ditando leis à nossa conduta. Isso não se compreende sem uma
concepção do todo, isto é, sem uma metafísica, o que desconhecem os
positivistas, que são também partidários da moral científica. De semelhante
anomalia não poderia deixar de resultar uma monstruosidade. E foi realmente o
que sucedeu: pois uma doutrina se constituiu que nega a moral e propõe como
regra de ação exatamente esta negação, isto é, o amoralismo.
Tal fato vale como demonstração por absurdo da
improcedência radical das doutrinas perturbadoras e anárquicas que servem de
inspiração a esses estranhos portadores de novas tábuas de valores, pois não
podem ser verdadeiras as doutrinas de que resulta, como consequência, a negação
da moral. É que falta a essas doutrinas o que constitui precisamente o espírito
da filosofia, isto é, uma concepção do todo, pela qual se torna possível a
identificação do homem e do mundo, isto é, a compreensão do nosso destino no
seio da existência universal. Sem isto é impossível deduzir a lei e fundar a
ordem moral.
X
Da ciência resultam regras técnicas; da filosofia
resultam regras éticas. É escusado lembrar que emprego a palavra filosofia no
sentido que eu mesmo adotei quando me servi da fórmula filosofia supercientífica. Vem a ser a mesma coisa que metafísica.
É costume dizer simplesmente filosofia. Pois bem: insistindo na comparação,
vê-se que o destino próprio da ciência, como conhecimento detalhado dos
fenômenos, consiste um subordinar esses mesmos fenômenos à vontade do homem,
transformando-os em utilidades para a vida. É o que está na índole mesma da
ciência, pois conhece as forças elementares da natureza e pode assim desviá-las
da direção natural, subordinando-as ao trabalho da indústria. Pode assim
dizer-se que a ciência é o princípio gerador da riqueza e a base da ordem
econômica: o que significa, em linguagem mais precisa, que o fim próprio da
ciência é estabelecer o domínio do homem sobre a natureza. A filosofia, ao
contrário, elevando-se ao conhecimento do todo, fornece ao homem a compreensão
do próprio destino: torna-o assim consciente de si mesmo e do mundo; apto,
portanto, para deduzir a lei que lhe deve servir de norma de conduta. Por onde
se vê que o fim próprio da filosofia é estabelecer o domínio do homem sobre si
mesmo.
XI
Haverá então quem possa por em dúvida a superioridade do
destino prático da filosofia? Haverá motivo para que se deva ainda prestar
atenção às objeções formuladas contra o valor da filosofia com fundamento na
ineficácia prática das cogitações filosóficas? Vê-se que todas essas objeções
se reduzem a nada. E em verdade os que combatem a filosofia não sabem o que
fazem: são como cegos que, por isto mesmo que não veem ou não podem ver, negam
a luz, como se o tato e a resistência exterior, que dão a ideia da matéria e da
força, não deixassem perceber que há, além da matéria, a forma, supondo esta um
espírito capaz de a perceber, uma vez que se torne possível a visão pela luz. Falta
aos inimigos da filosofia um certo tato particular, um certo espírito sutil,
que vê longe e apanha com prontidão o que se acha no fundo. São os homens da
positividade, o que equivale a dizer: os homens da materialidade brutal, e não
compreendem que essa materialidade brutal é coisa que passa e desaparece,
sombra que se desfaz, à proporção que se afasta no horizonte. Mas essa própria
sombra leva a supor que não é aí que se acha o verdadeiro alimento do espírito,
devendo existir para este um elemento fixo e permanente, uma região serena e
imutável, onde toda a perturbação desaparece, e onde a própria desordem se faz
compreender como condição necessária para a harmonia e a ordem.
XII
Para filosofar é preciso ler no fundo da consciência.
Isto significa que só se pode filosofar com toda a alma: o que torna patente a
esterilidade dessa chamada filosofia
científica que nos quer forçar aos processos especiais de observação que
são próprios da ciência, limitados ao detalhe dos fenômenos e, por conseguinte,
impotentes para nos darem uma concepção do todo. Não. A filosofia supõe a
ciência e deve ter por base a ciência; mas, partindo daí, deve jogar com todos
os elementos de prova e com todas as forças do espírito, sem excetuar a
imaginação: o que, até certo ponto, justifica a confusão que se faz entre a
filosofia e a poesia. Uma nota particular deve sempre ter em vista o filósofo:
a dor. A dor, esse mistério sagrado da existência. É o que dá bem a medida do
valor e da significação da tragédia, como manifestação suprema da poesia. O
mais alto grau da dor e o sentimento do sublime como mais alto grau da emoção
estética, são extremos que se tocam. Quando a dor chega ao seu último limite ou
o perigo se mostra de toda a forma invencível, a emoção atinge o seu auge, e a alma
fica como que suspensa no vácuo. É uma situação que nos põe em contato com o
infinito. É o ponto em que a contemplação estética cede o passo à visão da
filosofia. Também, a verdadeira filosofia, a que é capaz de viver e frutificar,
é uma revelação profunda da consciência, trabalhada, quase sempre, no
isolamento e no silêncio e, muitas vezes, com verdadeiros dilaceramentos da
alma, como se o filósofo sentisse no próprio cérebro as pulsações do cosmo,
como se sentisse, nos arcanos de seu ser mais íntimo e impenetrável, palpitar o
coração do mundo: energia que se dilata, a ponto de dispersar-se no infinito;
alma que se contorce na concentração mais profunda, a ponto de refletir no
inextenso da mônada a infinidade do espaço e do tempo; resumindo, num prolongado
grito de angústia, toda a agitação e toda a tortura, todo o desespero e todo o
clamor, e todas as convulsões e revoltas do sofrimento humano; opondo, não
obstante, por um supremo esforço de ignota energia, ao sentimento da dor
irremediável da vida, a fé no ideal que deve ser o término de todas as
cogitações do espírito.
É por esse ideal que se farão realizáveis duas aspirações
que a muitos hão de parecer verdadeiramente fantásticas, mas que são e devem
ser o mais legítimo sonho do homem: a verdade no pensamento, em correspondência
com a luz na natureza, e a harmonia no coração, em correspondência com o que
poderia chamar-se a música das esferas, - isto é, a bondade e o sentimento do
dever, em correspondência com a harmonia e a ordem a que tudo está subordinado
no universo.
NOTAS:
[1] Paulsen - “Introdução à Filosofia”
- trad. ital. de Gentile - pág.16.
[2] Werke, 11, 461.
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